30.09.20233
A rendição da região arménia do Nagorno-Karabakh, na sequência de um ataque do Azerbaijão, marca também o fim de uma constelação geopolítica historicamente estabelecida no Sul do Cáucaso. O ataque do Azerbaijão a Nagorno-Karabakh é apenas moderadamente criticado pelos Estados ocidentais
Tomasz Konicz
A propaganda do Azerbaijão tomou provavelmente a Rússia como modelo. Em 19 de setembro, o exército azerbaijanês, muito superior, voltou a atacar a região de Nagorno-Karabakh, predominantemente habitada por arménios. Alguns dias antes tinha aparecido um „A“ invertido nos media e nas redes do país do Cáucaso do Sul para assinalar a conquista final das zonas de colonização arménia, à semelhança da utilização pela Rússia da letra „Z“ para simbolizar a sua guerra de agressão contra a Ucrânia.
O exército arménio, que ainda não recuperou da derrota perante o exército ultramoderno do Azerbaijão no outono de 2020, não interveio. Pouco depois do início dos combates, funcionários do governo do Azerbaijão afirmaram ter informado antecipadamente a Rússia e a Turquia do ataque.
Após a guerra de 2020, na qual o Azerbaijão, em cooperação informal com a Turquia, conseguiu obter grandes ganhos no terreno em poucas semanas, a situação militar das forças do Nagorno-Karabakh, que ficaram efectivamente cercadas desde então, era insustentável. Além disso, a actual campanha do Azerbaijão foi precedida por um bloqueio de fome de nove meses ao Corredor Lachin do Azerbaijão, a única via de abastecimento entre a Arménia e a República de Arzakh, como a zona de colonização arménia é chamada pelos seus habitantes.
Por conseguinte, o ataque do Azerbaijão foi mais uma execução em que várias centenas de militares e civis foram mortos em poucas horas na região, que era efectivamente independente desde o colapso da União Soviética. Ao fim de um dia, as forças armadas de Arzach capitularam.
A situação dos cerca de 120.000 habitantes é desoladora. Apesar do bloqueio imposto pelo Azerbaijão aos media, há relatos de ataques e assassinatos de civis, enquanto dezenas de milhares de pessoas fogem para procurar abrigo nas bases militares das „forças de manutenção da paz“ russas e no quartel-general russo no aeroporto da capital regional, Stepanakert, ou partem para a Arménia.
O exército do Azerbaijão está às portas enquanto as modalidades de rendição estão a ser negociadas. Segundo o anterior governo do Nagorno-Karabakh, o regime do Presidente Ilham Aliyev recusa-se a dar garantias de segurança e a amnistiar a população arménia. Até domingo, o Azerbaijão não enviou qualquer ajuda humanitária significativa para as zonas de colonização arménia conquistadas. Vários comboios humanitários da Cruz Vermelha conseguiram chegar a Nagorno-Karabakh vindos da Arménia sob escolta de tropas russas.
A decisão dos dirigentes arménios, liderados pelo Primeiro-Ministro Nikol Pashinyan, de não responder militarmente ao ataque do Azerbaijão desencadeou violentos protestos em Erevan, a capital da Arménia. Os confrontos, por vezes violentos, foram dirigidos contra o liberal e pró-ocidental Pashinyan, cuja demissão foi exigida, bem como contra a Rússia, a antiga „potência protectora“ da Arménia. No exterior da embaixada russa em Erevan, os manifestantes insultaram o Presidente russo, Vladimir Putin, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, como colonizadores, enquanto o propagandista do Kremlin, Vladimir Soloviev, se indignava com estes protestos anti-russos na televisão russa.
O ataque do Azerbaijão ao Nagorno-Karabakh terminou no outono de 2020 com um cessar-fogo mediado pela Rússia, no quadro do qual tropas russas foram colocadas na zona de conflito para evitar uma nova escalada. Nessa altura o governo russo ainda conseguiu posicionar-se como uma potência da ordem na região geoestratégica, apesar da ajuda militar turca ao Azerbaijão, que favoreceu decisivamente a sua vitória. A perda dos enclaves de colonização arménia, que se está a tornar evidente com a conquista da República de Arzakh, é assim susceptível de resultar na erosão final da hegemonia russa no Cáucaso do Sul.
Isto marca o fim de uma era. Durante séculos, a Rússia foi considerada a potência protectora dos arménios cristãos e, até há poucos anos, um aliado próximo da Arménia. A situação mudou depois de Pashinyan ter chegado ao poder na sequência de uma onda de protestos liberais em 2018, quando os crescentes negócios de armas entre Putin e o regime autoritário de Aliyev no Azerbaijão, cujas despesas militares eram superiores ao orçamento de Estado da Arménia devido às abundantes receitas do gás natural, levaram a uma cautelosa orientação da Arménia para o Ocidente.
As relações entre os regimes autoritários de Moscovo e Baku eram melhores do que entre Putin e o liberal Pashinyan, graças a negócios de milhares de milhões de dólares. A atitude passiva durante a guerra de 2020, quando o governo russo não forneceu qualquer ajuda substancial ao aliado arménio enquanto os drones turcos esmagavam as forças arménias, foi geralmente interpretada como uma forma de castigo.
O governo russo vendeu efectivamente a Arménia ao Azerbaijão e à Turquia, ricos em petrodólares, por alguns negócios de armas e energia – calculando que o país empobrecido não teria outra opção de política externa senão ficar ligado à Rússia. No entanto, a Arménia parece agora determinada a encarar a perda do Nagorno-Karabakh como o preço a pagar pela sua orientação forçada para Ocidente, a fim de se libertar do domínio ruinoso da Rússia. Entretanto, funcionários do governo apelaram publicamente à retirada das tropas russas do Nagorno-Karabakh e à sua substituição por forças de manutenção da paz da ONU, enquanto no Kremlin se ouvem apelos abertos à mudança de regime na Arménia.
O Azerbaijão já não precisa de boas relações com a Rússia, uma vez que um dos principais objectivos estratégicos do regime foi agora alcançado. A guerra contra a Ucrânia, que consome muitos recursos, torna improvável uma intervenção militar russa no Cáucaso, o que faz com que os actuais ataques do Azerbaijão às tropas russas e aos centros logísticos da região, que já custaram a vida a vários soldados e oficiais russos, sejam um risco calculável.
Entretanto a Turquia, parceira da NATO, está a avançar para esta região estrategicamente importante. Assim que a „limpeza étnica“ de Nagorno-Karabakh – o Azerbaijão tentou apagar até os vestígios históricos da colonização arménia nos territórios conquistados em 2020 – foi posta em marcha, o Presidente turco Recep Tayyip Erdoğan lançou novas ameaças contra a República da Arménia. Nas Nações Unidas, ele exigiu que a Arménia abrisse o corredor de Sangesur, que ligaria o enclave de Nakhichevan, pertencente ao Azerbaijão, ao resto do território do país.
Após a conquista do Nagorno-Karabakh, o objectivo estratégico central da Turquia e do Azerbaijão é estabelecer uma ponte terrestre entre os dois Estados – e este projecto só pode ser realizado através do território arménio. Ataques do Azerbaijão ao território arménio ocorreram esporadicamente já depois da guerra de 2020.
Existe, portanto, uma grande convergência de interesses entre as aspirações imperiais da Turquia e os interesses geopolíticos do Ocidente, que tradicionalmente gosta de olhar para o outro lado quando os seus aliados e fornecedores de gás espezinham os direitos humanos ou efectuam „limpezas étnicas“ – como aconteceu mais recentemente em Afrin. O estabelecimento de uma ligação terrestre com o Azerbaijão criaria outro acesso aos combustíveis fósseis do Mar Cáspio e da Ásia Central, que se situaria a sul da ainda existente esfera de influência russa. Além disso, o eixo norte-sul entre a Rússia e o Irão seria cortado no Cáucaso, o que constitui um importante objectivo geopolítico do Ocidente.
A tragédia da Arménia no século XXI é estar a impedir esses planos. Isto explicaria também as reacções cautelosas da UE, da Alemanha, da Grã-Bretanha e dos EUA à nova agressão do Azerbaijão. Além disso, a Arménia, empobrecida, simplesmente não dispõe de recursos ou fontes de energia que possa utilizar como meio de pressão e chamariz, como faz o Azerbaijão.
Pashinyan parece estar a depositar todas as suas esperanças numa rápida integração com o Ocidente, a fim de, pelo menos, salvar a integridade territorial do país. Mas, mesmo numa tal constelação, a Arménia está em desvantagem em relação ao regime do Azerbaijão apoiado no gás natural: enquanto o exército deste último invadia o Nagorno-Karabakh, o Presidente dos EUA, Joe Biden, posava em frente às câmaras com o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Azerbaijão, Jeyhun Bayramov, em Nova Iorque, a 21 de setembro.
Original “Bergkarabach: Exekution, Kapitulation, Okkupation” in konicz-info, 29.09.2023. Antes publicado em Jungle World 39/2023, 28.09.2023. Tradução de Boaventura Antunes
https://jungle.world/artikel/2023/39/bergkarabach-exekution-kapitulation-okkupation