EVERYTHING IS BIGGER IN TEXAS

Tradução de Boaventura Antunes

Um Estado dos EUA estragado pelo neoliberalismo ofereceu recentemente material ilustrativo para os efeitos da crise climática no capitalismo tardio

Tomasz Konicz, konkret 04/2021.

A economia de mercado parecia querer acabar com muitos trabalhadores assalariados empobrecidos no Estado norte-americano do Texas em meados de Fevereiro. Após tempestades de Inverno excepcionalmente severas, que levaram a um frio extremo neste Estado do sul, os texanos que não ficaram sem electricidade foram confrontados com contas absurdamente altas. Aos clientes que tentaram manter quentes as casas mal isoladas apareceram por vezes contas de mais de 17 000 dólares em poucos dias. Os desempregados, que têm de contar cada cêntimo nos seus apartamentos de uma assoalhada, foram confrontados com custos de electricidade até 450 dólares americanos – por dia, entenda-se – apesar dos seus esforços para poupar dinheiro.

O maravilhoso mercado capitalista, onde a oferta e a procura detêm o ceptro, tornou isso possível: foram muitos os trabalhadores assalariados da classe inferior texana em rápido crescimento que assinaram contratos com preços variáveis no mercado liberalizado de electricidade do Estado arqui-conservador, ligados ao preço grossista, a fim de poupar alguns dólares por mês em comparação com as tarifas com preços fixos – que tende a ser a opção da classe média cada vez mais reduzida. Depois, quando o preço por grosso do megawatt-hora disparou de 20 dólares para cerca de 9000 dólares, devido ao colapso generalizado das infra-estruturas degradadas do Texas, simplesmente porque a procura de energia disparou no momento do frio, muitos trabalhadores pobres, muitas vezes lutando para sobreviver com múltiplos empregos de merda, de repente viram-se afogados em dívidas.

Cerca de quatro milhões de texanos foram forçados a suportar dias sem energia com temperaturas abaixo de zero – num Estado que tem gigantescas reservas de gás natural. Dezenas de pessoas não sobreviveram. Para além do colapso generalizado da rede eléctrica, que levou até o presidente da câmara de Houston, onde 1,4 milhões de residentes se encontravam às escuras, a apelar à intervenção do Estado, muitos residentes enfrentaram uma grave crise no abastecimento de água. O degradado abastecimento de água, construído o mais barato possível, não é à prova de congelamento, pelo que no auge da crise quase 15 milhões de texanos ficaram sem acesso a água potável. Por vezes, os sistemas de água locais foram contaminados após o apagão, com a queda de pressão da água e a paralisação das estações de tratamento. Ainda no final de Fevereiro, mais de um milhão de texanos continuavam sem acesso a água potável, porque havia poucos recursos e poucos trabalhadores qualificados para reparar as condutas de água rebentadas em massa.

Jornais locais e grupos de esquerda no terreno descreveram cenas como algo saído de um jogo de vídeo pós-apocalíptico: residentes que queimam os móveis para evitar morrer de frio; neve fervida para obter água potável; famílias que morrem intoxicadas por monóxido de carbono nas garagens por terem ligado os aquecimentos dos carros em noites muito frias; habitantes da cidade a vaguear pelas ruas e pelos supermercados vazios em busca de água potável ou de gás propano, e a ter de se juntar a longas filas nos locais de fornecimento de água; pessoas sem abrigo incapazes de chegar aos abrigos de acolhimento devido à falta de transportes e „recolhidas“ pela polícia; blocos de apartamentos vazios, de facto tornados inabitáveis, dado que os canos rebentados pela água congelada em apartamentos despejados destruíram blocos inteiros.

Além disso, a logística just-in-time, com a capacidade de armazenamento cada vez mais deslocada para as ruas para cortar custos, fez com que o fornecimento retalhista de alimentos e água diminuísse rapidamente – enquanto os residentes da área de Houston, em particular, ficavam efectivamente presos em caso de catástrofe. O furacão Harvey já tinha deixado claro em 2017 que a megacidade, em crescimento selvagem com a dinâmica cega do mercado, com infra-estruturas de transporte decrépitas, simplesmente não poderia ser evacuada a tempo em caso de catástrofe.

A devastação provocada pelo recente evento climático extremo no Texas foi muito maior do que a dos Estados vizinhos nos EUA. As rápidas alterações climáticas não são incomuns nos EUA, onde todas as grandes montanhas se desenvolvem de norte para sul, mas o Estado do sul estava particularmente mal preparado para elas. A extensão da destruição provocada por uma catástrofe natural é determinada não só pela sua intensidade, mas também pelo estado da sociedade afectada. E o Texas, em particular, é algo da vanguarda do neoliberalismo no século XXI. Em 1999, o então governador do Texas, George W. Bush, conseguiu privatizar o sector energético do Estado em grande parte, com a sua extensa desconexão da rede nacional dos EUA para garantir que a regulação federal do fornecimento de electricidade pudesse ser contornada no Texas .

As tempestades de Inverno atingiram assim um sector energético capitalista que se assemelhava a uma „manta de retalhos baseada no mercado de produtores privados de energia, empresas eléctricas, e vendedores de energia“, como disse o New York Times. Este sistema desregulamentado tinha „poucos mecanismos de segurança e ainda menos regras vinculativas“. Além disso, no mercado energético do Texas, onde empresas competiam entre si „conscientes dos custos“, tinha havido pouco „incentivo financeiro“ para investir na „resistência às intempéries e na manutenção“ das infra-estruturas. Como resultado, os gasodutos que servem as centrais eléctricas a gás do Texas, por exemplo, que não tinham sido preparados para o Inverno para poupar dinheiro, falharam em série em Fevereiro. A possibilidade de condições climáticas extremas mais frequentes nunca foi „incorporada“ nas infra-estruturas, explicou o jornal da Costa Leste, uma vez que as alterações climáticas continuam a ser um „conceito exótico e controverso“ no Estado conservador.

A catástrofe de Inverno no sudoeste dos Estados Unidos também oferece, de facto, um primeiro vislumbre do curso da crise climática no capitalismo tardio, pois o Texas é apenas o exemplo extremo de uma tendência geral em quase todos os centros ocidentais do sistema capitalista mundial. A „normalização“ neoliberal do capitalismo tardio nas últimas quatro décadas, em que a privatização, a desregulamentação e programas de austeridade foram concebidos para reduzir ao máximo os custos do sector público, permitiu que a vulnerabilidade do sistema à crise aumentasse, negligenciando as suas infra-estruturas. Com o pleno desenvolvimento da crise climática, esta degradada base infra-estrutural do movimento de valorização está a sofrer uma tensão crescente, que é cada vez mais incapaz de suportar. O sistema, calibrado para redução permanente de custos, já está muitas vezes a funcionar no limite, independentemente de eventos climáticos extremos. Mesmo os caminhos-de-ferro alemães entram em modo de catástrofe com o granizo porque cortaram nas locomotivas diesel por razões de custo.

No Texas, as crises económica e climática – em última análise, os limites interno e externo do capital – encontraram-se de modo particularmente expressivo. O neoliberalismo, juntamente com a financeirização do capitalismo, impôs-se a partir dos anos 80 como reacção sistémica ao fim do boom fordista do pós-guerra – sob o qual foi construída grande parte da infra-estrutura agora em erosão – na ausência de um novo regime de acumulação. De certo modo, nas últimas décadas, os Estados sobreendividados venderam as suas infra-estruturas como baixelas para cortar custos e abrir novos campos de valorização para o capital.

Enquanto o neoliberalismo aumenta a vulnerabilidade das sociedades capitalistas tardias às crises, a compulsão de valorização do sistema sabota todos os esforços para uma substancial redução global das emissões de gases com efeito de estufa. Perante o sobreendividamento estatal, a estagnação económica e os mercados financeiros mundiais imensamente inflacionados, todos os actuais apelos neo-social-democratas ao regresso do Estado „forte“ regulador, como se ouve novamente mesmo nos EUA, soam a oco.

Uma consequência óbvia da miséria económica nos EUA largamente desindustrializados é a pauperização dos assalariados, que acelerou novamente no actual surto de crise (ver konkret 2/21). E também aqui o Texas desempenha um papel pioneiro, uma vez que este Estado tem uma das mais altas taxas de pobreza dos Estados Unidos. Mesmo antes da onda de frio, muitos texanos mal conseguiam pagar as contas de electricidade, informou a agência noticiosa Reuters. Cerca de 3,5 milhões de cidadãos tiveram de gastar uma „parte desproporcionada“ dos seus rendimentos em energia, e foram os residentes de bairros pobres não brancos que foram particularmente atingidos pelos cortes de energia e pelo colapso das infra-estruturas. Queixaram-se ao “USA Today” que a fome era simplesmente galopante nos seus guetos, que faltavam os bens de primeira necessidade nas áreas empobrecidas, onde se tinham formado longas filas nas cozinhas populares, mesmo antes da recente catástrofe. No conjunto dos EUA, na véspera da crise climática, cerca de 30 milhões de assalariados „seriam incapazes de aquecer ou arrefecer adequadamente as suas casas“, advertiu a Reuters.

O sistema mundial capitalista tardio não é capaz de enfrentar adequadamente a crise climática, nem sequer de limitar as suas catastróficas consequências. Pelo contrário, o capital ainda actua como um amplificador da crise e acelera os processos de erosão social. O caso do Texas deixa claro que a ultrapassagem da relação de capital não é uma fantasia voluntarista, mas uma necessidade de sobrevivência da civilização – para que a vida não se torne uma reencenação permanente dos filmes „Mad Max“.

Original alemão “Everything is bigger in Texas” in: www.konicz.info. Publicado inicialmente na revista konkret 4/2021. Tradução de Boaventura Antunes

Everyting is bigger in Texas

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