DINHEIRO DOS QUE ESTÃO EM ASCENSÃO

Tomasz Konicz, 04.07.2023

O grupo de países Brics quer criar a sua própria moeda para acabar com a hegemonia do dólar americano. A China ocupa uma posição dominante nesta aliança de Estados

Em Agosto – após vários anúncios mais ou menos concretos desde 2012 – chegou finalmente o momento: Na sua próxima cimeira na África do Sul, o grupo em expansão de países Brics quer concretizar os planos para construir a sua própria moeda, a fim de desafiar abertamente a hegemonia global do dólar americano.

A associação dos (outrora) países emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, fundada em 2009 e que deve o seu nome às respectivas letras iniciais, também quer discutir a admissão de mais Estados à aliança informal. Entretanto foram recebidos 19 pedidos de adesão, incluindo de potências regionais como o Egipto, a Arábia Saudita, a Indonésia, o Irão, a Argentina, a Tailândia e a Venezuela.

Parece estar ao alcance desta aliança atingir o seu objetivo estratégico de quebrar a hegemonia do Ocidente e dos EUA e estabelecer uma ordem mundial dita multipolar. Um primeiro passo para a desdolarização será o acordo de cada um dos países dos Brics em utilizar as suas moedas nacionais no comércio entre si.

À primeira vista, a substituição do dólar americano como moeda de reserva mundial parece bastante realista, uma vez que os sobreendividados EUA estão em declínio geopolítico e económico há anos, enquanto a aliança dos Brics está em ascensão. À primeira vista os números falam por si: a parte dos países do G7 (EUA, Alemanha, Japão, França, Grã-Bretanha, Itália e Canadá) no produto social bruto global caiu de 50% no início dos anos 80 para 30%, enquanto os países do Brics conseguiram aumentar a sua produção económica de cerca de 10% para 31,5% da produção económica global no mesmo período. Assim, mesmo antes do próximo alargamento, a ambiciosa aliança já tem uma base de produção maior do que a dos Estados ocidentais.

No entanto, este aumento deve-se em grande parte à China; as disparidades e desequilíbrios no potencial bloco monetário seriam enormes. Entre 2008 e 2021, o produto interno bruto per capita da China aumentou 138 por cento. Na Índia aumentou 85 por cento, enquanto a Rússia registou apenas um ligeiro aumento de 14 por cento. O Brasil estagnou efectivamente com um magro aumento de quatro por cento e na África do Sul o produto interno bruto caiu cinco por cento.

Entretanto a China representa 70 por cento do rendimento nacional bruto dos países do Brics, enquanto o rendimento per capita da Rússia é cinco vezes superior ao da Índia. Estas disparidades gigantescas tornam insignificantes até os famosos desequilíbrios da zona euro, patentes durante a crise do euro. Além disso o grupo Brics tem tido até agora uma estrutura muito frouxa, dificilmente comparável aos resultados do longo processo de criação de instituições e de normalização que precedeu a introdução do euro na UE. A Aliança não tem poder executivo nem legislativo; nem sequer criou um secretariado central.

A Aliança caracteriza-se também por uma forte ambivalência. Foi fundada com a intenção de acabar com a hegemonia do Ocidente e com as práticas imperiais da potência hegemónica, os EUA. O ataque ao dólar americano como moeda de reserva mundial é um projecto central no quadro desta estratégia. No entanto, ao mesmo tempo, os países do Brics não estão a lutar por uma mudança fundamental no comércio mundial, estão apenas a tentar suceder ao Ocidente e aos EUA no quadro do sistema mundial capitalista – e a cair nas mesmas práticas imperialistas que são atribuídas aos EUA. Isto é evidente não só na guerra imperialista da Rússia na Ucrânia, mas também nos conflitos no seio da aliança: a China e a Índia, por exemplo, estão repetidamente à beira da guerra nos Himalaias devido a disputas fronteiriças.

Os interesses económicos comuns são, no entanto, pelo menos tão fortes como as forças centrífugas acima descritas. Não se trata apenas de intensificar as relações comerciais e a cooperação geopolítica para reduzir a dependência dos centros ocidentais. Os Estados dos Brics não só se esforçam por criar a sua própria moeda, como também o seu próprio banco de desenvolvimento, sediado na China. Os Estados da semiperiferia têm de operar num sistema mundial capitalista tardio cujas estruturas e instituições são dominadas pelo Ocidente, desde a função de liderança do dólar até à supremacia ocidental no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional.

A luta dos bancos centrais contra a inflação nos centros, que conduz ao colapso económico em muitos países mais pobres, mostra claramente a que conduz esta supremacia ocidental. Devido à subida das taxas de juro pela Reserva Federal dos Estados Unidos, um quarto dos países emergentes e em desenvolvimento „perdeu efectivamente o acesso aos mercados obrigacionistas internacionais“, alertava o Financial Times em meados de Junho. A previsão de crescimento do Banco Mundial para este grupo de países com acesso particularmente difícil ao crédito foi reduzida de 3,2% para 0,9%.

Esta crise do crédito, desencadeada pela luta contra a inflação nos Estados ocidentais, é um factor importante para a grande corrida ao grupo dos Brics. Muitos dos países em crise, como a Argentina ou a Venezuela, que estão atualmente a tentar ser admitidos, esperam simplesmente obter fontes de financiamento alternativas – especialmente da China. No futuro, o comércio entre estes países não só será efectuado na futura moeda dos Brics, como também se tornará a base de um novo sistema financeiro orientado para os interesses da semiperiferia.

Até aqui a bela teoria. Na prática, isto equivale a que as economias emergentes se encontrem igualmente dependentes financeiramente da China, que, com a criação de uma moeda dos Brics e de um sistema financeiro alternativo, pretende também criar oportunidades de investimento alternativas para mitigar a vulnerabilidade às sanções dos EUA. Assim, a potencial moeda dos Brics só seria concebível como veículo monetário de uma hipotética hegemonia nacional, semelhante à do dólar americano.

Ainda hoje 60 por cento das reservas monetárias mundiais são constituídas por dólares, o que representa apenas um ligeiro declínio em relação ao máximo histórico de 70 por cento registado no início do século XXI. Cerca de 74% do comércio internacional, 90% das transacções monetárias e quase 100% do comércio de petróleo são realizados em dólares americanos. Para assumir a liderança, a China teria, em última análise, de suportar os custos hegemónicos que são inevitáveis num capitalismo tardio em crise, que está a sufocar na sua produtividade: Os excedentes comerciais chineses teriam de ser reduzidos e transformados em défices, enquanto o mercado financeiro chinês teria de ser aberto.

A hegemonia do dólar desde os anos 80 assenta, em termos económicos, precisamente nos circuitos globais de défice, em que os enormes défices comerciais dos EUA geram uma procura financiada a crédito, enquanto o mercado financeiro americano absorve os lucros daí resultantes sob a forma de títulos. A China ainda detém grandes quantidades de títulos americanos e foi, durante algum tempo, o maior credor dos EUA.

A China teria de se tornar, de certo modo, um „buraco negro“ da economia mundial, como os EUA, cuja atração gravitacional, através do défice da balança comercial e do défice orçamental, suga o excedente de produção de uma economia mundial capitalista tardia asfixiada pela sua hiperprodutividade – ao preço da desindustrialização e de bolhas especulativas desestabilizadoras. E isso dificilmente é concebível, uma vez que o sector financeiro chinês já foi e está a ser abalado por graves crises financeiras e de endividamento. Uma nova moeda de reserva mundial não altera em nada as causas do processo de crise económica e ecológica, em que o capital se depara com os seus limites internos e externos.

Isto também é evidenciado pelas actuais relações comerciais entre a Rússia e a Índia, onde o dólar americano foi eliminado como moeda de pagamento. Após o início da guerra na Ucrânia, a Rússia tornou-se, de longe, o maior fornecedor de petróleo à Índia, que regista um grande défice comercial. Nos primeiros onze meses após o início da guerra, as exportações russas para a Índia ascenderam a 41,5 mil milhões de dólares, enquanto as exportações indianas para a Rússia atingiram apenas 2,8 mil milhões de dólares.

Trata-se, de facto, de uma política de „empobrecer o vizinho“, como a praticada pela Alemanha, há muito „campeã mundial da exportação“: com os excedentes comerciais, exportam-se também as dívidas, a desindustrialização e o desemprego. A diferença: atualmente, os bancos e as companhias petrolíferas russas têm de depositar os seus biliões de rupias em contas bancárias indianas, uma vez que não há possibilidade de transferência de divisas ou de reinvestimento.

Original “Das Geld der Aufsteiger” in konicz.info, 30.06.2023. Antes publicado em ‘Jungle World’, 22.06.2023. Tradução de Boaventura Antunes

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