Crash Tech Dummies

konicz.info, 27.04.2023
A crise climática e a iminente escassez alimentar estão a dar um novo ímpeto à engenharia genéticako

A „fuga para a frente“ do capital das suas próprias contradições constitui uma característica central dos 300 anos de história do sistema mundial capitalista – tanto económica como ecologicamente. Sempre que o processo de valorização se deparou com limites económicos, sociais ou ecológicos, o capital respondeu intensificando os seus esforços expansionistas. A conquista imperialista e a incorporação sangrenta de todas as regiões periféricas do mundo no mercado mundial, a expansão interna do capital em todas as esferas da sociedade e a abertura científico-tecnológica de mercados sempre novos – são o resultado do „levar ao extremo“ do capital, para que Karl Marx encontrou o genial conceito de „contradição em processo“.

A essência da relação do capital como contradição em processo é expressa de forma quase paradigmática na crise climática em pleno desenvolvimento, a qual, segundo estudos actuais, levará a uma deterioração significativa do abastecimento alimentar mais cedo do que o previsto. Já nas próximas duas décadas, espera-se que as colheitas das culturas globais de alimentos básicos como milho, arroz e soja caiam significativamente, de acordo com um estudo publicado pela revista “Nature Food”. E a crise alimentar que se avizinha não afecta apenas a periferia.

Em alguns países centrais, como o Reino Unido devastado pelo Brexit, as organizações de agricultores já estão a fazer soar o alarme face ao início da desglobalização e da tendência imparável para o proteccionismo: o Reino Unido está prestes a entrar numa „crise de abastecimento alimentar“ se o governo não intervier, advertiu a National Farmers Union (NFU) no final de 2022. De acordo com a BBC, a escassez está a tornar-se evidente em vários vegetais, como tomates e pepinos, mas também em ovos, que por vezes são racionados nos supermercados. Segundo o relatório, o rápido aumento dos preços e as consequências do Brexit, que torna as importações de alimentos mais difíceis, são as principais razões para a situação de escassez da oferta. A situação no Japão é também dramática: a taxa de auto-suficiência alimentar da nação industrial orientada para a exportação caiu de 73% em 1965 para apenas 38% no ano passado. Esta taxa de auto-suficiência, a mais baixa de todas as nações industrializadas, obriga Tóquio a „introduzir imediatamente reformas abrangentes“, uma vez que o Japão é „particularmente vulnerável no agravamento da crise alimentar“, alertou o „Financial Times“ já no Outono passado.

Que fazer face à crise de abastecimento cada vez mais evidente? O mais sensato seria reduzir as emissões de gases com efeito de estufa o mais rapidamente possível. Uma vez que o sector agrícola capitalista altamente industrializado é responsável por grande parte das emissões (as estimativas variam entre 23 e 36 por cento), o que seria necessário acima de tudo seria uma rápida transformação da indústria agrícola, no sentido de uma actividade económica ecologicamente sustentável e com baixas emissões. Mas o que está realmente a ser propagado neste momento na política e na opinião pública em geral é a utilização de novos métodos de engenharia genética para fazer face à escalada da crise climática. Para o sector agrícola e biotecnológico, a iminente escassez de alimentos é simplesmente uma oportunidade para ajudar os novos produtos da engenharia genética a alcançar um avanço no mercado. Plantas resistentes ao calor ou à seca que podem crescer em solos esgotados e salinizados e são resistentes a pragas – estas são as distópicas promessas publicitárias da engenharia genética.

A tesoura genética e o clima

Desta vez são as chamadas tesouras genéticas que estão a ser enaltecidas como uma arma milagrosa contra as consequências das alterações climáticas. O chamado procedimento CRISPR/Cas9 (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) utiliza a „tesoura molecular mais eficiente e melhor“ à disposição da ciência para modificar o material genético, explicou o biólogo molecular Holger Puchta durante uma entrevista à Deutschlandfunk em 2019, que de certo modo deu o sinal de partida para a campanha publicitária para as novas formas de manipulação genética. Estas tesouras genéticas moleculares permitem realizar mutações muito precisas nos genes das plantas. Não são introduzidos genes estranhos, como é o caso das plantas transgénicas, tais como variedades de milho, nas quais foram inseridos genes de bactérias para as tornar resistentes a pragas. Puchta compara o método CRISPR a uma operação com um „bisturi“, enquanto métodos mais antigos, tais como a irradiação radioactiva das plantas para desencadear mutações, assemelham-se ao uso de „uma espingarda de caça“. Além disso, as tesouras genéticas tornaram-se cada vez mais baratas de utilizar, de modo que „muitas pequenas e médias empresas poderiam desenvolver novas tecnologias inteligentes“ se a regulamentação relativamente restritiva da UE sobre engenharia genética as permitisse.

Actualmente, aplicam-se às plantas produzidas pelo processo CRISPR/Cas9 os mesmos regulamentos que aos produtos genéticos transgénicos, o que é visto como uma grande injustiça pelos proponentes da tesoura genética. Como não é possível determinar para estas plantas „se a engenharia genética foi ou não utilizada“, diz Puchta, as actuais disposições legais são „um disparate legal“. As plantas concebidas pela engenharia genética deveriam ser mais bem enquadradas na „lei das variedades vegetais“ para que as „pequenas e médias empresas“ pudessem também suportar os custos da aprovação. Fantástico. O que é que pode correr mal se todas as pequenas e médias empresas puderem usar a tesoura genética à vontade, sem que os produtos finais sejam sequer reconhecíveis como organismos geneticamente modificados? Além disso, existem as queixas habituais de que a Europa poderia ser deixada para trás pelos EUA ou pela China neste novo mercado, que vale milhares de milhões, se as restrições não forem atenuadas.

Nos últimos quatro anos, os lobistas empresariais, muitas vezes funcionando sob a capa da ciência objectiva, têm conseguido muito. O „Financial Times“ relatou em Novembro de 2022 que, sob a impressão de eventos climáticos extremos, catástrofes naturais e colapsos de culturas, o „estado de espírito se inclinaria“ entre as elites funcionais da UE – a favor da „nova“ engenharia genética. Já em Setembro de 2022, os ministros europeus da agricultura apelaram a Bruxelas para que empreendesse uma „reavaliação“ do regulamento relativo aos OGM. Em Outubro de 2022, a Comissão Europeia anunciou que relaxaria a regulamentação sobre „algumas tecnologias de edição do genoma no segundo trimestre de 2023“. Segundo a Comissária de Bruxelas Stella Kyriakides, as alterações climáticas e a perda de biodiversidade significam que „a biotecnologia tem o potencial“ como „parte de uma mudança mais ampla“ para ajudar o sector agrícola a „tornar os nossos alimentos mais sustentáveis“. O FDP já vê uma oportunidade na nova indústria, relatou o „Tagesspiegel“ em meados de Janeiro de 2023. A CDU também declarou o seu apoio às „tesouras genéticas“ em Janeiro passado, dizendo que eram necessárias como parte de um „reajustamento da política agrícola europeia e nacional“ porque „as prateleiras cheias no supermercado não são uma coisa natural“.

Avançam as abelhas-robôs

Mesmo que as promessas do sector da genética se tornem realidade pelo menos parcialmente desta vez, esta „fuga“ capitalista para novos mercados representa um mero lutar contra os sintomas da crise climática, distraindo do facto de que é necessária uma transformação fundamental do sector agrícola capitalista tardio para a sobrevivência. Além disso, a ideia de utilizar a engenharia genética para aumentar as colheitas falha devido à volatilidade do clima que acompanha a crise climática. As plantas que foram concebidas para serem particularmente resistentes à seca, usando tesouras genéticas, por exemplo, dificilmente poderão dar-se bem se de repente chover intensamente durante muito tempo.

Mas como costumam ocorrer as „amplas mudanças“ na UE, visando „reajustar as políticas agrícolas europeias e nacionais“ para „tornar os nossos alimentos mais sustentáveis“? Como? Isto pode ser visto mais recentemente na grande disputa europeia sobre a política agrícola para o período orçamental 2021-27 (Política Agrícola Comum – PAC), quando os lobbies empresariais que agora elogiam a nova engenharia genética foram extremamente bem sucedidos em torpedear as reformas ecologicamente sustentáveis. Assim, a indústria agrícola conseguiu fazer descer a parte dos subsídios ligados à comparticipação em medidas de protecção ambiental de 30 para 20 por cento, embora as perdas reais de subsídios só possam ocorrer a partir de 2025, devido aos períodos de transição negociados. Ah, sim, os próprios Estados da UE podem definir em grande medida os critérios dos seus programas ambientais, o que convida a abusos em grande escala. A Greenpeace queixou-se na altura de „greenwashing da pior espécie“ em Bruxelas, e mesmo o „Frankfurter Allgemeine Zeitung“ declarou que o antigo sistema agrícola seria mantido nas suas características básicas (ver konkret 2020/12).

O apego às estruturas da agricultura industrial e a falta de transformação ecológica do sector agrícola também exacerbam a perda da biodiversidade e a drástica mortalidade de insectos lamentada por Kyriakides. A morte das abelhas, em particular, ameaça levar a colapsos catastróficos de colheitas em muitas culturas. Mas também aqui o capital sabe o que fazer: a investigação sobre abelhas-robôs, que supostamente se encarregariam da polinização com AI, está bem avançada, informou a Deutschlandfunk no final de 2021. Os cientistas sublinharam que os ensaios iniciais são promissores. Robôs voadores e „criaturas híbridas“ oferecem uma „abordagem promissora para lidar com a crise da polinização“, disse Eijiro Miyako, do Instituto de Investigação Tecnológica Industrial do Japão, à revista Forbes. É „uma tecnologia de baixo custo“, disseram também na Deutschlandfunk, que se pode „produzir em massa“, não importando se „metade deles não voltam depois de voos exploratórios“. Um princípio empresarial perfeito, por assim dizer, que cria permanentemente a sua própria procura.

  • Em inglês no original. “Crash Tech Dummies” evoca os “Crash Test Dummies” da indústria automóvel (literalmente: bonecos para o teste de acidente), sendo então “Crash Tech Dummies” bonecos para a tecnologia do acidente/crash… (N. T.)

Original “Crash Tech Dummies” em konicz.info, 27.03.2023. Antes publicado em Konkret 03/2023. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.konicz.info/2023/03/27/crash-tech-dummies/

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