O que é a ideologia de crise?

Um breve olhar sobre os mecanismos de administração da crise do capitalismo tardio

04.04.2024, Tomasz Konicz

tried to save myself but myself keeps slipping away“

nine inch nails, into the void (1)

Ideologia é justificação. É a imagem distorcida de uma realidade social irracional, de novo reproduzida todos os dias pelos membros da sociedade e que em última análise não pode ser justificada. A ideologia é capaz de reconciliar os membros da sociedade com as maiores contradições e absurdos que o capitalismo produz diariamente. As contradições sociais gritantes, o empobrecimento em massa, o rápido avanço da crise climática capitalista e a aceleração da ruptura social podem assim ser carregadas de um significado imanente ao sistema, de uma lógica interna.

No quadro de uma perspetiva distorcida pela ideologia, calibrada em função do mercado, da concorrência e do desempenho, estas distorções provocadas pela crise são transformadas em consequências de uma má conduta pessoal ou colectiva. que viola os mandamentos sagrados da economia de mercado. A ideologia não é uma mera invenção da imaginação ou uma colecção de mentiras; é possível encontrar elementos da realidade social nas construções ideológicas, mas eles são deformados e incorporados num contexto globalmente apologético que exterioriza de forma fiável as contradições flagrantes da formação social capitalista. A ideologia é inerente às condições sociais, não é uma „camada destacável“ atrás da qual se esconderia algo completamente diferente; as contradições da socialização capitalista tardia produzem inevitavelmente ideologia, por assim dizer. Uma crítica da ideologia também é, portanto, uma crítica da sociedade, uma vez que se refere à „falsa sociedade“ que produz a „falsa“ consciência ideologicamente distorcida.

A ideologia é produzida em grande escala – como é próprio do capitalismo – num sector económico especificamente dedicado a isso, a indústria cultural, cujos expoentes mais importantes também acumularam um poder político sem precedentes. No entanto, a habitual questão do “cui bono”, de „quem beneficia“ com a produção de ideologia, é de muito curto alcance. A ideologia é uma „consciência necessariamente falsa“ (Marx), é uma prisão do pensamento própria de uma formação social em que as pessoas foram degradadas a objectos impotentes da dinâmica do capital mediada pelo mercado e em crise.

Embora todos os membros da sociedade reproduzam diariamente o capital com o trabalho das suas próprias mãos, estão ao mesmo tempo – devido à forma de reprodução da relação de capital mediada pelo mercado – expostos sem protecção à dinâmica do capital como uma espécie de força social da natureza. Os „mercados“ dominam as pessoas através dos seus inexoráveis „constrangimentos materiais“, embora os mercados não sejam outra coisa senão o trabalho dos seres humanos – a soma das acções dos sujeitos do mercado. A ideologia no capitalismo procura, em última análise, reconciliar as pessoas com este estado bizarro da sua sociedade, em que uma dinâmica fetichista do capital, constituída „nas costas“ (Marx) dos sujeitos do mercado, os confronta como uma força estranha, natural e destrutiva – embora, como já referido, sejam os próprios participantes no mercado que a desenvolvem inconscientemente todos os dias na produção de mercadorias.

A ideologia no capitalismo não é, portanto, a expressão de relações de dominação pessoais e directas, mas de uma dominação mediada e sistémica, a dominação de uma relação social, a relação de capital, que consegue confrontar como uma força hostil e destrutiva os membros individuais da sociedade – mesmo os mais poderosos. Esta experiência de uma heteronomia crescente, de uma quotidiana determinação alheia, é processada pela ideologia capitalista tardia e é agora lançada num cânone mais ou menos fechado de mandamentos e obrigações pseudo-religiosos: Desempenho, flexibilidade, dureza para consigo próprio e para com os outros, aprendizagem ao longo da vida, criatividade com simultânea conformidade, disponibilidade para o sacrifício, etc. etc.

É preciso, antes de mais, poder pagar a ideologia; ela é produzida principalmente para as classes sociais que ainda não entraram em declínio. Já no pós-guerra Adorno observava, a propósito da produção de ideologia nas democracias do milagre económico: „A ideologia, no verdadeiro sentido da palavra, exige relações de poder opacas, mediadas e, portanto, também mitigadas.“ Segundo Adorno, não há ideologia onde prevalecem as relações directas de poder. A ideologia de crise é, portanto, uma forma decadente de ideologia que conduz frequentemente ao extremismo fascista do centro.

Em tempos de crise, a produção de ideologia sofre uma pressão acrescida. Enquanto as gratificações materiais desaparecem, as „relações de poder mitigadas“ mediadas transformam-se em coerção directa e óbvia, como a que foi vivida pelas sociedades do Sul da Europa durante a crise do euro. A ideologia reage a este endurecimento das relações de poder com um endurecimento ideológico, com uma intensificação extremista dos seus postulados centrais. Há uma afirmação aberta do sistema dado e das suas contradições crescentes, que não requer um „foco suave“ ideológico e pode ser resumida na seguinte fórmula: „É o que é“.

As variantes deste culto do dado, que declara as distorções da crise actual como uma constante antropológica da humanidade por excelência, são generalizadas: A vida é dura, o mundo é injusto, haverá sempre guerras. Há uma afirmação da barbárie, da penúria e dos assassínios em massa diários que este sistema agonizante está a produzir numa escala cada vez maior. A maquilhagem ideológica está a descascar-se: sim, o sistema é duro e injusto – e temos de aprender a lidar com ele, a adaptarmo-nos, a tornarmo-nos mais duros, mais brutais.

O pressuposto básico para esta forma de decadência ideológica – na qual, por exemplo, os massacres das tropas ocidentais de intervenção nas regiões em colapso do Terceiro Mundo são legitimados pelo facto de as guerras andarem de mãos dadas com os massacres – é a impossibilidade de debater publicamente alternativas sociais ao capitalismo. Com esta barbarização, a ideologia prossegue assim a sua própria dissolução. Já não é necessário justificar uma realidade de crise bárbara quando a aceitação e a afirmação dessa barbárie se generalizam cada vez mais, nomeadamente entre as classes médias.

O verdadeiro movimento social subjacente a estes processos ideológicos de decadência consiste numa tremenda intensificação da concorrência induzida pela crise. Mesmo que a existência de uma crise sistémica seja ainda muitas vezes categoricamente negada, grandes sectores da classe média, em particular, há muito que reagiram aos processos de erosão no seu estrato: A classe média reage com uma espécie de pânico em câmara lenta, com uma atitude de „salve-se quem puder“, em que a intensificação do comportamento concorrencial visa assegurar o próprio estatuto social – à custa de outros que são excluídos da sociedade da trabalho capitalista em crise. As formas decadentes da ideologia de crise capitalista têm precisamente como objetivo legitimar esta concorrência de crise.

Esta brutal concorrência de crise, a tentativa de se salvar perante a escalada das distorções, está, em última análise, condenada ao fracasso, tendo em conta as causas sistémicas da crise actual. A base do capital, a valorização do trabalho assalariado, está a atingir os seus limites internos na actual crise, devido aos enormes saltos de produtividade. E são os mesmos saltos de produtividade da máquina de valorização global que também estão a alimentar a crise climática. Isto significa que não só a ideologia capitalista, mas também a identidade capitalista específica, a do sujeito burguês da concorrência, está a perder a sua base social. Todos tentam salvar-se a si próprios, enquanto o eu está em processo de desintegração. Na realidade, esta concorrência de crise representa apenas a intensificação das relações de concorrência inerentes ao capitalismo. Enquanto cada cidadão tenta salvar-se na sua qualidade de sujeito do mercado, a identidade do cidadão está em estado de desintegração devido à desintegração dos mercados.

O que resta é o vazio das conchas de sujeito queimadas pela relação de capital em colapso, que continuará com a guerra de todos contra todos, mesmo que o quadro de referência capitalista em que esta foi travada e intensificada se desintegre. Não se trata de uma previsão, mas de uma realidade bárbara há muito vivida em países como a Líbia, a Síria, o México, o Congo e o Iraque. É precisamente este reflexo de „pânico“ da maioria das pessoas, de quererem apenas salvar-se perante a crise, que está a forçar a continuação da barbarização na qual, em última análise, ninguém encontrará salvação.

(1) https://www.youtube.com/watch?v=G4lTMOmH8Dw

Original “Was ist Krisenideologie?” in konicz.info, 21.03.2024. Este texto é a introdução do e-book „Krisenideologie. Wahn und Wirklichkeit spätkapitalistischer Krisenverarbeitung [Ideologia de Crise. Ilusão e realidade no processamento da crise do capitalismo tardio]“.Tradução de Boaventura Antunes

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