Caos em vez de hegemonia

Os EUA estão em crise como potência hegemónica, o que não significa que a China lhes suceda. Mas as ditaduras autoritárias da China e da Rússia podem ser o futuro do capitalismo

Tomasz Konicz, 17.06.2023
Original “Chaos statt Hegemonie” publicado em Jungle World 20.04.2023. Tradução de Boaventura Antunes

A acreditar nas declarações das cimeiras russo-chinesas, o século XXI será definido por uma era de hegemonia chinesa. Nas cimeiras bilaterais de Moscovo sobre a guerra, em meados de Março, o Presidente russo, Vladimir Putin, defendeu a „construção de uma ordem mundial multipolar mais justa“, que poria fim à era da hegemonia dos Estados Unidos.

O discurso de uma ordem mundial multipolar é a ideologia de todos os Estados autoritários da semiperiferia que procuram, através do poder imperialista e de políticas de guerra, suceder aos EUA em declínio e alcançar uma supremacia ou dominância semelhante a nível regional ou – como no caso da China – mesmo a nível global, como os Estados Unidos tiveram na segunda metade do século XX.

O actual aumento dos conflitos regionais entre Estados é expressão desta desordem mundial multipolar, numa fase de crise global em que já não existe efectivamente uma potência hegemónica mundial. Quer se trate dos imperialistas russos, dos mullahs iranianos ou dos neo-otomanos turcos, é sobretudo a inveja dos meios de poder cada vez mais escassos dos EUA que motiva o seu anti-americanismo ideológico.

A diminuição do poder é demonstrada sobretudo pelo dólar americano. Enquanto moeda de reserva mundial, ele deu aos EUA a possibilidade de contraírem enormes dívidas, nomeadamente para financiar a sua máquina militar. Quando o Presidente turco Recep Tayyip Erdoğan põe a impressão de notas a funcionar, pelo contrário, a inflação no país simplesmente aumenta.

É por isso que os últimos acordos de política monetária entre a China, a Rússia e vários países da semiperiferia estão a causar agitação. Em meados de Março, durante uma visita de Estado a Riade, o Presidente chinês, Xi Jinping, promoveu uma mudança do comércio de petróleo com a Arábia Saudita para o yuan chinês, para contrariar a „crescente transformação do dólar em armas“. Estão a ser discutidos acordos cambiais bilaterais semelhantes entre a China e o Brasil, o Paquistão e a Venezuela. O Financial Times avisou, em Março, que os líderes ocidentais deviam preparar-se para uma futura „ordem mundial monetária multipolar“, apesar de o dólar continuar a ser claramente a moeda mais utilizada hoje no comércio internacional.

Esta tendência para a desdolarização só pode ser bem compreendida no contexto do declínio imperial dos EUA, no âmbito do processo de crise global. No entanto, isto também torna claro porque é que a China dificilmente poderá suceder aos Estados Unidos como potência hegemónica.

Na sua obra „Adam Smith em Pequim“, o sociólogo italiano Giovanni Arrighi descreveu a história do sistema mundial capitalista como uma sucessão de ciclos hegemónicos: Uma potência em ascensão ganha uma posição dominante no sistema, numa fase ascendente marcada pela indústria produtora de mercadorias; após uma „crise de sinalização“, começa a descida imperial da potência hegemónica. Neste processo, o sector financeiro ganha importância. Por fim, dá-se a substituição da antiga potência hegemónica por uma nova com maiores meios de poder.

Esta sequência pode ser traçada empiricamente tanto no caso do Reino Unido como no dos EUA. O Reino Unido e o seu império, que se tornou a oficina do mundo no contexto da industrialização no século XVIII, transformaram-se no centro financeiro mundial na segunda metade do século XIX, antes de serem substituídos na primeira metade do século XX pelos Estados Unidos economicamente ascendentes que, por sua vez, viveram a sua crise de sinalização durante a estagflação da década de 1970. Seguiu-se a desindustrialização dos EUA, que levou ao domínio económico do sector financeiro norte-americano. O endividamento da potência hegemónica descendente em relação ao ascendente imperial, que Arrighi também abordou, pode ser visto tanto no caso da Grã-Bretanha em relação aos EUA como no crescente défice comercial dos Estados Unidos para com a China.

O dólar americano ganhou assim a sua posição mundial no contexto do boom fordista do pós-guerra, quando o Plano Marshall também estabeleceu a hegemonia dos Estados Unidos na parte ocidental da Europa devastada. E foi precisamente esta fase duradoura da expansão fordista que constituiu a base económica da hegemonia dos Estados Unidos. Com o fim do boom do pós-guerra, na fase de estagflação, financeirização e implementação do neoliberalismo, a base económica do sistema hegemónico ocidental mudou. No agravamento da crise sistémica de sobreprodução, os EUA, cada vez mais endividados, tornaram-se, de certo modo, o „buraco negro“ do sistema mundial, absorvendo os excedentes de produção de Estados orientados para a exportação, como a China e a Alemanha Ocidental, através dos seus défices comerciais – à custa do avanço da desindustrialização e do endividamento. O regime chinês tinha, portanto, todas as razões (tal como o governo alemão) para tolerar a hegemonia dos EUA e o dólar como moeda de reserva mundial, uma vez que, sem o mercado de vendas dos EUA, a ascensão da China para se tornar a nova „oficina do mundo“ não teria sido possível.

No entanto, devido ao desenrolar da crise socio-ecológica mundial do capital, é pouco provável que o século XXI traga uma época de hegemonia chinesa, e que o yuan possa suceder ao dólar americano. A fase ascendente da República Popular, marcada pelo domínio da produção industrial de mercadorias, desenrolou-se no quadro dos já referidos circuitos de défice mundial, em que a dívida no Ocidente gerou procura para a economia de exportação chinesa. Esta fase terminou com o surto de crise de 2008: com o rebentamento das bolhas imobiliárias nos EUA e na Europa, os excedentes extremos das exportações chinesas diminuíram (com excepção do comércio com os EUA), enquanto os gigantescos pacotes de estímulo que o governo de Pequim lançou nessa altura para apoiar a economia alteraram a natureza da economia chinesa: as exportações perderam importância, tendo a indústria de construção doméstica e o sector imobiliário financiados a crédito passado a ser os principais motores do crescimento económico.

Assim é evidente que a China já deixou para trás, em 2008, a sua crise de sinalização, que marca a transição para um modelo de crescimento orientado para o mercado financeiro. O crescimento da China está, portanto, também dependente do crédito, a República Popular está tão altamente endividada como os centros ocidentais em declínio do sistema mundial. A economia deficitária chinesa produz excessos especulativos ainda maiores do que nos EUA ou na Europa Ocidental, como ficou patente com as crises do inflacionado mercado imobiliário chinês em 2021. Economicamente, o declínio da hegemonia da República Popular devido à crise sistémica global já começou, embora ainda não tenha sido capaz de alcançar a sua posição hegemónica geopoliticamente.

Isto é particularmente evidente nas ambições de política externa da China, onde foi iniciado um ambicioso projecto de desenvolvimento global com a „Nova Rota da Seda“, que teve como modelo o Plano Marshall – e que trouxe à República Popular a sua primeira crise de dívida internacional. Segundo o Financial Times, dos cerca de 838 mil milhões de dólares americanos que a China investiu até 2021 para construir nos países em desenvolvimento e emergentes um sistema económico e de alianças nela centrado, cerca de 118 mil milhões estão em risco de incumprimento no decurso do actual surto de crise (devido à pandemia e à guerra na Ucrânia).

Actualmente não se vislumbra qualquer recuperação económica mundial, apenas sobreendividamento e inflação. A China parece, portanto, estar em declínio mesmo antes de ter alcançado a hegemonia, devido às suas impressionantes montanhas de dívidas no país e no estrangeiro. Além disso, existe o limite externo e ecológico do capital, uma vez que a República Popular se tornou o maior emissor de gases com efeito de estufa no decurso da sua modernização capitalista de Estado, o que torna extremamente duvidoso, do ponto de vista ecológico, um caminho de desenvolvimento semelhante para outros países do Sul Global, devido à ameaça de catástrofe climática (ainda que seja absolutamente obsceno pregar a renúncia ao Sul Global a partir dos centros, sem ser capaz de apontar uma alternativa de desenvolvimento). Ao ciclo histórico de hegemonia do sistema mundial capitalista sobrepõe-se assim o processo de crise sócio-ecológica do próprio capital, que interage com ele e permite a fusão da ascensão e do declínio da hegemonia da China.

E, no entanto, tendo como pano de fundo a crise sócio-ecológica, a luta entre a Eurásia russo-chinesa e a Oceânia dos Estados Unidos, em que a Ucrânia e Taiwan constituem os campos de batalha actual e futuro respectivamente, também pode certamente ser entendida como uma luta entre o futuro e o passado. É uma luta entre o fim da era da administração neoliberal da crise e a era iminente de dominação abertamente autoritária, em que a mobilização reaccionária e a desintegração social interagem, como é paradigmaticamente visível na oligarquia estatal e na dominação mafiosa russas.

Original “Chaos statt Hegemonie” publicado em Jungle World 20.04.2023. Tradução de Boaventura Antunes

https://jungle.world/artikel/2023/16/chaos-statt-hegemonie

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