Isolamento em vez de império global

No passado as potências imperiais queriam construir impérios globais; hoje isolam-se da periferia empobrecida. O actual imperialismo de crise carece de base material para grandes projectos hegemónicos, daí resultando cada vez mais conflitos travados pela força militar

27.11.2023, Tomasz Konicz. Tradução de Boaventura Antunes

Regresso às origens? Nos seus últimos dias, o capitalismo parece estar a regressar às suas origens sangrentas no início da era moderna, quando os Estados-nação nascentes começaram as suas incursões imperialistas na América, Ásia e África. Como resultado surgiu o sistema mundial capitalista, com a sua divisão em centro, semiperiferia e periferia, que começa agora a desagregar-se devido à crise económica, social e ecológica mundial do capital. Os conflitos latentes ou já deflagrados são quase impossíveis de acompanhar: Ucrânia, Israel e todo o Médio Oriente, Taiwan, o Sahel, o Irão, o Cáucaso, o Kosovo. Parece provável uma grande guerra imperialista, semelhante à Primeira Guerra Mundial, como catástrofe primordial do século XX.

Mas esta aparência exterior é enganadora. A lógica interna que impulsiona esta dinâmica geopolítica – e muitas vezes militar – de confrontação é a da crise sistémica capitalista na sua dimensão sócio-ecológica. Trata-se de um imperialismo de crise, entendido como luta do Estado pelo domínio na era da contracção do processo de valorização do capital.

Na ausência de um novo regime de acumulação, o capital, como „contradição em processo“ que se desfaz da sua substância, o trabalho criador de valor, devido à racionalização mediada pela concorrência, num processo de crise intermitente que dura há décadas, produz desindustrialização, gigantescas montanhas de dívidas e uma humanidade economicamente supérflua nos Estados falhados da periferia. Na sua dimensão ecológica, o colapso do trabalho assalariado na produção de mercadorias está a aumentar a fome de recursos da máquina global de valorização, alimentando a crise do clima e das matérias-primas.

A escalada de contradições daí resultante – agitação social, convulsões económicas, escassez de recursos, fenómenos climáticos extremos etc. – empurra os aparelhos de Estado ameaçados de desintegração, que ainda dispõem dos correspondentes meios de poder, para aventuras imperiais e, em última análise, militares. A disposição para correr riscos geopolíticos e militares está a aumentar, precisamente porque as opções de acção disponíveis para as classes e regimes dominantes estão a tornar-se cada vez mais limitadas.

A agressão imperialista da Rússia contra a Ucrânia, que teve lugar a partir de uma posição de fraqueza, na sequência das revoltas sociais na Bielorrússia e no Cazaquistão e da erosão da influência russa no espaço pós-soviético, é um exemplo paradigmático desta situação. Em pânico com a perspetiva de „revoluções coloridas“ na sua esfera de influência socialmente fracturada, o Kremlin escolheu a opção militar. A Turquia e o Azerbaijão também estão a utilizar a guerra como para-raios social. Não só com a ajuda da propaganda nacionalista para fazer esquecer a inflação e a crise, mas também através da limpeza étnica no Nagorno-Karabakh ou em Afrin, com a qual se abrem novas zonas de colonização (Nagorno-Karabakh) ou se constroem prisões a céu aberto guardadas por islamitas para os refugiados da guerra civil (Afrin/Idlib).

Do ponto de vista dos assalariados da periferia, a prática imperialista da crise tende a ser o oposto da exploração imperialista dos séculos passados. Nessa altura o imperialismo abastecia o mercado mundial capitalista com novas regiões e mercados e, por conseguinte, também com nova mão de obra, fosse através da escravatura ou do trabalho forçado. O imperialismo da crise, pelo contrário, procura isolar-se dos assalariados „supérfluos“ que tentam fugir das regiões economicamente devastadas da periferia sul, algumas das quais se tornarão em breve simplesmente inabitáveis devido à crise climática.

Os refugiados tornam-se, por vezes, uma arma geopolítica: o jogo cínico do Presidente turco Recep Tayyip Erdoğan com os movimentos de refugiados nos últimos anos, bem como a actual recusa do Egipto em concordar com a evacuação da população civil de Gaza, a fim de dar a Israel liberdade de acção contra o Hamas, fazem parte desta nova forma de conflito. A limpeza étnica e as vagas de expulsões são também o resultado (como no Irão e no Paquistão, que acabam de anunciar planos de deportação de vários milhões de afegãos).

A periferia em colapso económico, com os seus Estados falhados, desempenha agora apenas um papel de fornecedor de matérias-primas para os centros. O imperialismo na actual fase de crise, em que a globalização com os seus circuitos de défice ameaça entrar em colapso, resume-se a uma combinação de isolacionismo e extractivismo de recursos.

Na exploração imperial da periferia pelos centros, pode observar-se uma tendência histórica para formas de dominação cada vez mais informais: os esforços para obter o controlo directo das colónias e dos „protectorados“ no século XIX deram lugar no século XX ao imperialismo informal, tal como praticado pelos EUA através do derrube e da instalação de regimes dependentes, mantendo-se a dependência financeira dos Estados independentes em relação a instituições financeiras globais dominadas pelo Ocidente, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Na fase final do sistema mundial capitalista, o domínio imperialista parece resumir-se à mera manutenção das rotas de extracção através das quais os recursos e as fontes de energia devem ser transportados das zonas de colapso económico e ecológico para os centros restantes em crise.

A crise sistémica também se exprime em conflitos militares, actualmente em Israel e na Faixa de Gaza, e historicamente no último grande surto de desestatização durante a „Primavera Árabe“ na Líbia ou na Síria: Os actores pós-estatais que emergiram de processos de desintegração social e estatal – milícias como o grupo Wagner ou Azov, seitas genocidas como o Hamas ou o „Estado Islâmico“, agitadores e bandos – estão a ganhar importância nos cálculos imperialistas, porque são instrumentalizados pelas potências regionais agindo cada vez mais livres ou pelas grandes potências empenhadas numa desesperada luta pela hegemonia. No entanto, há muito que estas forças anómicas se esforçam por agir como factores de poder independentes. Foi o caso do califado genocida do „Estado Islâmico“, disso houve um breve lampejo durante a revolta do grupo Wagner – e parece estar a manifestar-se no caso do Hamas, que esperava provocar uma guerra regional com a sua ofensiva amoque de assassínio em massa.

O caos geopolítico e o aumento dos conflitos são também o resultado da perda de hegemonia económica dos Estados Unidos, que se arrasta há décadas e conduz a uma desordem mundial dita multipolar (para usar de pernas para o ar uma das frases preferidas de Vladimir Putin). Os EUA sobreendividados, em declínio imperial, já não estão dispostos nem conseguem desempenhar o papel do famoso „polícia mundial“, como fizeram durante as intervenções dos anos 90, de modo que todo o tipo de potências regionais e grandes potências, elas próprias impulsionadas pela crise, podem agora desenvolver mais as suas próprias ambições imperiais. Os EUA concentram-se na luta hegemónica contra a China e os seus aliados euro-asiáticos, construindo um sistema de alianças que se estende do Atlântico ao Pacífico.

Esta luta global e sem esperança entre a Eurásia e a Oceânia – juntamente com os produtos de decomposição anómica da crise e o número crescente de conflitos entre Estados regionais – constitui o nível mais elevado dos conflitos imperialistas de crise que interagem entre si. Isto é irremediável, porque a hegemonia global, como foi a da Grã-Bretanha e depois a dos EUA, já não pode ser alcançada devido à falta de bases económicas.

A hegemonia dos EUA, como forma de construção de alianças aceites, baseou-se na economia fordista do pós-guerra até aos anos 70 e foi posteriormente mantida no quadro da economia de bolhas neoliberal e dos correspondentes circuitos de défice, com os EUA como o mais importante país deficitário, tendo-se expandido inicialmente após o fim da Guerra Fria. Os EUA já não se podem permitir nem uma coisa nem outra, pelo menos desde o aparecimento da actual estagflação. O que restaria seria uma dominação nua e crua – mesmo no caso da China, que está igualmente sobreendividada e há muito que sofre as consequências da crise global da dívida nas bolhas imobiliárias e como credora.

Por conseguinte, o imperialismo de crise está a caminhar para uma grande guerra que levaria o processo civilizacional a um fim bárbaro, a menos que se encontre uma saída social para a crise capitalista permanente. Uma verdadeira vitória nestes conflitos em rápida escalada só poderia, portanto, ser alcançada por meios não militares: através do desenvolvimento de uma nova forma de reprodução social pós-capitalista. Toda a esperança e todo o horror estão contidos neste simples facto.

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Original “Abschottung statt Weltreich” in konicz.info, 23.11.2023. Antes publicado em Jungle World 46/2023, 16.11.2023. Tradução de Boaventura Antunes

https://jungle.world/…/2023/46/abschottung-statt-weltreich

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