Notas sobre o desmantelamento da democracia capitalista tardia na Alemanha marcada pelo autoritarismo
Tomasz Konicz, 29.01.2025
É uma fraude primitiva e óbvia que qualquer pessoa pode ver imediatamente: Cada vez que alguém com antecedentes migratórios, um refugiado ou um estrangeiro comete um crime, começa uma nova ronda de fascização da República Federal – mesmo que o criminoso mentalmente perturbado tenha sido movido por fragmentos da ideologia de direita, como em Magdeburgo, por exemplo. Ainda que em 2024 tenha sido registado um novo recorde de crimes de direita. A longa lista de vítimas do terror de direita desde os anos 90, as actividades do [grupo terrorista nazi] NSU, os preparativos do golpe de Estado de direita e os planos de assassínio em massa – tudo é suprimido, tal como os simples factos históricos e os paralelos com o século XX. Não importa, se necessário os factos e as ligações são distorcidos até se encaixarem. Quase toda a gente quer acreditar que a crise vem de fora, que os refugiados e os estrangeiros são “a nossa desgraça”. Caso contrário teríamos de questionar radicalmente a sociedade em crise, em cujo centro burguês o fascismo está a amadurecer.
Surge aqui um momento totalitário, como Hannah Arendt já descreveu em reflexões sobre o fascismo no século XX: A distinção entre verdade e mentira perde toda a relevância. A realidade impiedosamente distorcida funciona agora apenas como uma mina para produzir ideologia e alucinação. É uma verdadeira histeria que está a alastrar entre o público alemão na fase quente da campanha eleitoral – alimentada pela CDU, FDP e AfD (quase não há diferença). E este esquema pode teoricamente repetir-se até que o fascismo esteja no poder. As fronteiras entre um amoque e um acto de terrorismo são cada vez mais ténues nesta crise manifesta. Entre os milhões de pessoas com experiência ou antecedentes migratórios a viver na Alemanha, haverá sempre alguém que se passará, que se perderá na ideologia assassina da crise (seja sob a forma nacionalista ou islamista) e que quebrará psicologicamente com a escalada das contradições. Tal como acontece com pessoas sem antecedentes migratórios – com pouca atenção do público.
É tão simples que tudo voa literalmente para o fascismo, agora que a hegemonia da direita foi largamente estabelecida através da personificação das causas da crise. Na Alemanha as vítimas da crise global do capital foram rotuladas como as suas causas durante duas décadas – agora que a crise também afecta o centro alemão, são os reflexos autoritários ensaiados que são activados quase automaticamente. A CDU só tem de continuar a agitar e a papaguear a sujeira fascista da AfD para formar o próximo governo. Mas isso não é suficiente para o Sr. Burns alemão, a sátira Dimitroviana da vida real de um capitalista financeiro promotor do fascismo. Friedrich Merz está realmente a arriscar na fase quente da campanha eleitoral, pondo todos os ovos no mesmo cesto para ganhar tudo. E este pôr tudo em jogo é característico do fascismo alemão.
Instrumentalizando o ataque com faca em Aschaffenburg,1 a CDU introduziu um “endurecimento da lei” de longo alcance na fase quente da campanha eleitoral, com o objectivo de fechar ainda mais as fronteiras, alargar os poderes da polícia federal e internar em massa os refugiados e os não-alemães “ilegais”. Merz pode fazer aprovar este pacote legislativo – que se baseia no trabalho legislativo preparatório da coligação “semáforo” – antes das eleições, mesmo que o SPD e os Verdes votem contra, uma vez que pode contar com os votos do FDP e da AfD. E o candidato da CDU a chanceler também deixou claro que esta constelação, na qual os conservadores, juntamente com um partido maioritariamente de extrema-direita, fazem pressão para um maior “endurecimento”, não o impedirá de o fazer.2
O caminho é aqui o objectivo. Merz não quer esperar até que a CDU esteja no poder, sendo isso já quase certo, porque outra coisa é importante para ele. O que o antigo homem da Blackrock quer alcançar antes da sua chancelaria é um voto conjunto de todos os partidos para um novo passo em direcção à fascização da RFA – juntamente com a AfD, a fim de remover antes da próxima legislaturao tabu em ruínas da cooperação com a AfD a nível federal. Não só a CDU, mas todos deveriam votar em conjunto com a AfD, a favor do encerramento das fronteiras e de uma maior privação de direitos dos refugiados, como a AfD tem vindo a exigir há anos. Deste modo a ruptura do tabu de votar com fascistas a favor de políticas fascistas seria democraticamente alargada a todos os partidos do Bundestag. Esta votação na fase quente da campanha eleitoral pretende funcionar como uma bola de demolição para derrubar o muro separador da extrema-direita.
Merz quer, portanto, utilizar o duplo homicídio cometido por um refugiado doente mental em Aschaffenburg para normalizar a cooperação com a AfD – um partido maioritariamente fascista. Na verdade, trata-se de um risco desnecessário, uma vez que a vitória eleitoral da CDU parece certa. Mas o milionário candidato a chanceler da Alemanha, que tem excelentes ligações ao capital financeiro e que adopta de bom grado a retórica nacional-socialista de Wagenknecht sobre a crise da habitação e da saúde causada pelos imigrantes, quer ainda mais: Merz quer promover a opção estratégica de cooperação entre a CDU e a AfD, e a votação, que deverá definitivamente ter lugar antes das eleições, seria o primeiro passo nesse sentido. Esta abordagem é arriscada, uma vez que pode sair pela culatra, pois o SPD e os Verdes, encurralados, podem refugiar-se numa campanha eleitoral de campo. E se o SPD e os Verdes não cederem a esta táctica de chantagem – então a CDU, o FDP e a AfD votam a favor de uma nova “Lei dos Estrangeiros”. A frente unida negra e castanha tornar-se-ia então uma realidade em plena campanha eleitoral.
Ao mesmo tempo, a iniciativa de Merz em direcção ao fascismo pode apoiar-se na hegemonia da direita que se estabeleceu nos últimos anos, em particular na questão da fuga e da expulsão. O discurso público foi moldado em conformidade, e não foi apenas o presidente federal social-democrata Steinmeier que declarou a “migração ilegal” como a ameaça central para a Alemanha, por ocasião do ataque terrorista islamista em Solingen – desde então, Berlim tem vindo a cooperar cada vez mais com islamistas nas suas acções contra os refugiados. O slogan nazi “Estrangeiros fora”, inicialmente limitado aos refugiados, já se tornou razão de Estado da Alemanha. Por isso, a iniciativa de março já está a ser devidamente normalizada na opinião pública, não só em jornais de direita como o Frankfurter Allgemeine3 (onde o líder da AfD, Gauland, é conhecido por parafrasear discursos de Hitler),4 mas também em jornais liberais como o Die Zeit5 (onde há um debate descontraído sobre deixar afogar os refugiados).6
Quando a líder da AfD, Weidel, no seu júbilo pelo desmoronamento da barreira contra a extrema-direita, declara que a questão da migração é o destino daAlemanha,7 ela pode aproveitar anos de trabalho de base ideológico, especialmente no centro da sociedade alemã. Não houve praticamente nenhuma crise nos últimos anos (desde a bolha imobiliária até Sarrazin, passando pela crise do euro, a crise dos refugiados, a pandemia e a actual crise das exportações) que não tenha sido projectada em vilões fora da meritocracia alemã. Esta é agora a normalidade.
No entanto, o elemento autoritário também é decisivo no fascismo do século XXI. A eleição de Trump, a louca digressão promocional de Musk a favor dos populistas e extremistas de direita europeus, estão a fazer explodir todos os fusíveis civilizacionais na Alemanha. A pseudo-revolta autoritária fascista anseia actualmente pelo favor dos poderosos – quando um bilionário faz publicidade para a AfD, isso tem um efeito atractivo sobre o carácter autoritário, que se vê confirmado e encorajado. Trump produz efeito, Musk inspira a AfD – precisamente porque é o homem mais rico do mundo. Além disso, a pressão externa para manter o fascismo limitado na Alemanha já desapareceu em grande parte. Porquê? Nos EUA, cujos motores de busca afirmam subitamente ter descoberto um “Golfo da América”,8 estão a ser efectuadas detenções em massa de imigrantes. A oposição de grupos capitalistas outrora influentes à AfD está, por conseguinte, a enfraquecer. Entretanto já não é um escândalo quando os empresários declaram publicamente o seu apoio ao fascismo – por exemplo, na democrática arma de assalto que é o jornal Spiegel.9
A segunda eleição de Trump é uma catástrofe cujas consequências serão verdadeiramente globais. Sempre houve uma ideia ingénua e ilusória, especialmente cultivada pela velha esquerda, de que tudo o que é preciso fazer para tirar o vento das velas dos movimentos fascistas é desmascarar os ricos e/ou poderosos especuladores por trás deles. Esta abordagem – que geralmente anda de mãos dadas com a conversa estúpida sobre classes e interesses, que parece incorrigível mesmo na manifesta crise sistémica – simplesmente não reconhece o facto de que o fascismo é um genuíno movimento de massas, que faz uma clara oferta sociopolítica às classes médias amedrontadas: livrem-se dos estrangeiros, das minorias e dos comedores inúteis e ficaremos melhor. Isto é especialmente verdade para a Alemanha, com a sua terrível tradição autoritária. E a América, em particular, é historicamente responsável por isso: ao cancelar a desnazificação devido à emergência da Guerra Fria, tolerou inúmeros nazis em posições de topo no “Estado da linha da frente” da Alemanha Ocidental, que a moldaram em conformidade.
Este pós-fascismo persistente lançou as bases para o actual pré-fascismo. Não há qualquer inevitabilidade entre a crise e a deriva para a ideologia de extrema-direita e o autoritarismo. O exemplo da Grécia, que foi conduzida a um verdadeiro colapso socioeconómico pelo antigo ministro das Finanças alemão, Schäuble, mostrou a fraqueza da Alemanha neste domínio – o partido fascista “Aurora Dourada” nunca ultrapassou os 10%. Não existe um automatismo que conduza da crise sistémica ao fascismo. A história e o curso da crise estão em aberto. A AfD pode ser combatida com sucesso – mesmo na Alemanha marcada pelo autoritarismo.
Mas para isso a verdade nua e crua terá de ser transmitida às pessoas. A verdade simples, que agora está realmente à vista de todos e que só pode ser encoberta através de uma agitação fascista permanente, é que a crise em que as sociedades capitalistas tardias se encontram não pode ser ultrapassada dentro da economia capitalista. As fronteiras fechadas não impedem as inundações, as tempestades ou as secas. O calor, os incêndios, a subida do nível do mar – não vão parar nas fronteiras guardadas em pânico. A próxima crise económica, o próximo aumento da inflação, o próximo estrangulamento de recursos não serão eliminados por meio de deportações.
Em vez da instigação contra as vítimas da crise, dever-se-ia portanto iniciar um debate transformador, para procurar saídas para a crise capitalista permanente. Num planeta com recursos finitos, a compulsão para valorizar o capital é simplesmente autodestrutiva. Por conseguinte, o que o fascismo prega é de facto a morte da civilização.
No entanto, não existem forças sociais relevantes que – partindo de uma consciência radical da crise – liderem a luta por um progressista desenvolvimento de transformação. É por isso que a administração fascista da crise está a ganhar força e a afirmar-se – quase inevitavelmente, quase sem esforço. O que resta da esquerda continua de facto, para além de frases feitas, cego à crise, ou apoia impiedosamente o Estado ou está em regressão irremediável. A transformação é inevitável, sem alternativa, pois o capital chegou ao fim das suas possibilidades de desenvolvimento interno e externo, e está a despedaçar-se. E é o fascismo que está actualmente a conduzir numa direção bárbara, quase sem contestação, este processo de transformação basicamente em aberto.
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1 https://www.tagesspiegel.de/gesellschaft/messerattacke-in-aschaffenburg-familie-von-opfer-wehrt-sich-gegen-vereinnahmung-durch-rechte-parteien-13096006.html
2 https://www.nytimes.com/2025/01/27/world/europe/germany-afd-merz-cdu-migration.html
3 https://www.faz.net/aktuell/politik/bundestagswahl/cdu-vorschlaege-zur-migration-friedrich-merz-ist-nicht-hindenburg-110256240.html
4 https://www.konicz.info/2018/10/12/tanz-den-adolf-gauland/
5 https://www.zeit.de/politik/deutschland/2025-01/migrationspolitik-union-friedrich-merz-verschaerfung-afd
6 https://www.konicz.info/2018/07/18/absaufen-pro-und-contra/
7 https://www.deutschlandfunk.de/die-brandmauer-ist-gefallen-afd-chefin-weidel-begruesst-merz-ankuendigungen-zur-verschaerfung-der-mi-100.html
8 https://www.br.de/nachrichten/netzwelt/nach-trump-dekret-golf-von-amerika-kuenftig-in-google-karten,UbABQFW
9 https://www.spiegel.de/wirtschaft/unternehmen/galeria-miteigner-bernd-beetz-haette-wohl-donald-trump-gewaehlt-a-583d56e4-db37-4892-8b14-7a8b5653f19c
Original “Schwarz-Brauner Durchbruch in der heißen Wahlkampfphase?” in konicz.info, 28.01.2025. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.konicz.info/2025/01/28/schwarz-brauner-durchbruch-in-der-heissen-wahlkampfphase/