A guerra perpétua

O conflito militar está a tornar-se o novo normal no sistema mundial capitalista tardio em desintegração

19.01.2025, Tomasz Konicz

Os cálculos dos decisores geopolíticos de Washington – dificilmente Joe Biden1 – parecem estar a funcionar, por enquanto. O chefe de Estado russo, Vladimir Putin, declarou a instalação de sistemas de mísseis ocidentais de longo alcance contra a Rússia como uma “linha vermelha”, que levaria efectivamente o Kremlin a um estado de guerra com a NATO.2 Desde o final de novembro de 2024, o Ocidente tem desafiado deliberadamente este anúncio de escalada proclamado publicamente pelo Kremlin, dando luz verde à Ucrânia para ataques com mísseis no interior da Rússia3 – e, para além da utilização demonstrativa de um novo tipo de míssil de médio alcance com capacidade nuclear contra a cidade ucraniana de Dnipro4 e de uma campanha de sabotagem na UE,5 há poucos sinais de uma escalada russa.

Putin não está a escalar porque acredita que está no caminho da vitória na sua guerra de agressão contra a Ucrânia.6 E isto é verdade em dois aspectos. Por um lado, a prolongada guerra de desgaste significa que o maior potencial de recursos da Rússia está a ser cada vez mais utilizado. Os ganhos territoriais da Rússia no Leste estão a acelerar, enquanto o exército ucraniano mal consegue mobilizar efectivos suficientes para a frente de batalha. O drone e a tecnologia da informação funcionam como o grande nivelador no campo de batalha do século XXI, tornando a guerra ofensiva mais difícil – à semelhança da metralhadora durante a Primeira Guerra Mundial.

O que resta é a queima de material e de efectivos na frente em grande parte estática, até que uma das partes beligerantes entre em colapso. É por esta razão que os sucessos graduais da Rússia no Leste são tão decisivos, uma vez que ultrapassaram as linhas de defesa mais desenvolvidas da Ucrânia. Cada nova linha da frente ucraniana será mais fraca em termos de defesa. Como é muito provável que o Ocidente não intervenha directamente na Ucrânia, a lei sangrenta da matemática da guerra dita que Kiev tem de perder a guerra de desgaste se esta for travada até às últimas consequências.

Lógica de escalada e guerra de desgaste

A única hipótese realista de uma vitória militar de Kiev era um abalo na vertical do poder russo, como o que surgiu durante a revolta da tropa wagneriana em torno do líder mercenário Prigozhin.7 No entanto o Kremlin já o eliminou, o que significa que a oposição no seio da oligarquia estatal russa carece de um núcleo militar-organizacional que possa desencadear uma revolta oligarca contra a guerra desastrosa de Putin – que é também um desastre socio-económico e demográfico para a Rússia. É por isso que todas as más notícias da frente económica russa estão a ser recebidas com entusiasmo no Ocidente, uma vez que se especula sobre uma desestabilização política interna.

O Kremlin está a especular de forma semelhante. A campanha de terror de inverno da Rússia contra as infra-estruturas ucranianas, em especial o sector da energia, tem por objectivo minar o moral e a resistência da “frente interna” ucraniana, a fim de minimizar e, em última análise, destruir a projecção de poder interno e a capacidade de mobilização de Kiev. As deserções crescentes no exército ucraniano mostram que esta táctica de esgotamento é bem sucedida no quadro da guerra de desgaste.8

O que ambos os lados – realistamente falando – podem efectivamente visar é a erosão da estatalidade da parte beligerante contrária. Outra forma de vitória, especialmente contra a Rússia, é dificilmente concebível. O Estado inimigo deve tornar-se um Estado falhado – este objectivo de guerra é de facto realista, porque se insere no curso dos acontecimentos marcado pela crise. A crise do capital provoca a brutalização e a desintegração dos aparelhos de Estado – e a guerra apenas acelera esta tendência. O conflito militar, como forma final de concorrência de crise geopolítica, é de facto o meio em que este processo de crise se consumará agora.

Mas o Kremlin parece ter a vitória à vista, sobretudo devido à eleição do populista de direita Donald Trump. Durante a campanha eleitoral Trump afirmou repetidamente que seria capaz de acabar rapidamente com a guerra na Ucrânia através de negociações. Para o Kremlin a perspetiva de uma paz vitoriosa na mesa de negociações parece, portanto, realista – especialmente porque os EUA estão agora a entrar numa fascização aberta, incluindo um clima político reacionário e uma estrutura de poder oligárquica que também é caraterística da Rússia da oligarquia senatorial putinista. É óbvio que a crise do capital nos centros ocidentais progrediu de tal modo que se aproxima das estruturas de poder destroçadas da semiperiferia pós-soviética. Um acordo geopolítico sujo sobre o cadáver da Ucrânia, engendrado por dirigentes autoritários de monstros estatais altamente corruptos, fascistas e oligárquicos, é o que o Kremlin espera para este ano.

O que nos traz de volta às já mencionadas linhas vermelhas do Kremlin, que foram ultrapassadas pelo Ocidente no final de 2024 sob a forma de ataques com mísseis de longo alcance no interior da Rússia. Do ponto de vista de Moscovo, parece que estes ataques só terão de ser tolerados até 20 de janeiro, data da tomada de posse de Trump. Porquê arriscar uma guerra nuclear quando a vitória parece tão próxima? No Ocidente – tanto em Washington como em muitas capitais da UE – o pânico está a alastrar. Grande parte da política externa iniciada por Washington ou pela UE após a eleição de Trump serve para tornar irreversíveis os processos e desenvolvimentos geopolíticos. Os clowns do terror fascistóides, que em breve poderão dar expressão ao seu unilateralismo, nacionalismo e imperialismo em Washington, devem ser privados do maior número possível de opções.

A Ucrânia está a ser fornecida com armas pela última vez, a sua posição negocial deve ser melhorada através de opções militares de longo alcance, enquanto a incapacidade do exército russo, dominado pela corrupção, de ultrapassar o impasse dos drones na frente e de aí romper para avanços de longo alcance deve dar tempo para umas quaisquer negociações.

A roleta russa nuclear

Na realidade, porém, trata-se apenas de uma questão de minimização de danos, uma vez que a derrota do Ocidente na batalha pela Ucrânia há muito que é discutida abertamente, mesmo no Ocidente.9 Até que ponto a Ucrânia terá de ser atirada ao imperialismo russo para acabar com a guerra – esta é agora a lógica que também está a encontrar o seu caminho nos grupos de reflexão ocidentais. A única questão que ainda está a ser discutida é se será possível dar ao “resto da Ucrânia” algum tipo de soberania. A passagem da última linha vermelha de Putin, a clara escalada pretendida pelos EUA no interregno entre Biden e Trump, serve agora apenas para aumentar o preço que a Rússia tem de pagar pela sua vitória na Ucrânia.

Foi uma espécie de roleta russa nuclear que ambos os lados jogaram no final de novembro de 2024. Em grande parte despercebido pelo público ocidental, o sistema mundial capitalista tardio esteve à beira de uma escalada nuclear durante dias. A principal diferença em relação à Crise dos Mísseis de Cuba foi que em 1962 o mundo susteve a respiração em estado de choque, ao passo que actualmente as ameaças de Putin são apenas incómodas e mal notadas. A pulsão de morte ideologicamente disfarçada, que o capital produz sob muitas formas na sua agonia, não se exprime apenas em motins individuais, em atentados suicidas islâmicos, na negação obstinada da crise climática por parte da Nova Direita ou no amor à peste por parte da frente transversal alemã.

Também se exprime na ânsia do big bang que finalmente traria a paz às crescentes contradições causadas pela crise. É o anseio pelo vazio da morte que permite que a loucura da guerra nuclear, por exemplo, seja discutida seriamente.10 A irracionalidade inerente ao capitalismo espreita mesmo por baixo da superfície da retórica oficial dos interesses e das esferas de influência, nalguns casos já a vir ao de cima. Tendo atingido os seus limites sistémicos internos e externos, o capital ameaça pôr fim ao processo civilizacional numa grande guerra. Esta tendência de crise objectiva e autodestrutiva do capital, em ruptura devido às suas contradições, ameaça ser desencadeada pelas crescentes tensões geopolíticas.

A nova volatilidade na esfera geopolítica, a tendência crescente para a guerra como meio de fazer política mesmo nos centros, a vontade de correr riscos militares cada vez maiores – são expressões da nova fase de crise em que o sistema mundial capitalista está a entrar após o esgotamento das economias de défice neoliberais. A era de crise do neoliberalismo, com a construção da torre da dívida global, as bolhas especulativas correspondentes e as guerras de ordenamento mundial na periferia, está finalmente a chegar ao fim com a reeleição de Trump. Segue-se agora a fase de administração abertamente autoritária da crise, a erosão do Estado e conflitos militares a todos os níveis – incluindo entre os centros do sistema mundial (ver “Uma nova qualidade de crise”).11 A Rússia da oligarquia estatal de Putin e a Bielorrússia autoritária, no seu autoritarismo instável, exprimem o futuro da administração da crise.

Desordem mundial multipolar

Todos os monstros estatais estão a sufocar com a crise até ao pescoço, todos eles estão a tentar compensar a escalada das contradições socio-ecológicas, o potencial de crise crescente e a instabilidade crescente através da expansão externa ou transferindo as contradições para os concorrentes. Putin invadiu a Ucrânia a partir de uma posição de fraqueza, precisamente porque o seu quintal pós-soviético estava a sofrer uma erosão crescente.12 Os EUA têm de defender a posição do dólar como a moeda mundial, caso contrário degenerariam numa Grécia armada.

E todos os intervenientes têm de esforçar-se por assegurar recursos e matérias-primas a todo o custo, face ao avanço da crise ecológica. A natureza do regateio imperialista em torno da Ucrânia mudou na sequência da pandemia e da conexa escassez de abastecimento. Enquanto a primeira ronda de escalada militar, em 2014, teve como principal objectivo a integração geopolítica da Ucrânia em sistemas de alianças concorrentes – a União Euroasiática da Rússia ou a UE e a NATO –, após a pandemia, os grandes depósitos de recursos tornaram-se o foco do cálculo imperialista de crise.13 O conceito imperial do Kremlin, o império da energia, visa precisamente o controlo das fontes de energia e das matérias-primas. Mas os EUA também estão agora a argumentar abertamente neste sentido em relação à Ucrânia.14

Enquanto na era neoliberal eram sobretudo os excedentes de exportação que levavam a conflitos comerciais e a um protecionismo crescente, agora são opções militares tangíveis que estão a ser consideradas para concretizar interesses estatais que foram moldados pelo processo de crise. Quanto mais a crise progride na sua dimensão ecológica, maior é a fome de recursos da gaguejante máquina da valorização. O derretimento do gelo no Ártico está simplesmente a alimentar uma crescente corrida mundial imperialista às matérias-primas sob a camada de gelo em rápido derretimento.15 Até às febris fantasias bizarras em cliché imperialista de Trump, que de repente cobiça a Gronelândia.16

O ponto de viragem do neoliberalismo para o neonacionalismo foi marcado pelo surto de crise induzido pela pandemia, quando emergiu pela primeira vez em décadas uma dinâmica inflacionista obstinada,17 que drenou o combustível da economia global de défice de longa data, alimentada por uma política monetária expansionista.18 Os estrangulamentos da oferta, incluindo a pressão sobre as cadeias de produção globais, também deram origem ao cenário de crises de recursos e de matérias-primas de grande dimensão. O isolamento contra as massas economicamente “supérfluas” da periferia corresponde assim, cada vez mais, a um extractivismo militarmente flanqueado dos centros, em que a periferia é agora vista apenas como um depósito de recursos.

A formação autoritária de aparelhos de Estado, a tendência crescente para o capitalismo de Estado, incluindo a vontade crescente de utilizar meios militares no contexto da intensificação da concorrência imperialista de crise entre Estados – tudo isto anda a par com processos de erosão do Estado. A formação de Estados autoritários e os processos de erosão do Estado são dois aspectos de um mesmo processo de crise.

Da paz perpétua à guerra perpétua

Um olhar crítico da ideologia sobre o início, sobre a fase de formação do sistema mundial capitalista no século XVIII, pode ajudar a esclarecer o seu actual processo de decomposição. No seu famoso tratado A Paz Perpétua, o filósofo iluminista Immanuel Kant tentou delinear os fundamentos de uma coexistência pacífica dos Estados numa ordem internacional racional. A preocupação central de Kant era um sistema jurídico vinculativo, a formação de uma base jurídica para as relações internacionais que garantisse a paz perpétua entre os Estados, que era o título do tratado. Tendo em conta a experiência histórica dos últimos séculos, a argumentação iluminista de Kant, que teve de permanecer cega às contradições da socialização capitalista, revela-se como pura ideologia.

Este exemplo paradigmático da ideologia iluminista deve, portanto, ser simplesmente transformado no seu oposto, a fim de abordar a realidade da crise capitalista tardia na esfera geopolítica. Os monstros estatais em crise só podem manter a ilusão de paz interna através da expansão externa. As perturbações sociais e a instabilidade política daí resultante fazem com que a guerra surja como um ponto de fuga dentro da lógica imperialista de crise. Aceitam-se riscos de política externa cada vez maiores à medida que aumentam as tensões internas. Trata-se de uma tendência objectiva da crise que é criada através das acções subjectivas do imperialismo de crise dos aparelhos de Estado em erosão. Esta lógica do imperialismo de crise, de erosão interna e expansão externa, garante a guerra perpétua na crise mundial do capital agora em pleno desenvolvimento – a menos que o capital seja ultrapassado de forma emancipatória.

Isto é particularmente evidente na região pós-estatal em colapso que foi outrora a Síria. O regime zombie de Damasco entrou em colapso sob o ataque das milícias islâmicas, uma vez que há muito estava economicamente esgotado. Não existia base económica para um aparelho de Estado moderno, que depende de uma valorização de capital suficientemente ampla para não se asselvajar e entrar em erosão – o regime de Assad, exausto depois de uma longa guerra civil, procurou por vezes refúgio no tráfico de droga para poder distribuir gratificações aos seus bandos.19

O imperialismo de crise na prática

Em poucos dias, o Kremlin perdeu o seu mais importante aliado regional, para cuja sobrevivência a Rússia tinha injectado enormes recursos militares durante anos, durante a guerra civil. No regozijo ocidental com esta nova catástrofe russa, que é caraterística da discrepância entre as ambições e as capacidades imperiais do Kremlin, foi esquecido o colapso semelhante do Afeganistão. A retirada dos EUA da região em colapso da Ásia Central foi tão humilhante como a retirada da Rússia da Síria.

Mais uma vez, decisiva aqui é a tendência objectiva da crise para o colapso do Estado, que é criada por meio de conflitos imperialistas – e não as constelações geopolíticas fugazes em que se manifestam as alianças em constante mudança e as formações de campo. O Iraque de Saddam Hussein, a Líbia de Kadhafi ou a Síria de Assad – vistos de fora, pareciam monólitos impenetráveis de poder; os processos de erosão que aí se operam são pouco visíveis do exterior, até que estas ruínas estatais de uma modernização capitalista falhada se desmoronem à mínima oportunidade e libertem as forças centrífugas anómicas que aí operam. É fácil derrubar estes regimes de modernização falhados, como na Líbia e mais recentemente na Síria – mas eles não são substituídos por uma nova ordem estatal, uma vez que a crise global do capital priva o Estado da sua base económica.

Um olhar sobre a Líbia ou o Afeganistão, em particular, pode ilustrar muito bem onde a Síria ameaça chegar: na Líbia – que é governada por clãs concorrentes – já não existe de facto qualquer autoridade central do Estado, enquanto no Afeganistão os talibãs – apesar da repressão extrema em que as mulheres são literalmente proibidas de falar – não conseguem agora sequer estabelecer uma islâmica paz de cemitério. Internamente, os Taliban são confrontados com uma campanha de terror do Estado Islâmico,20 enquanto externamente, o Afeganistão está num conflito latente com o Paquistão, que levou recentemente a confrontos militares abertos.21 A ideia, alimentada pelo culturalismo de direita, de que o islamismo pacificaria estas regiões socio-economicamente em colapso revela-se uma ideologia.

O que se avizinha no horizonte não é, portanto, a estabilidade no quadro de regimes islamistas ou fascistas, mas sim a guerra permanente, que será travada por gangues islamistas ou aparelhos de Estado oligárquicos em processo de fascização. O discurso pacifista de Trump ou da AfD é mera propaganda – semelhante aos discursos pacifistas de Hitler pouco depois de lhe ter sido entregue o poder.22 Não há guerra entre o liberalismo e o autoritarismo – esta é uma ilusão alimentada pelo declínio do liberalismo. Pelo contrário, o Ocidente, outrora liberal, está a aproximar-se rapidamente dos regimes da semiperiferia, em resultado da crise. As estruturas oligárquicas e o fascismo são uma expressão da desintegração do Estado na sequência do avanço do processo de crise, que conduzirá inevitavelmente estes monstros estatais a novos conflitos.

O colapso da Síria também pode servir para estudar o fim dos sistemas hegemónicos induzido pela crise, bem como a consequente dinamização e desestabilização da esfera geopolítica. O declínio da hegemonia dos EUA23 levou a que muitas potências regionais tentassem concretizar os seus próprios planos imperiais através de meios militares.24 Muitos pequenos novos-EUA estão a tentar, no quadro da expansão induzida pela crise, suceder à potência mundial que foi deixada para trás e que já não detém o monopólio do poder militar. Isto aplica-se não só à Rússia, mas também a potências regionais como a Turquia e o Irão.

Três níveis de lutas imperialistas de crise

Com base nos exemplos da Ucrânia e da Síria, é possível identificar três níveis de conflitos geopolíticos e militares, o que também contribui para a confusão na avaliação e interpretação de conflitos imperialistas de crise concretos. Por um lado, há o conflito de hegemonia sem objectivo entre a Oceânia e a Eurásia, entre os EUA em declínio, com os seus sistemas de alianças que se estendem para além do Atlântico e do Pacífico, e o bloco de poder euro-asiático com a China no centro, cujo desenvolvimento se pretende torpedear através de uma estratégia de contenção. O processo de crise impede a emergência de um novo sistema hegemónico – os EUA estão em declínio, mas ao mesmo tempo a China já não está em condições suceder ao Ocidente como hegemonista. Isto pode ser visto, por exemplo, na acrescida crise da dívida, que fez descarrilar o projecto hegemónico chinês da nova Rota da Seda.25

E, no entanto, os aparelhos de Estado, cada vez mais envolvidos na dinâmica da crise, não têm outra alternativa senão lutar pela dominância. Acima de tudo Washington tem de temer pela posição do dólar americano como moeda de reserva mundial, a fim de evitar afundar-se numa acrescida crise de dívida.

A guerra sobre a Ucrânia começou originalmente como uma guerra sobre a linha da frente entre a Eurásia e a Oceânia.26 O Ocidente queria impedir a integração de Kiev na União Eurasiática de Putin, enquanto o Kremlin vê a Ucrânia como uma parte essencial da sua estratégia de grande potência. Esta luta hegemónica também se reflecte no colapso do regime de Assad, com o qual a Rússia perdeu não só o seu mais importante aliado regional, mas também uma base logística para os seus esforços de expansão em África, onde a França está agora sob forte pressão.

Os Estados Unidos tinham, por isso, interesse na queda de Assad, mas esta foi amplamente impulsionada por Ancara. A luta hegemónica entre a Oceânia e a Eurásia, sem esperança e de certo modo automática, está a ser ofuscada pelas crescentes aspirações imperialistas de potências regionais e médias, que conseguiram ganhar maior margem de manobra geopolítica precisamente devido à erosão da hegemonia dos EUA. O regime islamofascista de Ancara, por exemplo, está a tentar reavivar o Império Otomano, o Irão quer tornar-se a principal potência regional no Médio Oriente, o que por sua vez está a levar ambas estas potências médias a entrar em conflito com países árabes como a Arábia Saudita e o Egipto.

A Síria é um exemplo paradigmático desta multidimensionalidade dos conflitos imperialistas de crise. A guerra do Líbano entre Israel e o Hezbollah juntou-se perfeitamente com a ofensiva dos islamistas apoiados pela Turquia em Idlib, que rapidamente puseram fim ao regime de Assad. O eixo geopolítico entre Teerão e Damasco – que permitia ao regime dos Mullah projectar o seu poder até às fronteiras de Israel – foi desfeito. A batalha pela massa falida síria está, por sua vez, a colocar Jerusalém e Ancara em rota de colisão – sobretudo por causa dos territórios autónomos remanescentes dos curdos sírios, que o islamofascismo turco quer limpar etnicamente – mas que Israel considera como aliados naturais. Estão agora a ser realizadas manifestações em massa na Turquia, ameaçando a conquista de Jerusalém,27 enquanto os cenários de uma guerra contra o islamofascismo turco estão agora a ser debatidos em Jerusalém.28

Uma característica deste sistema imperialista de crise multidimensional é, pois, a constante mudança de alianças, alianças de conveniência ou de mera tolerância, em que a concorrência e o conflito podem por vezes ser praticados simultaneamente pelos aparelhos de Estado. No caso da Síria, por exemplo, a Turquia apunhalou o Kremlin pelas costas, mas ao mesmo tempo os dois Estados podem cooperar em matéria de energia nuclear ou de negócios de armas. Por vezes a cooperação transforma-se em conflito no espaço de poucas semanas. Por exemplo, Israel e a Turquia tinham o mesmo objectivo estratégico de eliminar o regime de Assad na Síria, mas ambos os Estados estão agora em conflito. Tudo está em mudança, todo o sistema está em constante movimento porque a crise torna impossível a formação de sistemas hegemónicos estáveis. Actualmente os EUA dominam apenas a partir de uma posição de força militar – e da ameaça de sanções e tarifas, por exemplo, contra a UE, o México ou o Canadá.

O terceiro nível de disputas e conflitos militares é formado pelos produtos da crise pós-estatais, as várias milícias, seitas e mercenários que a crise produz. Entre estes contam-se as milícias e bandos islamistas, que Ancara mobilizou na Síria, por exemplo – e que são repetidamente instrumentalizados pelo aparelho de Estado para atingir objectivos geopolíticos. A situação é semelhante com os bandos de mercenários russos ou as formações nazis que foram formalmente incorporadas no exército ucraniano. Mas, ao mesmo tempo, estas forças militares pós-estatais estão a tornar-se cada vez mais numerosas, cada vez mais importantes – até conseguirem o jackpot geopolítico de controlar territórios pós-estatais no Afeganistão, na Líbia ou na Síria. Mais uma vez, é a tendência objectiva da crise para a desnacionalização e a anomia que se afirma a longo prazo através dos conflitos imperialistas.

A luta pela paz como parte da luta pela transformação

Poder-se-ia mesmo argumentar que o capitalismo tardio se encontra numa permanente Crise dos Mísseis de Cuba, devido ao arsenal de armas nucleares existente. As potências nucleares estão envolvidas em conflitos militares mais ou menos abertos. É claro que se pode contrapor que a diplomacia se adaptou agora a esta nova intensidade do conflito. Os ataques militares e as fases de escalada, como os que ocorreram entre Israel e o Irão ou na guerra na Ucrânia, estão inseridos num diálogo diplomático de ameaças e exigências, conduzido nos bastidores.

Trata-se, de facto, de uma forma de comunicação perversa usando meios militares: Irão, Israel, Turquia, Rússia, EUA – anunciaram antecipadamente aos seus adversários os meios pelos quais os seus ataques militares ou demonstrações de poder seriam levados a cabo. A instalação de sistemas de mísseis de longo alcance na Rússia foi anunciada antecipadamente pelo Ocidente. A Rússia também informou os EUA pouco antes de lançar o seu míssil de médio alcance com capacidade nuclear contra o leste da Ucrânia. O objectivo é evitar uma dinâmica de escalada não intencional.

Mas basta um passo em falso, um erro de cálculo ou uma má interpretação para levar as potências nucleares, que já estão a travar uma guerra de baixa intensidade entre si devido à crise, a uma situação em que a opção nuclear será considerada. A roleta russa nuclear entre o Ocidente e a Rússia mencionada no início, em que as “linhas vermelhas” de Putin foram deliberadamente ultrapassadas na Ucrânia, também poderia ter corrido mal. E alguma vez um jogo de póquer geopolítico semelhante irá inevitavelmente correr mal. Os choques de crise económica e ecológica que o sistema geopolítico terá de absorver aumentarão e ganharão intensidade – tornando uma grande guerra devastadora que ponha fim ao processo civilizacional não só possível como provável a médio prazo.

Esta dinâmica de crise na esfera geopolítica dá realmente origem à necessidade de um movimento de esquerda, progressista, pela paz e contra a guerra. Ao mesmo tempo, porém, isso parece impossível, como se pode ver sobretudo nas “forças leais à Rússia” em torno da aliança nacional-socialista Sahra Wagenknecht (BSW) ou da AfD parcialmente fascista. Toda a retórica de paz pode ser instrumentalizada pelo Kremlin como parte da sua guerra psicológica contra o Ocidente.

De facto a esquerda alemã desintegrou-se agora em trolls de Putin e trolls da NATO – um desenvolvimento regressivo que já era aparente no início da guerra sobre a Ucrânia.29 Ao bizarro pseudo-pacifismo pró-Kremlin, que efectivamente apela à rendição da Ucrânia ao imperialismo russo, como foi recentemente celebrado na “manifestação pela paz” de Wagenknecht com o apoio do Partido da Esquerda,30 corresponde um desejo de guerra sedento de morte da esquerda liberal, como se pode ver no ambiente dos Verdes, para os quais os passos de escalada do Ocidente não vão suficientemente longe – e que, a partir de acolhedores salões alemães, apela a mais campanhas de mobilização na Ucrânia.

Tal como em quase todos os outros campos de luta, a prática progressista e emancipatória só pode agora ser concretizada através da reflexão e da tematização ofensiva do processo de crise. Uma luta progressista pela paz só pode ser realizada como parte de uma luta pela transformação emancipatória. O capital não apenas está no centro da crise social e ecológica mundial, que é constantemente alimentada pelas suas contradições internas e externas – está também a ameaçar conduzir a humanidade a uma grande guerra devastadora.

Esta verdade simples, que é agora abertamente evidente, tem de ser comunicada às pessoas, como parte de uma prática de paz transformadora. Uma prevenção duradoura da guerra só é possível no pós-capitalismo. O aguçamento de uma consciência radical da crise e o início de um amplo debate social sobre as formas de sair da guerra perpétua capitalista tornar-se-iam assim o foco de uma política de paz transformadora – impulsionada por um instinto de sobrevivência sublimado como resposta à tendência auto-destrutiva do capital. Sobre isto ver também o texto “Emancipação na Crise”.31

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https://konicz.substack.com

1 https://www.konicz.info/2020/03/09/amerikas-demenzwahlkampf/

2 https://www.reuters.com/world/europe/putin-draws-nuclear-red-line-west-2024-09-27/

3 https://www.theguardian.com/world/2024/nov/17/biden-has-lifted-ban-on-ukraine-using-us-weapons-to-strike-deeper-into-russia-reports

4 https://www.reuters.com/world/europe/russia-launches-intercontinental-ballistic-missile-attack-ukraine-kyiv-says-2024-11-21/

5 https://www.n-tv.de/politik/EU-Russlands-Schattenflotte-steckt-hinter-Kabel-Sabotage-article25458399.html

6 https://www.konicz.info/2023/12/14/putins-rechnung-geht-auf/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz44.htm

7 https://edition.cnn.com/2023/06/26/europe/prigozhin-putin-wagner-rebellion-analysis-intl/index.html

8 https://apnews.com/article/deserters-awol-ukraine-russia-war-def676562552d42bc5d593363c9e5ea0

9 https://www.zdf.de/nachrichten/politik/ausland/selenskyj-nato-niederlage-ukraine-krieg-russland-100.html

10 https://www.mirror.co.uk/news/world-news/nato-countries-preparing-world-war-34151854

11 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz25.htm

12 https://www.konicz.info/2022/01/18/neoimperialistisches-great-game-in-der-krise/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz20.htm

13 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/07/06/o-que-e-imperialismo-de-crise/

14 https://geopoliticaleconomy.com/2024/09/16/senator-lindsey-graham-ukraine-trillion-minerals/

15 https://www.konicz.info/2013/10/05/2639/

16 https://edition.cnn.com/2025/01/07/climate/trump-greenland-climate/index.html

17 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

18 https://www.konicz.info/2021/11/16/zurueck-zur-stagflation/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/11/18/de-volta-a-estagflacao/

19 https://www.t-online.de/nachrichten/ausland/internationale-politik/id_100550114/syrien-assad-was-passiert-jetzt-mit-seinem-drogen-imperium-.html

20 https://www.aljazeera.com/news/2024/9/3/isil-claims-responsibility-for-deadly-kabul-attack

21 https://www.nytimes.com/2025/01/01/world/asia/pakistan-afghanistan-taliban.html

22 https://de.wikipedia.org/wiki/Friedensrede_vom_17._Mai_1933

23 https://www.konicz.info/2017/10/28/alte-neue-weltordnung/.

24 https://www.konicz.info/2017/10/28/alte-neue-weltordnung/.

25 https://www.konicz.info/2022/10/18/china-mehrfachkrise-statt-hegemonie-2/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz32.htm

26 https://www.konicz.info/2022/06/20/zerrissen-zwischen-ost-und-west/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/07/06/dividida-entre-leste-e-oeste/

27 https://www.timesofisrael.com/liveblog_entry/tens-of-thousands-attend-anti-israel-pro-palestinian-protest-in-istanbul/

28 https://www.theyeshivaworld.com/news/israel-news/2350558/israel-must-prepare-for-potential-war-with-turkey-state-committee-warns.html

29 https://www.konicz.info/2022/04/26/krisenimperialismus-und-krisenideologie/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/04/30/mperialismo-de-crise-e-ideologia-de-crise/

30 https://www.berliner-zeitung.de/news/friedensdemo-berlin-wagenknecht-nie-wieder-krieg-die-waffen-nieder-liveticker-li.2259602

31 https://www.konicz.info/2022/10/12/emanzipation-in-der-krise/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz30.htm

Original “Zum ewigen Krieg” in konicz.info, 11.01.2025. Tradução de Boaventura Antunes

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