A escalada no Médio Oriente pode desencadear sem querer um grande conflito regional
17.10.2023, Tomasz Konicz
Mais de 1300 israelitas mortos – e uma jogada diplomática arruinada. A ofensiva desenfreada do Hamas foi bem sucedida não só no seu objetivo anti-semita de matar o maior número possível de judeus e traumatizar a sociedade israelita. O excesso de violência também torpedeou, para já, a aproximação entre Israel e a Arábia Saudita que tinha sido mediada por Washington. Por altura das eleições norte-americanas de 2024, a administração Biden queria concretizar a normalização das relações entre os seus mais importantes aliados regionais, o que é pouco realista tendo em conta a escalada em Gaza. As esperanças de normalização das relações entre Jerusalém e Riade podem tornar-se mais uma „vítima da guerra“, noticiaram os media americanos alguns dias após o início da guerra.
No entanto, esta última iniciativa assenta num trabalho diplomático de longo prazo. Em setembro de 2020, os Estados Unidos mediaram o chamado Acordo de Abraão, ao abrigo do qual foi iniciada a normalização das relações entre Israel, Emirados Árabes Unidos e o Barém. Marrocos e o Sudão juntaram-se a este processo de normalização, que levou ao estabelecimento de missões diplomáticas nos Estados participantes. Anteriormente, Israel encontrava-se em grande medida isolado na região. Este processo de normalização foi lubrificado, sob os auspícios de Washington, por amplos incentivos económicos: turismo, comércio bilateral, investimentos e negócios de armas. Com o acordo da altura, o governo de direita do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu esperava estabelecer relações diplomáticas e económicas sem negociar o estatuto dos territórios palestinianos. No entanto, um ano após a assinatura do acordo, o canal de notícias Aljazeera, do Qatar, noticiava tensões entre Israel e os Emirados sobre a questão palestiniana.
Desacordo diplomático
No caso da Arábia Saudita, peso pesado sunita, que deveria tornar irreversível o processo de normalização israelo-árabe, Washington estava mesmo disposta a tocar no tabu nuclear. À ditadura wahabita foi prometido não só um acordo militar global, mas também um programa nuclear. Este corresponderia „ao que os arqui-rivais do Irão desenvolveram“, como afirmam os media americanos. A recente aproximação a Israel prometia benefícios económicos e políticos tangíveis no Médio Oriente, em parte porque a supremacia na região é contestada. As potências tradicionalmente dominantes da região árabe, o Egipto e a Arábia Saudita, enfrentam agora dois concorrentes poderosos, a Turquia e o Irão.
A rentável aproximação a Jerusalém parecia ser, em várias capitais árabes, um bom contrapeso geopolítico à luta do Irão e da Turquia pelo domínio – até ao assassínio em massa do Hamas. Tanto o governo de Teerão como o Presidente turco Recep Tayyip Erdoğan, que apoia abertamente o Hamas, têm sido particularmente duros nas suas críticas a Israel e aos EUA na crise de Gaza, a fim de obter capital político da crise nas ruas árabes. Assim, os regimes autoritários da região árabe também vêem a escalada em Gaza como um factor de insegurança interna, uma vez que a exacerbação das emoções e os protestos maciços contra a dura campanha militar israelita poderiam dar um impulso ao extremismo islâmico.
Segundo o Secretário-Geral da Liga Árabe, Hossam Zaki, a declaração final dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da Liga Árabe, de 12 de outubro, condenou „a morte de civis de ambos os lados“ e apelou ao reinício do processo de paz com a OLP, „o único representante legítimo dos palestinianos“. A declaração pode ser entendida como um ataque indirecto à legitimidade do Hamas. Países cautelosos como a Jordânia, que há muito se reconciliaram com Israel, mandaram fechar a fronteira com a Cisjordânia por instigação de Jerusalém, por exemplo. Ao mesmo tempo, Amã desmentiu as informações segundo as quais as bases militares do país teriam sido postas à disposição do exército americano.
Os Emirados e o Bahrein condenaram mesmo directamente o ataque do Hamas. Mesmo o ditador sírio Bashar al-Assad, que apenas controla uma parte do território do Estado após a longa guerra civil, não deverá ter qualquer interesse em pegar em armas contra Israel, dada a fragilidade do seu aparelho de Estado. Para além de Ancara e Teerão, a Síria e o Qatar, financiador do Hamas, também condenaram fortemente Israel. Devido à pressão interna das forças wahabitas, a Arábia Saudita também condenou as acções militares do governo israelita, sublinhando assim verbalmente a sua pretensão de liderança no mundo árabe.
Um confronto militar directo com Israel e os EUA até o Irão parece querer evitar. Enquanto o Hezbollah ameaçava com guerra contra o Estado judaico no caso de uma ofensiva terrestre em Gaza, Teerão, no decurso de declarações públicas de solidariedade com o Hamas, apressou-se a negar qualquer envolvimento concreto no planeamento da sua ofensiva terrorista. Teerão parece querer utilizar o corredor xiita (Iraque, Síria, Sul do Líbano) para travar uma guerra por procuração contra Israel, através do Hezbollah, em caso de escalada.
Mesmo a famosa milícia xiita, que controla partes do Líbano, parece estar a manter o seu anúncio de que só atacará no caso de uma ofensiva terrestre. Ninguém que detenha um poder estatal cada vez mais frágil na região árabe quer a guerra. Tendo em conta os processos de crise e de desintegração dos Estados e das sociedades da região, a guerra pode transformar-se numa conflagração descontrolada.
Impulso para o Hamas
No entanto, as tensões na região estão a aumentar devido à crise, por exemplo, entre o Egipto e Israel. O Egipto recusa-se a acolher os refugiados de guerra de Gaza. Enquanto o governo israelita, nas palavras do seu exército, exige a sua evacuação para o Sinai, a fim de poder destruir livremente o Hamas. O Cairo, por outro lado, quer abastecer os habitantes de Gaza, que estão sob fogo constante e cujas linhas de abastecimento foram cortadas por Israel, com comboios humanitários organizados conjuntamente com outros países árabes, como a Jordânia. O exército israelita quer que o seu próprio ataque ao posto fronteiriço egípcio de Gaza seja entendido como um tiro de aviso para contrariar este plano. O Cairo, por outro lado, vê qualquer evacuação de palestinianos da Faixa de Gaza como uma limpeza étnica da região, como uma segunda Nakba que deve ser evitada a todo o custo.
Entretanto, devido a estas tensões, o exército israelita parece estar a avançar para atacar primeiro o norte da Faixa de Gaza. A sua população de cerca de 1,1 milhões de pessoas recebeu ordens, a 13 de outubro, para fugir para o sul da Faixa de Gaza no prazo de 24 horas. A estreita faixa de terra é uma das zonas mais densamente povoadas do mundo. Mais de dois milhões de palestinianos, governados de forma autoritária pelo Hamas, estão assim presos entre as frentes deste conflito assassino. O regime militar do Egipto, que esteve à beira de instaurar o domínio da Irmandade Muçulmana durante a primavera Árabe, não quer uma escalada com Israel. No entanto, a crise, a disputa por milhões de pessoas detidas na prisão a céu aberto de Gaza, economicamente „supérfluas“ aos olhos do Egipto, empurra o país para mais confrontação e desestabilização.
Em contrapartida, as forças islamistas „pós-estatais“, como o Hamas, que se vêem em oposição aos porosos regimes árabes, têm um interesse real na escalada. O assassínio em massa pelo Hamas de habitantes de kibutz e de hippies ravers em Israel pode, portanto, ter tido também em conta um cálculo pan-árabe: A normalização de Israel na região árabe é torpedeada por este facto, e a pressão bélica da rua empobrecida esperada pelo Hamas destina-se a dar um impulso ao islamismo.
Original “Kurz vor dem Flächenbrand” in “analyse & kritik – Zeitung für linke Debatte & Praxis”
17.10.2023. Tradução de Boaventura Antunes