A forma feroz do neoliberalismo que grassa actualmente na Argentina faz lembrar a brutal história da sua imposição
09.03.2024, Tomasz Konicz
Javier Gerardo Milei, o novo presidente libertário de direita da Argentina, parece determinado a tirar o máximo partido da profunda crise socioeconómica do seu país. Recorrendo às habituais tácticas de choque neoliberais que têm sido repetidamente utilizadas para fazer aprovar cortes sociais, desregulamentação e privatizações em tempos de crise, Milei emitiu um decreto presidencial algumas semanas após a sua tomada de posse que afectou cerca de 300 leis e regulamentos existentes. Pouco tempo depois, foi lançado um gigantesco „pacote de reformas“ com mais de 600 medidas de cortes, desregulamentação e privatização.1 Segundo o Financial Times (FT), o principal objectivo desta avalanche de legislação é paralisar a resistência no Parlamento e no Senado, onde os apoiantes do Presidente estão em minoria. A estratégia do autoproclamado presidente „anarcocapitalista“ é „atirar o máximo possível de barro à parede para que uma parte se agarre“, segundo o FT.2 De facto, Milei tem de fazer passar o maior número possível de medidas enquanto o peronismo de esquerda, em declínio, puder ser responsabilizado de forma credível pela situação difícil da Argentina. O cansaço dos protestos e o esgotamento provocado pela crise entre a população dão ao presidente uma certa janela de oportunidade.
Por um lado, as tácticas de choque de Milei exibem os traços familiares das „reformas“ neoliberais que têm sido repetidamente implementadas pelo FMI e pelo Banco Mundial ao longo das últimas quatro décadas em resposta a episódios de crise na periferia ou semiperiferia do sistema mundial, geralmente com consequências sociais devastadoras – só que desta vez vão ser levadas ao extremo no Rio de la Plata.3 O sinal de partida foi dado pela desvalorização da moeda argentina, o peso, em mais de 50 por cento em relação à moeda de reserva mundial, o dólar, o que equivale a uma perda de valor da mesma magnitude para todos os argentinos que não possuem bens imóveis ou meios de produção. Seguiram-se cortes radicais nos subsídios à gasolina e aos transportes, a dissolução de cerca de metade dos ministérios e centenas de „medidas de desregulamentação“: os direitos dos assalariados foram massivamente reduzidos, o sector da saúde, a indústria farmacêutica, o turismo e o mercado de arrendamento de habitações foram desregulamentados.4 Além disso, o estatuto jurídico das empresas públicas foi modificado para permitir a sua privatização. As transferências financeiras do Estado para as províncias devem ser reduzidas „ao mínimo“ e todas as medidas de emprego público devem ser suprimidas.
Como medida compensatória para assegurar a sobrevivência dos 40% da população argentina que vegetam na pobreza, o valor dos vales de alimentação do Estado deverá aumentar em 50%. No entanto, com uma taxa de inflação anual de mais de 250% em janeiro de 2024, esta é apenas uma medida de curto prazo,5 uma vez que Milei também congelou o financiamento do maior programa social da Argentina ao nível de 2023. Os cortes nos subsídios também contribuíram para a subida dos preços – em janeiro, os custos dos transportes foram um dos maiores factores de aumento dos preços.6 O único recuo substancial do Presidente é o adiamento da „dolarização“ da Argentina, que, segundo Milei, deveria ser apenas um „passo final“ na implementação de amplas reformas financeiras.7 No entanto, o governador peronista da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, falou de uma liquidação em saldo da Argentina pelo „anarco-capitalista“ na Presidência. Segundo Kicillof, Milei quer „privatizar tudo, desregulamentar tudo, destruir os direitos dos trabalhadores e acabar com sectores inteiros da produção“, ao mesmo tempo que „ignora a separação de poderes“ e impõe o seu rumo através de decretos de emergência.8
De facto, a agenda neoliberal extrema de Milei é também ladeada por componentes antidemocráticas, reaccionárias e autoritárias, como as anteriormente propagadas por movimentos populistas de direita ou fascistas comuns. O turbo-neoliberalismo económico no Rio de la Plata parece ser acompanhado por um rápido processo de fascistização. A ameaça do presidente de endurecer a progressiva legislação argentina sobre o aborto9 pode ainda ser um movimento táctico para suavizar a oposição da Igreja Católica ao seu rumo socialmente desastroso. Pouco depois da vitória eleitoral de Milei, o Papa Francisco, um argentino, alertou contra o „individualismo radical“,10 depois de o anarcocapitalista o ter insultado durante a campanha eleitoral como um „idiota“ que defendia a „justiça social“.11 Uma lei rigorosa sobre o aborto destina-se a ajudar a garantir que a Igreja permaneça em silêncio sobre as atrocidades sócio-políticas, de acordo com o cálculo óbvio do presidente.
Por outro lado, o carácter pós-democrático de Milei é inequivocamente evidente na sua posição histórico-política sobre a época da ditadura militar argentina (1976-83).12 O anarcocapitalista faz tudo o que está ao seu alcance para rever a avaliação do regime militar, de que foram vítimas dezenas de milhares de opositores, tentando justificar ou banalizar o brutal regime de tortura dos militares. A ligação informal aos círculos militares fascistas anteriormente marginalizados e aos esforços para legitimar a ditadura militar, conhecidos como negacionismo, está na recém-nomeada vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel. O pai da vice-presidente esteve envolvido em „operações antiguerrilha“ durante a ditadura militar e o seu tio „trabalhou“ numa prisão secreta. Villarruel defendeu publicamente os funcionários da ditadura militar, negou o número de mais de 30.000 mortos e desaparecidos e atacou organizações públicas de vítimas, como as famosas Madres de la Plaza de Mayo.13
Esta nova tendência para o autoritarismo neoliberal já se manifesta na aplicação da actual estratégia de choque. A democracia está „cheia de erros“ – foi a resposta que o presidente conseguiu dar quando os jornalistas lhe perguntaram qual era o seu compromisso com a democracia.14 A abordagem concreta do novo chefe de Estado, em que os diferendos políticos e jurídicos se fundem, é a seguinte. Milei pretende declarar o estado de emergência e governar por meio de decretos de emergência, para além da separação de poderes, sendo que a duração do „período de emergência“, cuja declaração faz parte da terapia de choque, foi encurtada de dois anos para um ano, na sequência de críticas.15 Até meados de fevereiro, o Presidente não conseguiu fazer passar os seus projectos no Parlamento e respondeu com ataques à oposição peronista.16
O „anarcocapitalista“ está, portanto, a operar numa zona cinzenta do ponto de vista jurídico, a fim de explorar a sua janela de oportunidade. Um tribunal de recurso já declarou a ilegalidade de alguns aspectos da sua agenda política, nomeadamente a supressão dos direitos dos trabalhadores assalariados, e certificou que o Presidente excedeu os seus poderes.17 Além disso, o chefe de Estado libertário de direita está a restringir drasticamente os direitos democráticos e pretende abolir a representação proporcional. No futuro, os manifestantes deverão ser responsabilizados financeiramente pelas operações policiais, os bloqueios de estradas – tradicionalmente um meio popular de protesto na Argentina – deverão ser proibidos em toda a linha, enquanto o aparelho de Estado deverá ter mais oportunidades de impedir antecipadamente os protestos.18
Esta abordagem autoritária, que se baseia em instrumentos estatais de repressão, parece contraditória, tendo em conta a retórica libertária e anti-estatal de Milei durante a campanha eleitoral, em que apelou repetidamente à liberdade total e irrestrita do mercado contra qualquer influência reguladora do Estado. Mas foi precisamente o inventor do termo de combate ideológico „anarcocapitalismo“, Murray Rothbard (1926-1995), que misturou repetidamente a liberdade total de mercado com fantasias de violência estatal contra grupos populacionais marginalizados. Milei deu a um dos seus cães clonados o primeiro nome do economista de extrema-direita. A rejeição de Rothbard das instituições estatais, mesmo as mais rudimentares, foi acompanhada de apelos à „libertação“ da polícia contra os sem-abrigo e à ideia de „punição imediata“ dos delinquentes. O Presidente argentino invoca, assim, uma ideologia arqui-reacionária importada dos EUA – à semelhança do movimento evangélico de direita no Brasil, que ajudou o extremista de direita Bolsonaro a chegar ao poder.
A ideologia libertária, que foi largamente moldada por Rothbard nos EUA no século XX, favorece explicitamente o darwinismo social, que está implícito no pensamento económico liberal. Além disso, existe um racismo de base económica em que a desvantagem económica e social dos grupos étnicos é interpretada em termos racistas ou culturalistas como resultado de uma inferioridade imaginada. Na prática, a „liberdade“ social-darwinista do movimento libertário de direita e dos capitalistas anarquistas resume-se a permitir que os actores economicamente poderosos desenvolvam o seu poder sem entraves – mesmo que para isso tenham de passar por cima de cadáveres. E é precisamente esta forma extrema de liberdade de mercado capitalista que o presidente da Argentina quer impor por meio da repressão estatal. Com os seus órgãos repressivos, o Estado deve garantir que não existe sociedade, mas apenas indivíduos reduzidos a sujeitos de mercado, enquanto todos os processos de crise global devem ser negados – como as alterações climáticas negadas por Milei19 – ou ultrapassados através de uma mais dura concorrência social-darwinista.20
O anarcocapitalismo, como forma tardia do neoliberalismo asselvajado devido à crise, na qual o big bang bárbaro desta ideologia na ditadura militar chilena de Pinochet é mais uma vez revelado abertamente, irá assim inevitavelmente exacerbar ainda mais o processo de crise na Argentina. O actual fracasso do peronismo de esquerda na Argentina obscurece o simples facto de o neoliberalismo ter sido aplicado neste país em vias de desenvolvimento nas últimas décadas – com consequências devastadoras. As primeiras experiências neoliberais falhadas – que levaram a uma onda de falências, a uma montanha de dívidas e à hiperinflação – foram implementadas pela junta militar argentina no início da década de 1980.21 Seguiu-se a era do peronista de direita Carlos Menem, que, em estreita coordenação com o mesmo FMI que agora também apoia Milei, transformou a Argentina num laboratório experimental de políticas neoliberais na década de 1990.22 A consequência das ofensivas de privatização e desregulamentação, que já nessa altura eram acompanhadas por uma indexação do peso ao dólar, foi o grande crash económico de 2001, que levou a um aumento maciço da pobreza e empurrou em grande parte o neoliberalismo para a defensiva, excepto por um interlúdio sob o Presidente conservador Mauricio Macri em 2015.
No entanto, a política keynesiana de procura e de inflação do peronismo de esquerda fixado no Estado apenas abriu caminho para a forma extremista e selvagem de liberalismo sob Milei. A história económica da Argentina caracteriza-se, assim, por períodos de inflação e hiperinflação alternados com esforços de austeridade neoliberal, pelo menos desde a década de 1970. E é precisamente isso que reflecte o processo de crise económica em que se encontra o sistema capitalista mundial tardio, sufocado pela sua produtividade, uma vez que os avanços permanentes na produtividade significam que não é possível desenvolver um novo regime de acumulação em que o trabalho assalariado possa ser explorado de forma rentável e em grande escala. A política, gemendo sob montanhas de dívidas, só pode escolher o caminho do desenvolvimento da crise, que equivale a uma desvalorização do valor em todos os seus estados agregados: Inflação ou deflação? Desvalorização do dinheiro na hiperinflação, ou desvalorização dos locais de produção e dos assalariados na deflação? Mas a ultrapassagem da crise só será concebível para além do capital.
1 https://www.deutschlandfunk.de/praesident-milei-streicht-reformvorhaben-zusammen-102.html
2 https://archive.is/3CPHV#selection-2245.0-2259.206
3 https://www.france24.com/en/americas/20231227-thousands-in-argentina-protest-milei-s-proposed-economic-reforms-deregulation
4 https://archive.is/3CPHV#selection-2371.0-2371.125
5 https://www.spiegel.de/wirtschaft/argentinien-inflationsrate-steigt-auf-mehr-als-250-prozent-a-4171d3a2-a13f-4f12-a6f1-1bea79dcc82d
6 https://archive.is/PcNvh#selection-2329.0-2329.325
7 https://markets.businessinsider.com/news/currencies/argentina-dollarization-javier-milei-central-bank-reforms-peso-devaluation-imf-2024-2
8 https://archive.is/3CPHV#selection-2297.0-2301.237
9 https://www.theguardian.com/world/2023/nov/20/argentina-milei-abortion-womens-rights
10 https://www.americamagazine.org/politics-society/2024/02/09/pope-francis-argentina-javier-milei-247266
11 https://www.reuters.com/world/americas/argentine-priests-defend-pope-francis-over-shameful-milei-attacks-2023-09-05/
12 https://foreignpolicy.com/2023/12/14/argentina-milei-dictatorship-junta-memory-human-rights/
13 https://www.theguardian.com/world/2023/oct/19/argentina-javier-milei-dictatorship-presidential-election
14 https://archive.is/epA3z#selection-5215.0-5215.443
15 https://www.bbc.com/news/world-latin-america-68166604
16 https://www.cnbc.com/2024/02/07/argentina-milei-lashes-out-at-governors-after-key-reform-bill-setback.html
17 https://www.zeit.de/politik/ausland/2024-01/argentinien-milei-arbeitsmarktreform-verfassungswidrig-gericht
18 https://www.ft.com/content/4f10131f-7f5b-4888-8402-b11db3095964
19 https://subscriber.politicopro.com/article/eenews/2023/11/22/new-argentine-president-calls-climate-change-a-socialist-lie-00128373
20 https://www.konicz.info/2023/12/21/captain-ancap-is-watching-you/. Em português: https://www.konicz.info/2023/12/22/el-general-ancap-is-watching-you/
21 https://archive.is/zGe60#selection-2117.0-2123.180
22 https://www.aljazeera.com/opinions/2018/9/9/argentinas-imf-bailout-rekindles-painful-memories-of-past-crises
Original “Back to the Roots?” in konicz.info, 08.03.2024. Antes publicado em “Versorgerin – Zeitung der Stadtwerkstatt” nº 141, Março/2024. Tradução de Boaventura Antunes
https://versorgerin.stwst.at/artikel/03-2024/back-to-the-roots