Navegar à vista

konicz.info, 24.01.2022. Antes publicado em Jungle World 19.01.2023. Tradução de Boaventura Antunes

Administração da crise e transição para o capitalismo de Estado autoritário: muitos elementos da política económica keynesiana estão actualmente a ser implementados. Isto poderá indicar a transição para uma autoritária administração da crise capitalista de Estado

Tomasz Konicz

Sejam discípulos do mercado ultraconservadores ou conservadores sindicalistas social-democratas: em tempos de crise, são todos keynesianos. Em todos os surtos de crise dos últimos anos, quando voltou a ser necessário salvar o capitalismo tardio do colapso por meio de programas de estímulo de biliões e impressão de dinheiro, os ensinamentos do economista britânico John Maynard Keynes, cuja política económica orientada para a procura foi dominante no período pós-guerra até ser substituída pelo neoliberalismo na década de 1980, experimentaram um fugaz boom na opinião pública.

Também após o estouro da bolha imobiliária transatlântica em 2008 e a quebra causada pela pandemia em 2020 voltou a falar-se novamente de Keynes, que como economista de plantão da social-democracia tinha propagado um papel activo do Estado, com programas de investimento e uma política monetária expansionista. Depois dos sinais habituais de desgaste no circo mediático, a referência a Keynes desaparece novamente quando o capitalismo parece voltar ao normal, após a fase de estabilização „keynesiana“.

O que resta de cada vez são os keynesianos expulsos da corrente política e académica na era neoliberal, que estão constantemente a lamentar-se, e com quem a esquerda não social-democrata tem agora de lutar. Mas a constante lamentação dos neo-keynesianos e defensores da Modern Monetary Theory (MMT), no sentido de que é necessário mais keynesianismo para que as coisas melhorem e para que o capitalismo tardio regresse à era do „milagre económico“, é no mínimo deslocada face às realidades políticas. Muitos instrumentos do keynesianismo continuam a ser utilizados na administração da crise que estabilizou o sistema desde 2008, apenas não são rotulados nem percebidos como tal.

Isto é apenas lógico no contexto da génese histórica desta escola económica: o keynesianismo tornou-se a corrente capitalista dominante após o fim da Segunda Guerra Mundial, como a grande „lição“ a ser aprendida da fase de crise que começou em 1929 – e as elites funcionais capitalistas recorrem aos seus instrumentos quase que por reflexo em tempos de crise. Uma regulação consistente da moeda e dos mercados financeiros, o Estado como factor regulador e orientador económico, prosseguindo uma política activa de investimento, uma política salarial e social orientada para a procura, na qual os assalariados são também entendidos como consumidores, e uma política económica contra-cíclica que supostamente evita recessões através de programas de estímulo económico financiados pela dívida, a fim de pagar essa dívida depois em fases de expansão  –  estes foram os traços básicos idealizados da ordem económica keynesiana até que o neoliberalismo se tornou dominante com Margaret Thatcher e Ronald Reagan; esta é a ordem a que os neo-keynesianos querem regressar.

Mais barato não pode ser

O recurso pragmático aos instrumentos do keynesianismo encontra a sua expressão mais clara em todos os programas de estímulo económico que foram lançados na sequência das crises recorrentes. À medida que estas se foram tornando mais intensas, os subsídios e pacotes de investimento governamentais também cresceram em tamanho a cada surto de crise, como mostrou a empresa de consultoria McKinsey numa comparação da crise financeira mundial de 2008/2009 com a quebra da pandemia de 2020. Já em meados de 2020, as despesas governamentais globais com a crise somariam cerca de dez biliões de dólares americanos – o triplo dos programas de crise de 2008/2009.

Enquanto em 2008 o governo alemão tinha uma política orçamental restritiva e apenas fez manchetes negativas politicamente devastadoras com os infames „prémios de abate de automóveis“, em 2020 lançou programas de crise particularmente abrangentes. Em relação ao produto interno bruto (PIB), o pacote de estímulo económico alemão foi mesmo o maior de todos os países industrializados ocidentais; ascendeu a 33 por cento do PIB. Além disso, o governo sob a liderança de Angela Merkel iniciou também um afastamento gradual do regime de austeridade na zona euro, que o governo anterior da mesma chanceler tinha imposto uma década antes: em meados de 2020, concordou com um programa de estímulo económico da UE com um volume de 750 mil milhões de euros. Incluindo pagamentos de ajuda à periferia da UE no valor de nada menos que 390 mil milhões de euros.

Em termos de política monetária, o Banco Central Europeu (BCE) e o seu homólogo americano, a Reserva Federal, também seguiram recentemente o lema de que os empréstimos tinham de ser tão baratos quanto possível. As taxas de juro directoras na UE e nos EUA tenderam a baixar cada vez mais no século XXI. Entre 2009 e 2021, prevaleceram políticas de taxa de juro zero – com breves interrupções – para apoiar a economia e os mercados financeiros. Além disso, após o rebentamento da bolha imobiliária transatlântica, os bancos centrais passaram à mera impressão de dinheiro, comprando primeiro títulos hipotecários e depois cada vez mais obrigações do Estado – injectando liquidez adicional na esfera financeira, o que levou à inflação dos preços dos títulos no contexto da grande bolha de liquidez que depois rebentou em 2020. No século XXI, a Reserva Federal e o BCE quase decuplicaram o seu balanço total, tornando-se aterros sanitários do sistema financeiro capitalista tardio condenado a um boom permanente e os maiores proprietários de títulos de dívida dos seus Estados.

O hiperactivo capitalismo do banco central

No decurso do processo de crise, os bancos centrais ascenderam assim a autoridades económicas decisivas, sem cuja intervenção tanto a esfera financeira como o financiamento estatal teriam entrado em colapso. Poder-se-ia falar de capitalismo do banco central, como faz o economista político Joscha Wullweber no seu livro com o mesmo título, no qual descreve a dependência de uma parte da esfera financeira, o mercado quase nada regulamentado de acordos de recompra (repos), da inflação da massa monetária pelos bancos centrais. No entanto, a actual tentativa do BCE e da Reserva Federal, devido às elevadas taxas de inflação, de conter a inflação que pode ser atribuída a vários factores (pandemia, guerra, explosão da bolha de liquidez, falhas nas cadeias de abastecimento, aumento dos preços da energia), recorrendo a uma política monetária restritiva, não anda necessariamente de mãos dadas com o fim das compras de obrigações do Estado.

Na Zona Euro, o Banco Central Europeu criou o seu próprio programa de crise com o PEPP (Pandemic Emergency Purchase Programme) no valor de 1,85 biliões de euros, com o qual continuam a ser compradas obrigações dos Estados, o que prejudica o combate à inflação que é feito com a subida simultânea das taxas de juro directoras e aumenta a margem de manobra económica do Estado.

Além disso, estão à vista agora passos concretos por parte do Estado no sentido de uma política activa de controlo económico, sobretudo no quadro do chamado Acordo Verde Europeu. Os adeptos da linha dura neoliberal queixam-se agora dos esforços do Estado para „orientar o crédito“ para o ambiente, que se exprimem sobretudo na regulamentação taxonómica da UE que define investimentos sustentáveis – ironicamente, os investimentos em gás natural e energia nuclear são também considerados sustentáveis. Além disso, Sven Giegold (Verdes), Secretário de Estado do Ministério da Economia, defendeu no Financial Times há um ano atrás uma „política industrial activa“ do governo alemão, que deveria „apoiar a inovação“, a fim de transformar a RFA numa „economia ecológica e social de mercado“.

No entanto, esta estrutura do capitalismo de crise, caracterizada por uma crescente actividade estatal ou, pelo menos, por uma influência estatal cada vez mais forte, não segue uma estratégia coerente, mas apenas se esforça por evitar um colapso económico durante os surtos de crise. É um keynesianismo quase por acto reflexo das elites funcionais. Os programas de emergência, frequentemente introduzidos como medidas temporárias, tornam-se então permanentes no decurso da crise tomando forma em novas estruturas. Um „navegar à vista“, como disse o então Ministro das Finanças Wolfgang Schäuble sobre as acções do governo alemão durante a crise financeira mundial em 2009.

A política industrial activa do Ministro da Economia Robert Habeck (Verdes), da qual Giegold fez grande propaganda no Financial Times, teve como precursora a promoção estatal dos „campeões“ (grandes empresas consideradas particularmente importantes) pelo seu antecessor Peter Altmaier (CDU), que também quis promover especificamente a indústria de exportação alemã em 2019 devido à crescente concorrência de crise e aos subsídios estatais informais na China e nos EUA.

Esta „navegação à vista“ das elites funcionais em tempos de crise, em que elementos sempre novos da administração da crise capitalista de Estado são aplicados em reacção aos surtos de crise, dá a esta formação todas as características de uma fase de transição para uma administração da crise autoritária. As crises económicas e cada vez mais ecológicas, que forçam os políticos a adoptar o keynesianismo de crise, não são expressão de uma política económica „errada“, mas das crescentes contradições internas e externas da relação de capital, que se manifestam muito concretamente em dívidas que aumentam sem parar, mais depressa do que a produção económica mundial, e numa concentração de CO2 na atmosfera terrestre, que não pára de crescer.

Devido a um nível de produtividade global em constante aumento, o sistema mundial está de facto a funcionar cada vez mais a crédito, incapaz de abrir um novo sector industrial líder de um novo regime de acumulação, em que o trabalho assalariado pudesse ser valorizado em massa. O Estado, através da impressão do dinheiro e do deficit spending (empréstimos para financiar despesas públicas mais elevadas), é praticamente o último recurso para a procrastinação da crise, depois de as economias especulativas das bolhas (bolha dot-com, bolha imobiliária, bolha de liquidez) se terem esgotado em grande parte nos mercados financeiros sobreaquecidos.

Economia de guerra pós-keynesiana

Na produção de mercadorias, o capital perde assim a sua própria substância, o trabalho que cria valor. A aporia do capitalismo resultante deste limite interno do capital torna-se visível na monótona disputa sobre as prioridades da política económica, que se prolonga há anos entre os neoliberais orientados para a oferta e os keynesianos orientados para a procura. É sempre a mesma história, repetida em incontáveis variações: O alerta neoliberal para o sobreendividamento e a inflação devidos a programas de estímulo é rebatido pelos keynesianos com o perigo de uma espiral deflacionista descendente desencadeada por programas de austeridade.

Ambas as partes estão certas nos seus diagnósticos, um dilema que só tinha sido mascarado pela economia das bolhas financeiras da era neoliberal. Agora que se aproxima a estagflação, ou seja, a inflação elevada sem crescimento económico, é óbvio que é precisamente a política monetária dos bancos centrais que se encontra numa armadilha de crise. Teriam de aumentar as taxas de juro por causa da inflação e, ao mesmo tempo, baixar as taxas de juro para evitar uma recessão.

O keynesianismo fracassou na estagflação da década de 1970 – à qual o sistema mundial capitalista tardio está praticamente a regressar, num nível muito mais elevado de produtividade global e de endividamento. Depois de ter chegado ao fim o grande boom do pós-guerra, sustentado pelo regime de acumulação fordista, falhou o deficit spending keynesiano, que apenas alimentava a inflação. O neoliberalismo só conseguiu impor-se na década de 1980 porque o keynesianismo tinha falhado miseravelmente – com taxas de inflação de dois dígitos, recessões frequentes e desemprego em massa. Quando keynesianos desarmados como Heiner Flassbeck, antigo Secretário de Estado do Ministério Federal das Finanças sob Oskar Lafontaine (então SPD), afirmam que foi apenas a crise dos preços da energia e do petróleo que, então como agora, desencadeou o surto de crise e da inflação, estão a mentir a si próprios. O keynesianismo, apesar de todos os programas de estímulo económico, não foi capaz de criar um novo regime de acumulação – nem será capaz de fazer surgir por magia novos mercados, com cujo desenvolvimento o trabalho assalariado pudesse ser valorizado maciçamente ao nível global da produtividade.

O neoliberalismo „resolveu“ o problema na altura com a descolagem especulativa da esfera financeira e a financeirização do capitalismo, retardando as crises no quadro de uma verdadeira economia de bolhas financeiras, que permitiu ao capital viver uma espécie de existência zombie a crédito durante três décadas. Esta é também a diferença fundamental entre a fase de estagflação dos anos 70 e a actual fase de estagflação. A escala da crise é muito maior – e isto pode ser visto muito simplesmente no nível da dívida total em relação à produção económica, que, segundo o Fundo Monetário Internacional, subiu de cerca de 110 por cento no início da era neoliberal em 1980 para 256 por cento em 2020.

A redução deste nível de endividamento só é possível ao preço de uma recessão – por outras palavras, a longo prazo, não é de todo possível. Reagir a recessões com programas de estímulos keynesianos seria também uma pura loucura em termos ecológicos. Os anos de recessão de 2009 e 2020 foram os únicos no século XXI em que as emissões de CO2 diminuíram, mas os pacotes de estímulo acima descritos levaram nos anos seguintes aos maiores aumentos relativos de emissões deste século. Empobrecimento na recessão ou morte pelo clima? Esta alternativa exprime a aporia ecológica da política de crise capitalista.

O keynesianismo, com o seu monótono deficit spending e a sua fé no Estado, não pode evidentemente resolver a escalada da crise interna e externa do capital, mas pode iniciar a transição para uma nova administração da crise. A referência a Keynes pode ser um programa de partida útil para uma forma qualitativamente nova de administração autoritária da crise, especialmente para as elites funcionais que frequentemente actuam „à vista“. Os pós-keynesianos ideologicamente avançados, como a redactora do Taz Ulrike Herrmann, há muito que entenderam isso. No seu mais recente livro sobre „O Fim do Capitalismo“, ela junta uma exposição sobre os limites externos do capital, em grande parte copiada da crítica de valor, com um compromisso com a economia de guerra, incluindo medidas coercivas e racionamento. É para aqui que se encaminha o curso da crise, administração da crise autoritária e pós-democrática, executada por aparelhos estatais em erosão, por vezes abertamente asselvajados. Os keynesianos são a claque desta dinâmica.

O keynesianismo, que apenas devido ao absurdo deslocamento para a direita de todo o mundo político das ideias pode ser localizado à esquerda da social-democracia e considerado de esquerda em geral, degenera assim numa ideologia no sentido literal da palavra: na justificação da iminente administração autoritária da crise capitalista de Estado, que seria exactamente o oposto à emancipação do regime de coerção do capitalismo tardio em colapso, emancipação que é necessária para a sobrevivência.

Original “Fahren auf Sicht” in konicz.info, 24.01.2022. Antes publicado em Jungle World 19.01.2023. Tradução de Boaventura Antunes

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