Dois caminhos na confusão

A China a regulamentar e a Argentina a desregulamentar na crise

Inflação ou deflação? Extremismo de mercado ou capitalismo de Estado? A Argentina e a China ilustram as diferentes formas que a crise global do capital pode assumir

09.05.2024, Tomasz Konicz

Abraçar o caos do mercado! Este parece ser o lema não oficial do presidente libertário de direita da Argentina, Javier Milei. O autoproclamado anarcocapitalista e amante dos seus cães, quadrúpedes clonados com nomes de economistas libertários e de extrema-direita, está actualmente a submeter a Argentina a uma política de austeridade extrema. A segunda maior economia da América Latina tem uma das taxas de inflação mais elevadas do mundo. Atingiu mais de 200% no início de 2024.

Milei ganhou as eleições presidenciais no outono de 2023 com a promessa de quebrar esta dinâmica inflacionista e de substituir a deficitária economia estatal keynesiana, que impulsionaria esta explosão de preços com a sua política monetária expansionista, por um capitalismo de mercado extremo e desregulamentado.

Rumo ao neoliberalismo tardio

A Argentina está a implementar uma forma extrema dos programas de crise neoliberais, frequentemente designados por “terapia de choque”. A desregulamentação e as privatizações estão associadas a “programas de austeridade” maciços e a uma política monetária restritiva. O objetivo é acabar com o anterior financiamento do défice através da impressão de dinheiro, que tinha sido prosseguido pelo peronismo de esquerda argentino crente no Estado. Pouco depois de ter tomado posse, Milei desvalorizou a moeda nacional, o peso, artificialmente sobrevalorizada, em 50% em relação ao dólar. Este facto provocou um aumento adicional da inflação e a desvalorização dos rendimentos monetários. A inflação disparou para 250% no início do ano. Ao mesmo tempo, foram cancelados os subsídios aos transportes e à energia. Milei, que apareceu muitas vezes com uma motosserra durante a campanha eleitoral para demonstrar a sua vontade de fazer cortes orçamentais extremos, também mandou dissolver metade dos ministérios do governo e até fechou o teatro nacional. Só foram poupados aos cortes a polícia e o exército – Milei mantém boas relações com círculos da antiga junta militar.

O Estado argentino conseguiu registar um excedente orçamental em janeiro, graças aos severos cortes nos subsídios e nas despesas públicas. No entanto, a queda da procura a isso associada está a conduzir a uma recessão, que está a fazer cair as receitas fiscais. Está a surgir uma espiral de crise deflacionária, com o valor dos bens a cair e o valor do dinheiro a subir; os preços estão a cair e a inflação está a descer abaixo de zero por cento. Isto tem o efeito de “abrir caminho para a falência do Estado”. De acordo com as previsões, o produto interno bruto (PIB) argentino deverá registar uma contracção de 7,8% no primeiro trimestre de 2024, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma recessão de 2,8% para todo o ano de 2024. No entanto, a inflação – após a explosão a curto prazo na sequência da desvalorização do peso – caiu rapidamente. Em fevereiro, a taxa de inflação mensal foi de 15,3%, contra 20% em janeiro e ainda 25% em dezembro. Mas trata-se de uma vitória de Pirro em termos de política económica, uma vez que esta “terapia de choque” apenas promove uma mudança no curso da crise: da inflação para a deflação, em que não é o dinheiro, mas sobretudo a mercadoria força de trabalho que é desvalorizada em termos reais.

Ao mesmo tempo, os salários e as pensões estão a sofrer uma perda maciça de valor, uma vez que estão a aumentar mais lentamente do que a inflação, que continua a ser considerável. Só no final de 2023, na sequência da desvalorização do peso em dezembro, os salários reais na Argentina diminuíram em média 14% em relação ao mês anterior. Ao mesmo tempo, as despesas públicas com pensões diminuíram 40% em termos anuais no início de 2024. As perdas salariais, juntamente com os cortes nos benefícios e subsídios sociais, estão a levar a uma verdadeira explosão de pauperismo: o número de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza aumentou de 40,1% no primeiro semestre de 2023 para 57,4% em janeiro de 2024. No entanto, é provável que as consequências sociais do massacre neoliberal com motosserra só se façam sentir ao longo do ano. Os arquitectos desta terapia de choque esperam que os cortes sejam implementados rapidamente e que a recessão seja ultrapassada depressa. Mais depressa do que o colapso do apoio a Milei, devido ao empobrecimento da classe média. No início de 2024, uma estreita maioria de argentinos cansados da inflação ainda apoiava o rumo do presidente cada vez mais autoritário, de acordo com as sondagens. Essas esperanças parecem ilusórias – especialmente porque o peso ainda está sobrevalorizado em relação ao dólar e a próxima rodada de desvalorização está iminente.

O anarcocapitalista na presidência enfrenta uma oposição crescente – em especial por parte dos sindicatos no que respeita à pretendida desregulamentação do mercado de trabalho – e reveses judiciais e legislativos, com os tribunais a declararem ilegais os decretos presidenciais e o Parlamento e o Senado a rejeitarem as leis de plenos poderes de Milei. Até à data, estes reveses conduziram a uma intensificação da posição de confronto de Milei. O presidente libertário de direita, que também assume posições de extrema-direita em questões controversas como o direito ao aborto, a política climática e a posição sobre a ditadura militar argentina, parece estar a flertar com uma viragem autoritária, caso a sua terapia de choque falhe.

O caminho especial chinês…

O capitalismo de Estado autoritário chinês, por outro lado, está a tomar outros caminhos na crise. Enquanto em Buenos Aires um asselvajado neoliberalismo tardio, que se aproxima da extrema-direita, está a mergulhar abertamente milhões de pessoas na miséria, Pequim faz o seu melhor para manter a fachada. As elites funcionai chinesas estão, de facto, a tentar adiar a crise. Até agora, Pequim tem tentado impedir o desenrolar da crise que está a devastar a Argentina, na esperança de uma retoma na sequência da destruição criativa. O pacto informal entre a direcção do partido e a população, em que a prosperidade é comprada com a passividade política, exige isto do governo.

A forma como os dirigentes chineses estão a lidar com o aumento do desemprego juvenil, que, de acordo com os números oficiais, se situava em 21,3% em junho de 2023, é um exemplo paradigmático desta situação. Após a publicação desta elevada taxa, o Serviço de Estatística suspendeu a informação sobre o desemprego dos jovens durante seis meses, até janeiro de 2024, altura em que foi comunicada uma redução para 14,9%. Este sucesso foi conseguido através da alteração da base de cálculo (faz lembrar manipulações idênticas nas estatísticas de desemprego ocidentais): Por exemplo, os jovens subempregados que trabalham apenas uma hora por semana deixaram de ser considerados desempregados. Esta tendência para o branqueamento parece também estar a aumentar no cálculo do crescimento económico. Enquanto o jornal Financial Times publicou estimativas de crescimento do PIB de 1,5 por cento para 2023, a previsão oficial na China é de 5,2 por cento.

A dimensão da dívida nacional da China também não é clara, o que também está ligado à existência de um vasto sector de bancos-sombra, ou seja, empresas financeiras fora do sistema bancário regular. Uma nova montanha de dívidas foi acumulada sobretudo no âmbito da gigantesca bolha imobiliária na República Popular capitalista de Estado. De acordo com os números oficiais, a dívida total da China ascende atualmente a cerca de 287% do PIB. No entanto, a China não está endividada no estrangeiro, como a Argentina, com cerca de 283 mil milhões de dólares. Isto dá a Pequim uma margem de manobra muito maior em termos de política económica. A bolha de dívida chinesa é de origem interna: foi iniciada pelas medidas de estímulo económico abrangentes que se seguiram ao rebentamento da bolha imobiliária transatlântica nos EUA e em partes da Europa. Nesta situação, Pequim conseguiu compensar o colapso da economia exportadora chinesa com programas de investimento gigantescos. Desde então, já não são as exportações, mas o sector imobiliário especulativamente inflacionado que tem sido o pilar mais importante da economia chinesa, contribuindo entre 20 e 30 por cento para o PIB da República Popular, de acordo com várias estimativas (mesmo em Pequim, provavelmente não sabem ao certo).

É indiscutível que os efeitos económicos do boom do investimento a longo prazo e no imobiliário, que tem funcionado como motor económico fundamental desde a crise de 2008, estão a diminuir. Ao mesmo tempo, as consequências negativas da bolha especulativa que se esvaiu estão a aumentar e os custos de estabilização do sector imobiliário e financeiro estão a subir. A classe média chinesa investiu 70 por cento das suas poupanças no ouro do betão. Enquanto os preços dos imóveis estavam a subir para níveis absurdos e as empresas de construção estavam a captar mais capital do que o necessário para financiar a construção, o crescimento parecia ilimitado. Mas quando os preços caíram e o dinheiro dos novos investimentos deixou de ser suficiente para cobrir as responsabilidades crescentes das empresas de construção e Pequim começou a cortar a liquidez da esfera financeira, todo o mercado imobiliário ficou à beira do colapso.

… no capitalismo de crise autoritário

Trata-se de um gigantesco esquema de pirâmide que ultrapassa em muito as dimensões da bolha imobiliária ocidental, e que só foi iniciado quando esta rebentou em 2008. Milhões de pequenos investidores da classe média estão em vias de perder os seus investimentos imobiliários, que consistem em edifícios em ruínas em cidades fantasma. Só os dois grupos de construção ameaçados, Evergrande e Country Garden, acumularam uma montanha de dívidas no valor de 500 mil milhões de dólares. Em Hong Kong – onde os dois gigantes da construção estão cotados na bolsa –, foi ordenada a liquidação do Evergrande, mas é pouco provável que esta ordem seja executada na China (os credores também interpuseram acções semelhantes contra o Country Garden). Por razões de estabilidade política, Pequim não pode simplesmente dar-se ao luxo de arruinar milhões de pequenos investidores, pois isso quebraria o pacto informal entre o partido e a população, baseado em garantias de prosperidade.

Evergrande e Country Garden são apenas a famigerada ponta da montanha de dívidas no sector imobiliário. Pequim, no entanto, tem de manter a fachada de uma economia em expansão e adiar a crise. Este facto revela também a inferioridade dos sistemas capitalistas de Estado autoritários em comparação com a dominação sem sujeito do capital nas democracias burguesas tardias, que é executada através da mediação da política, do mercado e do sistema judicial. Os “comunistas” da China simplesmente não podem dar-se ao luxo de eleger para a presidência um cabeça quente empunhando uma motosserra que fará o trabalho sujo da política social até ser votado para fora do cargo pela população empobrecida.

Foi por isso que Pequim deu recentemente uma reviravolta na política económica e monetária. Que equivale a abandonar os esforços para controlar a deflação da bolha imobiliária. A China já tinha tentado travar a especulação no sector imobiliário e na esfera financeira em 2018 e 2020 através de práticas restritivas de crédito e da política monetária. Mas agora os crescentes choques políticos, económicos e financeiros obrigaram Pequim a regressar a uma política monetária expansionista. Em janeiro de 2024, as directrizes para as reservas de capital dos bancos foram flexibilizadas e os empréstimos foram facilitados para as próprias empresas de construção que tinham acumulado gigantescas montanhas de dívidas ao longo de anos de empréstimos desenfreados. A tentativa de cortar o fornecimento de dinheiro à mãe chinesa de todas as bolhas especulativas foi abandonada.

O Partido “Comunista” tornou-se praticamente refém da maior especulação imobiliária da história da humanidade. Por vezes, as empresas estatais de construção recebem simplesmente instruções para concluir projectos imobiliários não rentáveis, a fim de minimizar a instabilidade política. Algo semelhante – embora em menor escala – está a acontecer no mercado de acções chinês, que registou uma queda acentuada dos preços devido à saída de capitais. O partido respondeu dando instruções aos fundos soberanos para comprarem mais acções nos mercados, a fim de apoiar os preços das acções. É mais do que questionável se o Partido Comunista Chinês será capaz de manter por muito mais tempo esta estratégia dispendiosa de adiamento da crise, tendo em conta os elevados níveis de endividamento das autoridades locais e municipais – que obtiveram dinheiro principalmente através da venda de terrenos a empresas imobiliárias.

As opções da política de crise do bizarro capitalismo de Estado de mercado financeiro ao estilo chinês são ainda mais limitadas pela crescente dinâmica da deflação. Enquanto na Argentina a desvalorização do valor na sequência da crise global do capital assumiu a forma de inflação, na China é a deflação que resulta da incipiente desvalorização no sector imobiliário e na esfera financeira (mercados bolsistas). Em janeiro de 2024, os preços na China caíram 0,8% em termos anuais – o quarto mês consecutivo. Se a tendência deflacionista se mantiver, a República Popular enfrenta a ameaça de uma década perdida, tal como a sofrida pelo Japão após o colapso da bolha imobiliária japonesa na década de 1990, quando a queda da procura e a relutância em comprar levaram à estagnação. É por isso que Pequim alargou a sua viragem para uma política monetária expansionista em fevereiro, com um corte na taxa de juro de 4,2% para 3,95% – mas isto também é susceptível de alimentar novamente o fogo da especulação no sector imobiliário.

Diferentes desenvolvimentos da crise

A política de crise de Pequim consiste, portanto, em adiar a crise e gerir uma economia Potemkin, cada vez mais frágil e encenada. A reviravolta da política monetária introduzida em janeiro de 2024 também serve este objectivo. As medidas de estabilização do Partido Comunista Chinês parecem, assim, diametralmente opostas à política de crise de Buenos Aires: A China está a lutar contra a deflação, enquanto na Argentina a inflação deve ser reduzida o mais possível. A Argentina procura o favor dos credores estrangeiros e do FMI, enquanto Pequim se debate com as consequências de uma bolha de dívida económica interna. O anarcocapitalista Milei, preso no seu culto pseudo-religioso do capital, opta por um fim no horror, pelo sadismo da austeridade. Espera encontrar a purificação da crise através do sofrimento de milhões. O Partido “Comunista”, pelo contrário, prolonga o horror sem fim. Aqui domina o medo das consequências políticas de uma crise na economia chinesa. E, no entanto, estas são apenas formas diferentes de desenvolvimento da crise num sistema capitalista global que está a sufocar na sua produtividade e que só conseguiu reproduzir-se durante décadas formando bolhas e fazendo dívidas.

Tomasz Konicz publicou recentemente o livro eletrónico “Faschismus im 21. Jahrhundert: Skizzen der drohenden Barbarei [O fascismo no século XXI: Esboços da barbárie iminente]”.

Original “Zwei Wege im Schla­massel” in konicz.info 07.05.2024. Antes publicado em iz3w-nº 402, 06.05.2024. Tradução de Boaventura Antunes

https://www.iz3w.org/artikel/inflation-kapitalismus-argentinien-china-regulation-deregulierung
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