09.11.2022. Tomasz Konicz, Tradução de Boaventura Antunes
O perigo de guerra nuclear é maior do que nunca desde o fim da guerra fria
Por esta altura já deveria estar claro, mesmo para o último troll alemão de Putin, que a guerra de agressão do Kremlin na Ucrânia não está a decorrer de acordo com o planeado. A melhor indicação disso é a anexação pela Rússia dos quatro oblasts ucranianos de Lugansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson, o que acabou de acontecer em resposta a uma derrota dramática das tropas russas a leste de Kharkiv em meados de Setembro. Com a mobilização parcial de – por enquanto – 300.000 reservistas e a anexação das quatro regiões do leste e do sul da Ucrânia, o Kremlin optou por uma maior escalada. Que foi exacerbada com os ferozes ataques de mísseis russos a infra-estruturas energéticas e alvos civis em toda a Ucrânia, incluindo a capital Kiev, após uma explosão na ponte estrategicamente importante que liga a Rússia à península da Crimeia, anexada em 2014.
Ajustar os objectivos da guerra
A actual anexação dos quatro territórios foi motivada por vários factores. Por um lado, é um ajustamento dos objectivos da guerra, que são fortemente reduzidos para os privar de qualquer negociação. Estes são os objectivos mínimos de Putin, que já não devem ser objecto de negociações – ao mesmo tempo, fala-se menos de mudança de regime ou algo semelhante na Ucrânia. O Kremlin tem de adaptar às realidades militares as suas ambições imperiais, que apenas há alguns meses atrás viam a Ucrânia como parte da Rússia, a fim de satisfazer simultaneamente a direita russa, a linha dura imperialista e nacionalista, que estão constantemente a pressionar para uma maior intensificação da guerra. No decurso da guerra até agora, Putin tem sido pressionado não pelas forças liberais, mas pelas forças de direita, que há meses vêm exigindo uma mobilização total e uma guerra sem restrições.
Com a anexação – que foi acompanhada de propostas de negociação a Kiev – o Kremlin não só está a sinalizar ao Ocidente o que pretende levar consigo como despojos mínimos da sua aventura imperial, como está também a abrir caminho para a guerra nuclear, para a fase final da escalada. Desde o início de Outubro, o Kremlin tem considerado as regiões ucranianas anexadas como fazendo parte da Rússia, e a doutrina militar russa prevê a utilização de armas nucleares para a defesa nacional, mesmo contra forças convencionais. O perigo de guerra nuclear é actualmente maior do que nunca desde o fim da Guerra Fria, precisamente porque o Kremlin, na sua megalomania imperial, sobrestimou as capacidades militares do exército russo e mal consegue estabilizar a frente na Ucrânia oriental e meridional.
O mais tardar desde a mobilização parcial, que é também uma admissão da fraqueza das forças armadas russas, está em jogo na guerra a sobrevivência política de Vladimir Putin – e em última análise também a física. Os regimes autoritários encorajam a apatia e a indiferença da população com o objectivo de garantir a dominação, razão pela qual Putin resistiu à mobilização durante muito tempo, uma vez que esta irá inevitavelmente politizar a Rússia. Sem ganhos imperiais Putin não pode pôr fim à guerra e sobreviver politicamente, uma vez que a mobilização parcial já está a desestabilizar a estrutura governativa oligárquica de Estado e cleptocrática na Rússia – mesmo antes das elevadas perdas esperadas entre os reservistas – como é actualmente evidente nas suas fronteiras, através das quais dezenas de milhares estão a abandonar o país. Putin precisa assim da vitória na sua guerra imperial sem conseguir alcançá-la. A fuga do Kremlin para um ataque nuclear, que está constantemente a ser ameaçado, parece bastante possível, tendo em conta este impasse do poder político do Kremlin. A utilização de armas de destruição maciça pela decrépita máquina militar russa tornar-se-ia mesmo provável no caso de um avanço das unidades ucranianas para a Crimeia ou para as regiões orientais que já se tinham separado durante a guerra civil em 2014.
Instrumentalização da crise sistémica
Para a Ucrânia, a mobilização parcial e a anexação pela Rússia significa que tudo tem agora de ser apostado na escalada militar. Kiev está a avançar com ofensivas até agora bem sucedidas no leste e no sul da Ucrânia com todas as suas forças para – apesar de todas as perdas – utilizar a janela de oportunidade que resta ao seu exército, equipado e modernizado pelo Ocidente, antes que a mobilização parcial russa se materialize na frente. A anexação de Putin é tornada insubstancial pela incapacidade da Rússia em manter militarmente estes „novos“ territórios, o que ao mesmo tempo deverá contribuir para desestabilizar o „poder vertical“ em torno de Putin. É por isso que Kiev reagiu às propostas de negociação de Putin com um decreto que exclui categoricamente as negociações enquanto Putin for presidente. Isto destina-se a encorajar revoltas palacianas.
Entretanto, não só Kiev, mas também Washington parecem estar a contar com a mesma mudança de regime em Moscovo que Putin queria realmente provocar na Ucrânia com a sua invasão. As apostas neste „Grande Jogo“ imperialista de crise sobre a Ucrânia estão a aumentar cada vez mais, as partes em conflito têm cada vez mais a perder, o que por sua vez torna a desescalada cada vez mais difícil. A explosão do gasoduto do Mar do Norte, que era intolerável sobretudo para os antigos países de trânsito da Europa Central e Oriental e para os EUA, ilustra a vontade de escalada que existe em todos os lados. Por vezes, as tendências de crise, a erosão do Estado e a desintegração do Estado são deliberadamente promovidas: A direita ucraniana vê a desintegração da Rússia como um objectivo estratégico. Há considerações semelhantes nos think tanks ocidentais, onde ainda pode haver um debate sobre se Putin continua a ser necessário como „factor de ordem“. A Rússia, por seu lado, está a tentar, não totalmente sem êxito, pôr de joelhos a Europa Ocidental no próximo Inverno, através da sua guerra económica. Em certa medida a crise sistémica capitalista está a ser instrumentalizada por todas as partes beligerantes.
Constelação de conflito pré-apocalíptica
Assim a estabilidade política está em jogo também para o Ocidente face às crescentes convulsões económicas. Isto é verdade não apenas na Alemanha, onde a nova direita vê uma oportunidade, e a frente transversal, desde partes do Partido da Esquerda até à AfD, já marcha junta, por exemplo em Brandenburg an der Havel, pelo gás natural russo. O aumento da inflação, a ameaça renovada de crise financeira global, a recessão – estas são as contradições internas muito concretas da crise, que também estão a conduzir o Ocidente ao confronto. A atitude intransigente e de escalada de Washington e Berlim em relação ao imperialista Putin, que contrasta com o seu laissez faire em relação às aventuras imperialistas sangrentas do aliado do Ocidente Erdogan, é impulsionada pela mesma lógica de imperialismo de crise que a do „poder vertical“ que se está a desfazer na Rússia. Pretende-se ultrapassar a crise interna com a expansão externa: O dólar em queda deve ser defendido como moeda de reserva mundial literalmente a qualquer preço, o acesso a matérias-primas e fontes de energia, que Moscovo utiliza como arma económica, deve ser restaurado – se necessário através de mudança de regime e colapso do Estado.
Para muitas das principais partes no conflito, não há praticamente qualquer recuo em relação à espiral de escalada. No início de Outubro, Moscovo avisou o Ocidente de um „confronto directo“ se as novas entregas de armas recentemente acordadas com Kiev fossem concretizadas. Um olhar distanciado a esta guerra imperialista de crise revela uma constelação de conflito pré-apocalíptica. Enquanto o capital se desfaz nas suas contradições internas e externas, enquanto as crises climática e económica se agravam, os monstros estatais capitalistas tardios em crise, levados por estas contradições, ameaçam atacar-se uns aos outros – até que o impulso auto-destrutivo do capital seja descarregado numa troca de galhardetes nuclear.
Original “Gefangen in der Eskalationsspirale” in www.exit-online.org, 07.11.2022. Publicado inicialmente em: Analyse & Kritik nº 686, www.akweb.de, 18.10.2022. Tradução de Boaventura Antunes