Tomasz Konicz, 23.06.2023
As tensões geopolíticas e as alterações climáticas estão a fazer renascer a intervenção do Estado e política industrial estatal. Foi o que mostrou recentemente o debate sobre a entrada de uma empresa estatal chinesa no porto de Hamburgo
Globalização, livre circulação de mercadorias, liberdade de investimento – os pilares do neoliberalismo parecem estar a vacilar há algum tempo. A „mão invisível“ do mercado, como diz a célebre metáfora de Adam Smith, é de novo guiada com mais frequência pela intervenção do Estado, muitas vezes por motivos de segurança e geopolíticos. Enquanto antiga campeã mundial de exportação, a Alemanha beneficiou durante muitos anos, mais do que qualquer outro país, da livre circulação de capitais e de mercadorias. Mas também aqui o tom protecionista há muito que voltou a prevalecer. É o que mostra recentemente o caso do porto de Hamburgo.
A empresa estatal chinesa Cosco pretende adquirir uma participação minoritária na Container Terminal Tollerort (CTT), a empresa operadora do mais pequeno dos quatro terminais de contentores de Hamburgo. Os terminais foram classificados como infra-estruturas críticas pelo Governo alemão, razão pela qual o Governo tem de aprovar a venda.
A entrada da Cosco no mercado provocou uma grande polémica. No final de Abril, Die Zeit criticou a „velha mentalidade mercantil“ do Parlamento e do Senado de Hamburgo por estarem abertos a esta aquisição. Nem tudo o que promove o volume de negócios é também „politicamente correcto ou sustentável“, afirma o semanário de Hamburgo. A Cosco faz parte de um grupo de cerca de 100 empresas estatais que actuariam inteiramente no interesse do partido estatal chinês e, em última análise, do „chefe de Estado Xi Jinping“, com o objetivo de „em primeiro lugar e acima de tudo aumentar a influência do regime autoritário“. A participação da Cosco na CTT não lhe daria acesso directo às infra-estruturas portuárias, mas a empresa chinesa teria acesso a dados sensíveis, mesmo no caso de uma participação minoritária. E seria „insensato acreditar“ que a empresa estatal não transmitisse esses dados internos ao governo de Pequim ou que não agisse „no interesse do partido“ nas decisões económicas, esclareceu o Die Zeit.
Posição oposta foi expressa em meados de Maio pelo presidente da associação patronal, Rainer Dulger, que reduziu as divergências entre o governo alemão e o regime chinês a „política de moral“. Trata-se de um „caminho errado“ que não deve ser seguido em relação ao „nosso maior parceiro económico“. A Alemanha faria bem em „continuar a reafirmar aos nossos parceiros chineses que mantemos a nossa amizade“, exigiu Dulger.
Estas contradições na estratégia alemã para a China, que podem ser descritas grosso modo como um conflito entre interesses geo-estratégicos e interesses económicos, também se verificam no Governo alemão. Em princípio, os parceiros da coligação concordam que a dependência da República Popular deve ser reduzida, mas para muitos social-democratas, em particular, os esforços de demarcação da ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock (Verdes), vão longe demais. Durante a sua recente viagem à China, Baerbock criticou claramente as violações dos direitos humanos. Em resposta, o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, afirmou que a China não precisa de um „professor do Ocidente“, que cada país tem o seu próprio contexto cultural e histórico e que não existem „padrões uniformes no mundo“.
No caso do porto de Hamburgo, o interesse pelas boas relações económicas parece agora ter triunfado. Em 10 de maio, foi anunciado que a Cosco seria autorizada a adquirir uma participação minoritária de 24,9% na empresa operadora CTT. No entanto, a mudança fundamental no debate público é inequívoca: na República Federal, cuja indústria exportadora adquiriu nas últimas décadas indústrias inteiras da Europa Central e Oriental para as integrar nas suas cadeias de produção globais, são agora controversas as participações minoritárias estrangeiras em empresas de operação de contentores relativamente insignificantes.
A venda do fabricante de aquecedores Viessmann à empresa de refrigeração americana Carrier Global desencadeou uma polémica semelhante. A Focus falou do „coração das médias empresas alemãs“ agora sob controlo dos EUA, mas também apontou a preguiça da indústria alemã para inovar. A concorrência estrangeira está muito mais avançada no inovador mercado das bombas de calor do que os fabricantes alemães, que se „acomodaram durante muito tempo“ à velha tecnologia do aquecimento a gás.
O pano de fundo da aquisição foi, de facto, a estagnação tecnológica dos fabricantes alemães de aquecedores em torno da Bosch, Viessmann e Valliant. Durante anos, as empresas alemãs, que se furtavam a investir, fizeram lobby em Berlim contra a introdução obrigatória da bomba de calor. Este facto foi noticiado em Abril pelo Die Zeit, citando altos responsáveis da indústria. Os fabricantes alemães de aquecedores dispõem de grandes instalações de produção antigas, cujos custos de investimento já foram amortizados há muito tempo, pelo que muito dinheiro foi ganho com a produção de aquecedores a gás. Novos investimentos no desenvolvimento e produção de bombas de calor teriam reduzido estes lucros e, por conseguinte, quase não foram efectuados. É por isso que empresas alemãs como a Viessmann não conseguem acompanhar a concorrência barata dos EUA e da Ásia no sector das bombas de calor.
Neste caso, o Estado alemão falhou obviamente no seu papel de capitalista colectivo ideal. Poderia ter evitado esta lógica de lucro a curto prazo através de regulamentos legais, a fim de proteger a competitividade da localização a longo prazo. Os paralelos com a indústria automóvel são óbvios. As empresas automobilísticas alemãs sabotaram a implementação precoce da electromobilidade através de lobbies bem sucedidos – entretanto, correm o risco de ficar para trás neste domínio da tecnologia.
Para evitar que isso aconteça, a Alemanha e outros Estados da UE estão a subsidiar a produção de células de baterias em milhares de milhões de euros. Estão a competir com os EUA, que também querem aumentar a produção nacional de baterias com subsídios de milhares de milhões.
Não é só neste domínio que a UE está agora a seguir uma política industrial ativa. Pretende, assim, reduzir a sua dependência das cadeias de produção globais surgidas na era neoliberal, especialmente nas indústrias de alta tecnologia e de chips, cujos centros se situam no Sudeste Asiático ameaçado pela guerra. Taiwan produz atualmente a maior parte dos microchips avançados do mundo.
Como as tensões geopolíticas estão a aumentar, os países industrializados querem depender o menos possível de chips importados no futuro. Os EUA, a China e outros países estão a competir numa dispendiosa corrida aos subsídios para construir uma indústria nacional de chips. A Comissão Europeia também quer transformar o sector dos semicondutores numa indústria-chave na Europa. A quota da UE no mercado mundial deverá duplicar para 20% até 2030, através de uma política industrial específica.
Em Dresden, por exemplo, acaba de ser iniciada a construção de uma nova fábrica para o fabricante de semicondutores Infineon, do Sul da Alemanha. O investimento total de cinco mil milhões de euros será subsidiado pelo Estado em cerca de mil milhões de euros, escreve o FAZ, com o objetivo de, pelo menos, reduzir „o fosso em relação aos grandes fabricantes da Ásia e da América“ e manter „a soberania tecnológica da Europa“.
Entre todos os concorrentes a política de investimentos do Estado não visa apenas a indústria de alta tecnologia, mas também a transformação ecológica do capitalismo pelo menos postulada pelos políticos. O objetivo é liderar a corrida às tecnologias que, provavelmente, dominarão o futuro: energias renováveis, carros eléctricos, baterias, instalações industriais „verdes“, tecnologias de hidrogénio e similares.
Para o efeito, o Governo dos Estados Unidos prevê investir cerca de 375 mil milhões de dólares no âmbito da Lei de Redução da Inflação. Na UE, as subvenções industriais de grande envergadura, que são efetivamente proibidas pelas regras do mercado comum interno da UE, devem ser forçadas no âmbito do Quadro Temporário de Crise e Transição, Temporary Crisis and Transition Framework (TCTF). As condições de subvenção para investimentos em „tecnologias de transformação“ devem ser facilitadas, a fim de acelerar a produção de baterias, centrais solares, turbinas eólicas e bombas de calor.
O facto de esta lógica capitalista de Estado resultar do agravamento da crise é evidenciado pelo caso do fabricante norte-americano de semicondutores Intel. A empresa está a planear uma fábrica em Magdeburgo e pretende investir cerca de 17 mil milhões de euros. O principal fabricante de processadores, que já não consegue acompanhar os seus concorrentes do Sudeste Asiático em microchips altamente desenvolvidos, registou recentemente um prejuízo recorde – e no final de Abril exigiu subsídios ainda mais elevados para a fábrica em Magdeburgo. Até à data, foram concedidos sete mil milhões de euros de auxílios estatais.
As críticas aos subsídios já tinham sido feitas anteriormente. „Estamos a deitar dinheiro pela janela fora“, disse Reint Gropp, presidente do Instituto Leibniz de Investigação Económica de Halle (IWH) e professor de Economia na Universidade Otto von Guericke, em Magdeburgo, ao Süddeutsche Zeitung, em Fevereiro. Porque isso iria apoiar „fábricas que produzem com tecnologia antiga“ em vez de apoiar investigação e desenvolvimento. Além disso existe o risco de os muitos investimentos subsidiados criarem sobrecapacidades globais e conduzirem a uma crise na indústria de chips. Estes argumentos correspondem à habitual crítica liberal económica à política industrial estatal. A qual afirma que os subsídios estatais protegem indústrias e tecnologias obsoletas ou contribuem para o declínio dos preços dos respectivos produtos e, por conseguinte, para menores rendimentos. Claro que estes avisos estão a ser cada vez menos ouvidos.
Original “Der Staat soll’s richten” em konicz.info, 17.06.2023. Antes publicado em Jungle World, 25.05.2023. Tradução de Boaventura Antunes