A oportunidade perdida de Kiev?

Tomasz Konicz, 21.01.2023

Na guerra sobre a Ucrânia aproxima-se um novo ponto de viragem – e uma nova escalada com consequências incalculáveis.

Em retrospectiva, a reconquista da cidade sul-ucraniana de Kherson pelo exército ucraniano em Novembro de 2022 pode de ser identificada como o momento irremediavelmente perdido em que houve condições ideais para conversações de paz sérias.1 O moral das forças invasoras estava de rastos após a humilhante derrota, enquanto os sinais nesse sentido provenientes do Kremlin culminaram numa oferta oficial de negociações por Putin em Dezembro.2 Na altura Kiev recusou um possível acordo com o Kremlin. Entretanto uma lei proíbe o presidente ucraniano de participar em negociações com Moscovo enquanto Putin estiver em funções.

O triunfo de Kherson foi precedido pela bem sucedida ofensiva relâmpago no oblast de Kharkov,3 onde as tropas russas literalmente entraram em colapso e enormes áreas foram reconquistadas pelas forças ucranianas em poucos dias. A vitória ucraniana no oblast de Kharkov marcou um ponto de viragem na guerra, em que a iniciativa estratégica passou para a Ucrânia, ou seja, Kiev passou a determinar o curso da guerra, enquanto a Rússia estava militarmente na defensiva e só podia reagir. Mas a reconquista de Kherson já foi árdua, prolongada e comprada com elevadas perdas de homens e material para o exército ucraniano – e só foi possível com o corte das linhas de abastecimento russas graças à destruição das pontes sobre o Dnieper pela artilharia.4

Agora, dois meses após a retirada russa de Kherson, foi o exército ucraniano que teve de se retirar com pesadas perdas da povoação mineira de Soledar, a norte da cidade de Bachmut, que tem vindo a ser disputada há meses.5 As tropas mercenárias do oligarca do Kremlin Yevgeny Prigozhin conseguiram capturar a pequena cidade e cercar as formações ucranianas, que foram completamente exterminadas após a recusa de rendição. Os canais russos do Telegram estão cheios de vídeos com centenas de soldados ucranianos mortos em Soledar. Ambos os lados perderam milhares de soldados e grandes quantidades de material na batalha. A guerra há muito que se tornou uma guerra de desgaste, com o Kremlin à espera que „a Ucrânia fique sem recursos primeiro“, como disse um informador interno ao Financial Times.6

É a lógica de Verdun de „sangrar o inimigo até ficar branco“ que se aplica aqui. Em 1916, o Chefe do Estado-Maior General Erich von Falkenhayn quis roubar literalmente ao exército francês o seu „material humano“ na batalha de desgaste em torno do local simbólico, que seria literalmente abatido a tiro num processo industrial de aniquilação. A situação é semelhante na frente de Bachmut, que há muito se tornou um símbolo da guerra no leste da Ucrânia. A Ucrânia foi construindo uma linha de defesa firme e estática no Donbass durante anos – desde a guerra civil em 2014 – que foi agora violada em Soledar. No entanto, conseguida uma ruptura pontual numa frente de fortificações assim estática, esta tem de ser abandonada como um todo a médio prazo e tem de ser construída uma nova linha de defesa, caso contrário toda a frente pode ser „penetrada“ por ataques de flanco. Uma nova linha de defesa já está a ser construída em Kramatorsk/Slovyansk.

Foi por isso que o exército ucraniano tentou tão desesperadamente impedir por todos os meios o avanço russo em Soledar, que torna a retirada de Bachmut uma mera questão de tempo. E ambos os lados estão a fazer isto com material humano. Novas unidades têm de ser repetidamente atiradas para a batalha para tapar a brecha na frente ou para prolongar o avanço, enquanto o outro lado as desfaz em pedaços usando o rastreio assistido por drones e ataques de artilharia. A maioria dos mortos nesta guerra são vítimas de projécteis de artilharia e nunca viram um inimigo em combate de proximidade. Sem exagero, já se pode afirmar que esta guerra irá ceifar centenas de milhares de vidas humanas. Os cemitérios da Ucrânia em rápida expansão assemelham-se actualmente a um mar de bandeiras, onde têm de ser cavadas permanentemente novas sepulturas para os caídos.7

Ambos os lados já perderam milhares de soldados apenas na batalha por Soledar, mas o Kremlin conseguiu aparentemente estabilizar a sua máquina militar após os desastres e catástrofes dos últimos meses. Mesmo que o aparelho militar lento e corrupto ainda cometa por vezes erros graves, que custam a vida a centenas de reservistas recrutados,8 a situação de abastecimento das unidades militares russas tem pelo menos desanuviado. A escassez catastrófica que caracterizou os primeiros meses da guerra foi claramente atenuada por uma melhoria da logística russa.

A ideia de que os atentados terroristas russos contra as infra-estruturas civis da Ucrânia seriam travados por uma escassez de mísseis foi abalada pela última vaga de ataques em meados de Janeiro, em que foram atingidos dezenas de alvos.9 Os ataques de Inverno ao fornecimento de energia estão a infligir os mais graves os danos às infra-estruturas da Ucrânia, uma vez que os cortes prolongados de energia durante os períodos de congelamento destroem os sistemas de água e esgotos devido ao rebentamento das condutas. Há milhares de milhões em danos que podem resultar disto.

Mais ainda, o Kremlin está agora a preparar a economia russa para uma longa guerra, enquanto os esforços de reorganização da administração militar e das infra-estruturas deverão conduzir a uma taxa de mobilização permanentemente mais elevada. O Kremlin já está a pensar em termos de guerra de anos: O número de militares russos deverá aumentar de um milhão para 1,5 milhões até 1926.10 Neste contexto, o Institute for the Study of War (ISW) fala de medidas organizativas para permitir à Rússia travar uma „grande guerra convencional“.11 Segundo o ISW, é de esperar uma „acção estratégica decisiva“ do exército russo para inverter a maré da guerra nos próximos seis meses.

A mobilização parcial russa de 300.000 reservistas está agora quase completa, apesar de todas as fricções e deficiências, de modo que várias opções para uma ofensiva russa estão a ser discutidas há muito tempo. Entretanto, a concentração das tropas russas na Bielorrússia está a forçar a Ucrânia a destacar unidades militares urgentemente necessárias no leste para proteger a fronteira no noroeste. A Rússia declarou recentemente que um „ataque da Ucrânia“ à Rússia ou à Bielorrússia poderia levar a uma resposta militar conjunta por parte de ambos os países – é um livre-trânsito deliberadamente vago para a Bielorrússia entrar na guerra.12 Outros cenários consideram provável um ataque russo do sul, que teria lugar a leste do Dnieper em direcção a Zaporíjia e Pavlograd, ou do norte, da região russa de Belogrod, para atacar a frente ucraniana nos oblasts de Kharkiv e Lugansk pelas costas.

A Rússia tem muito mais potencial militar e económico do que a Ucrânia, e foram a megalomania, o nepotismo e a corrupção generalizada da oligarquia estatal de Putin que levaram aos desastres russos do primeiro ano da guerra. Mas agora os esforços do Kremlin para mobilizar estes recursos superiores parecem ter sido pelo menos parcialmente bem sucedidos. Em linguagem simples: o Kremlin ganhará a guerra a médio prazo se o Ocidente não estiver preparado para dar mais um passo em frente – para fornecer maciçamente equipamento de guerra pesado como tanques, helicópteros de combate e aviões de combate. É por isso que a discussão sobre isto está a ganhar força entre o público ocidental.13 É uma admissão implícita que a balança da guerra ameaça pender para o lado da Rússia.

O exército ucraniano – tal como a Rússia – sofreu enormes perdas de homens e de material, com poucas opções para substituir o material. Faz sentido militarmente para Kiev exigir do Ocidente tanques alemães e veículos blindados americanos para poder regressar à guerra em movimento. Se se pretender que a maré de guerra não vire, então o Ocidente tem de expandir de facto grandemente o fornecimento de armas. A entrega dos tanques britânicos a Kiev é apenas um balão de ensaio,14 para que Berlim concorde com a entrega dos Leopard. Apenas alguns exemplares do Challenger2 britânico foram exportados, e não há infra-estruturas militares para este tanque, enquanto o Leopard2 foi um sucesso de exportação, que muitos países podem fornecer à Ucrânia – juntamente com peças sobressalentes, munições e material de manutenção.15

Onde esta escalada está a levar foi esclarecido pelas reacções dos deputados da Duma russa à potencial entrega de tanques alemães, apelando à mobilização geral neste caso.16 A verdade brutal é que não há uma saída „boa“ desta guerra imperialista.17 Ou haverá um acordo geopolítico sujo entre o Ocidente e o Kremlin, no qual partes da Ucrânia oriental serão de facto incorporadas no império russo, enquanto o resto do país é acrescentado à esfera de influência ocidental, ou a espiral de escalada continuará, e o conflito escalará até que a guerra fique completamente fora de controlo. Com a ameaça de perda da Crimeia, o mais tardar, a opção nuclear tornar-se-á aguda.

A perda de controlo pode assim naturalmente assumir a forma de uma troca de golpes nucleares, uma vez que a Rússia, em última análise, está em desvantagem em relação à NATO nesta espiral de escalada convencional. Mas o Armagedão nuclear também pode ocorrer em interacção com processos de erosão do Estado. As fissuras na estrutura de poder do Estado são claramente visíveis, em particular na Rússia autoritária, uma vez que a guerra expôs precisamente a ruptura e erosão interna do Estado russo, que já estão a afectar o seu núcleo militar. Em geral, as estruturas estatais autoritárias não são um sinal de força, mas um sinal de fraqueza sócio-económica, que só pode ser mascarada durante algum tempo através da pura coerção.

O fracasso do exército russo devorado pela corrupção contrasta com o sucesso dos actores militares pós-estatais: a trupe de mercenários Wagner em torno do favorito do Kremlin Prigozhin, que está agora em competição aberta com a liderança do exército, ou as tropas do governante checheno Kadyrov, que de facto estabeleceu um principado pós-moderno no Cáucaso, que só formalmente está sob o controlo de Moscovo, enquanto Kadyrov desempenhar o seu serviço militar vassalo para o Kremlin. É provável que avance na Rússia a formação de estruturas de poder paralelas, que eliminem mesmo a aparência de um monopólio estatal do uso da força, à medida que a guerra continuar. É também fundamentalmente errado pensar em Putin como um autocrata todo-poderoso, pois ele desempenha mais um papel mediador entre os vários bandos e clãs da oligarquia estatal russa.18

Mas forças centrífugas semelhantes estão provavelmente em acção no aparelho de Estado ucraniano, que era um mero joguete de interesses oligárquicos já antes do início da guerra.19 Um breve vislumbre das lutas pelo poder em Kiev foi proporcionado pela demissão do conselheiro presidencial ucraniano Oleksiy Arestovych, que foi oficialmente obrigado a demitir-se devido aos seus comentários sobre o mortífero ataque com mísseis russos em Dnipro.20 Arestovych declarou inicialmente que o míssil russo que destruiu um arranha-céus em Dnipro e matou dezenas de civis tinha sido abatido pelas defesas anti-aéreas ucranianas. Antes disso Arestovych tinha sido crítico em relação à política de identidade da Ucrânia em tempo de guerra numa entrevista. De acordo com a entrevista, a direita ucraniana está a conduzir uma campanha nacionalista para suprimir as identidades russa e „pós-soviética“ na Ucrânia oriental, o que está a alienar muitos ucranianos de língua russa do governo de Kiev (a entrevista é partilhada principalmente por contas pró-russas).21 Os grupos de extrema-direita que estão a ganhar influência e que por vezes se tornam oficialmente parte das forças armadas22 serão provavelmente o maior factor de instabilidade na Ucrânia no decurso da guerra no futuro.

As hipóteses de a Ucrânia ainda conseguir ganhos decisivos no terreno contra a Rússia – abaixo do limiar de uma grande guerra entre o Leste e o Ocidente – são cada vez menores, enquanto os números de baixas desta guerra imperialista aumentarão cada vez mais a cada passo de escalada. Tanto em termos de vidas humanas como em termos da devastação das infra-estruturas e especialmente das cidades do leste da Ucrânia, que estão a ser desenvolvidas como pontos centrais de defesa pelo exército ucraniano, que é experiente na guerra urbana. E mais: A guerra não só leva à devastação de regiões inteiras no Leste, como também acelera os processos de erosão estatal e social, que já estão em acção devido à crise, na sua interacção de forças centrífugas anómicas e formação autoritária.23

E no entanto permanece questionável se mesmo um acordo imperialista sujo, no qual a Ucrânia seria efectivamente dividida entre Ocidente e Leste, ainda é uma opção realista. Putin fixou para si próprio um objectivo oficial mínimo para a sua apropriação imperialista de terras quando fez votar os referendos fictícios sobre a adesão de quatro regiões administrativas ucranianas à Federação Russa. Contudo, o Donbass, Kherson e Zaporíjia estão apenas parcialmente sob controlo russo. Sem o Donbass e Kherson, o Kremlin dificilmente poderá vender como uma vitória o curso desastroso da guerra, que devora vastas quantidades de recursos, material e dinheiro, e está associado a perdas muito elevadas. Em Kiev, por outro lado, qualquer tentativa de negociações sérias com o Kremlin deverá encontrar resistência da extrema-direita, que está armada até aos dentes.24 E até o Ocidente está dividido sobre o assunto: Os EUA, o Reino Unido e os vizinhos orientais da Rússia – especialmente a Polónia – querem continuar a guerra, enquanto a Alemanha e a França estariam dispostas a fazer um acordo com Moscovo.25

A crise sócio-ecológica do capital, o entrelaçamento dos limites internos e externos do capital, a crise de sobreprodução prolongada por endividamento, bem como a crise do clima e dos recursos, estão a alimentar cada vez mais esta prontidão geopolítica e imperialista dos monstros estatais para o confronto. Os recursos e os solos férteis de terra negra da Ucrânia tornar-se-ão cada vez mais importantes à medida que a crise ecológica se intensifica. O Kremlin também está a lutar literalmente pela existência do seu império em erosão, estilhaçado por tensões sociais,26 enquanto os Estados Unidos sobreendividados têm de afirmar o dólar como moeda de reserva mundial e a sua posição de hegemonia. Esta guerra, que está a ganhar força entre a Oceânia (sistema de alianças do Atlântico e do Pacífico de Washington) e a Eurásia (China com a Rússia), está actualmente a grassar apenas na Europa Oriental, mas no futuro poderá também surgir uma segunda frente no Sudeste Asiático, em Taiwan.

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1 https://www.tagesspiegel.de/politik/ukraine-offensive-tag-261-kiews-strategische-glanzleistung-in-cherson-8866336.html

2 https://www.voanews.com/a/putin-says-russia-ready-to-negotiate-over-ukraine-/6890944.html

3 https://www.konicz.info/2022/09/09/wendepunkt-in-der-ukraine/

4 https://www.nytimes.com/2022/09/24/world/europe/ukraine-south-kherson-russia.html

5 https://www.zdf.de/nachrichten/politik/bachmut-soledar-ukraine-krieg-russland-100.html

6 https://www.ft.com/content/d759e24b-dd48-4adc-a0ae-7e53b89e5231

7 https://www.youtube.com/watch?v=1c9dtEeb6EY

8 https://www.bbc.com/news/world-europe-64142650

9 https://www.aljazeera.com/news/liveblog/2023/1/14/russia-ukraine-live-russian-missiles-hits-infrastructure-in-kyiv

10 https://kyivindependent.com/news-feed/russian-defense-ministry-confirms-plan-to-expand-army-to-1-5-million-troops

11 https://www.understandingwar.org/backgrounder/russian-offensive-campaign-assessment-january-15-2023

12 https://www.thedailybeast.com/russia-sets-ultimatum-for-top-ally-belarus-to-formally-join-vladimir-putins-war-in-ukraine?ref=scroll

13 https://www.thedailybeast.com/why-russia-is-terrified-of-americas-patriot-missiles-delivery-to-ukraine

14 https://www.zdf.de/nachrichten/politik/challenger-grossbritannien-ukraine-krieg-russland-100.html

15 https://www.handelsblatt.com/politik/deutschland/ukraine-krieg-deutschland-bereitet-sich-auf-leopard-lieferung-fuer-ukraine-vor/28924168.html

16 https://twitter.com/WarMonitors/status/1614999689304363009

17 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/. Trad. port.: https://www.konicz.info/2022/07/06/o-que-e-imperialismo-de-crise/

18 https://www.konicz.info/2022/05/25/rackets-und-rockets/

19 https://www.konicz.info/2022/06/20/zerrissen-zwischen-ost-und-west/

20 https://www.bbc.com/news/world-europe-64304310

21 https://twitter.com/e_l_g_c_a/status/1615138445051195392

22 https://twitter.com/militarylandnet/status/1526132364702887936

23 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/ Trad. port.: https://www.konicz.info/2022/06/07/a-nova-qualidade-da-crise/

24 https://twitter.com/militarylandnet/status/1526132364702887936

25 https://www.welt.de/politik/ausland/plus243059565/Ukraine-Krieg-Der-Riss-in-der-Nato-zeigt-sich-an-Deutschland-und-Polen.html

26 https://www.konicz.info/2022/01/18/neoimperialistisches-great-game-in-der-krise/ Trad. port.: https://www.konicz.info/2022/02/04/o-grande-jogo-neo-imperialista-na-crise/

Original “Kiews verpasste Chance?” in: konicz.info, 19.01.2023. Publicado também em berlinergazette.de, 20.01.2023, com o título “Abwärtsspirale ohne Ausweg?”. Tradução de Boaventura Antunes

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