konicz.info, 26.11.2022
Antecedentes dos últimos ataques do Estado turco contra a região autónoma curda de Rojava
Parece ser a altura certa para uma nova guerra de agressão da Turquia, membro da NATO. Aproveitando o ataque à bomba não esclarecido em Istambul,1 a força aérea turca tem atacado durante dias as regiões autónomas curdas no norte da Síria em Rojava. Dezenas de pessoas foram vítimas dos ataques aéreos.2 Entretanto, funcionários turcos ameaçam abertamente lançar uma nova ofensiva contra Rojava – após a invasão de Afrin em 2018 e o roubo de terras em Outubro de 2019, seria a terceira guerra de agressão do Estado turco contra a região autónoma.
Aqui a Turquia – com a tolerância ou mesmo apoio do Ocidente e de Berlim3 – está a seguir uma política de limpeza étnica,4 na qual centenas de milhares de Curdos estão a ser deportados, a fim de colonizar esta região tampão com milícias islâmicas sírias. Acresce que Ancara tem salientado repetidamente que os refugiados sírios que vivem actualmente na Turquia devem ser deportados para estas áreas conquistadas e controladas pelo islamismo. A Turquia quer assim esmagar completamente Rojava, conquistar o norte da Síria e fazer aí uma limpeza étnica, a fim de gerir esta região como uma „zona de deportação“ para refugiados.
Os últimos ataques contra Rojava são apenas a actual fase de escalada da longa guerra turca contra o movimento de libertação curdo, que está a ser obstinadamente ignorada pelo público ocidental – especialmente pelo parceiro próximo da Turquia, a Alemanha. As forças armadas da Turquia avançaram profundamente no norte do Iraque, onde lutam contra as zonas de retirada da guerrilha curda do PKK. Diz-se que o exército turco está a utilizar armas de destruição maciça, principalmente gás venenoso, enquanto ataca os sobreviventes do genocídio do „Estado Islâmico“ contra os Yazidis nos seus campos de refugiados e aldeias (mais detalhes na próxima Konkret, 12/2022).
Atentado à bomba em Istambul – muitas perguntas sem resposta.
O atentado à bomba em Istambul, que matou seis pessoas em meados de Novembro, já levanta questões consideráveis. O PKK e os Curdos na Síria distanciaram-se claramente deste ataque terrorista. De acordo com os últimos relatórios, a alegada assassina apresentada ao público é irmã de um alto comandante da milícia síria SNA, que é amplamente apoiada pela Turquia.5 Esta milícia exerce um controlo de facto no terreno nas regiões ocupadas pelos turcos do norte da Síria.
Face a estas evidentes inconsistências, o partido de oposição turco HDP falou de „dezenas de perguntas e inconsistências sem resposta“.6 Segundo os porta-vozes do HDP, dá a impressão de que o ataque terrorista serve para legitimar os „ataques e a política de guerra“ da Turquia contra Rojava.
A política de vaivém geopolítico de Erdogan
A constelação geopolítica é actualmente favorável a Erdogan para iniciar uma nova ronda de limpeza étnica. A Turquia é um factor importante na guerra sobre a Ucrânia, onde Erdogan, no seu balanceamento geopolítico, está a cooperar com Moscovo e com o Ocidente, procurando lucrar de ambos os lados da frente.7 A Turquia, que fornece drones a Kiev, quer cooperar com a Rússia em matéria de política energética, a fim de se tornar um centro energético regional. Ancara é também o garante do acordo sobre os cereais na Ucrânia. Pouco antes da actual escalada, a Turquia normalizou mesmo as relações com Israel.
O Ocidente e Moscovo simplesmente „precisam“ de Erdogan face à guerra no Leste, enquanto Berlim, como aliado tradicional do regime turco, dificilmente exercerá pressão sobre Erdogan de qualquer modo. Erdogan utiliza assim as alavancas geopolíticas de poder que lhe foram dadas para promover a sua política imperialista. Os ataques aéreos da Turquia contra Rojava simplesmente não seriam possíveis sem o consentimento da Rússia, bem como da NATO e dos EUA.
Cooperação anti-curda entre Teerão e Ancara?
Ocorre actualmente, de facto, uma cooperação assassina – não-oficial? – entre os regimes de Ancara e Teerão, que é dirigida contra as minorias curdas na região.8 Enquanto a força aérea turca bombardeia Rojava e o exército de Erdogan está a travar a sua guerra suja no norte do Iraque, as tropas iranianas estão a atacar alvos na região curda do nordeste do Iraque9 a fim de enfraquecer o movimento curdo no Irão. Os Curdos do Irão são a espinha dorsal dos protestos em massa que criaram um clima revolucionário na „República Islâmica“. Além disso, estão a acumular-se notícias nos media sociais10 de que os Guardas Revolucionários Iranianos estão a levar a cabo massacres nas áreas curdas do Irão11 a fim de quebrar as costas ao movimento de insurreição no Estado dos mulás. Há também relatos vindos do Irão de uso de gás contra manifestantes.12
Devido à crescente instabilidade política interna, ambos os regimes autoritários estão actualmente unidos nos seus esforços para esmagar o movimento de libertação curdo, uma vez que a sua perspectiva pós-estatal, visando a emancipação e libertação das mulheres, também tem impacto nas populações desses Estados. O slogan „Mulher, Vida, Liberdade“, sob o qual a insurreição do Irão está a lutar, foi cunhado precisamente por feministas curdas. E também o governo de Erdogan e do seu AKP islâmico na Turquia é tudo menos estável perante uma grave crise económica e uma inflação de mais de 80%.13 A expansão externa serve assim a Ankara como válvula de escape para as tensões internas.
EUA na Síria
Uma nova ronda de limpeza étnica, em que os parceiros ocidentais olhariam para o lado como habitualmente, é exactamente o que Erdogan precisa a nível interno. A situação precária dos Curdos na Síria é tornada clara pelo facto de que na realidade são os EUA que estão no caminho de uma nova guerra de agressão por Erdogan. Washington ainda tem tropas estacionadas no nordeste da Síria, que juntamente com as forças curdas derrotaram o „Estado Islâmico“, por vezes abertamente apoiado pela Turquia.
O norte da Síria está efectivamente dividido entre uma zona de ocupação turca em Idlib e Afrin, uma esfera de influência russa no oeste e à volta de Aleppo, e as restantes zonas autónomas dos Curdos no leste, onde as tropas americanas estão presentes. Sem a tolerância de Washington, porém, Erdogan não pode esperar liderar uma nova campanha de conquista em Rojava. Ao mesmo tempo, Ancara e Teerão estão também unidos no objectivo geopolítico de expulsar da região o poder hegemónico vacilante dos EUA, a fim de dar livre curso às suas próprias ambições imperiais.
A terceira traição?
Alguns antecedentes: Esta divisão do norte da Síria em esferas de influência foi estabelecida na sequência da guerra civil síria, quando o regime de Assad só conseguiu manter-se no poder através da intervenção militar russa. Os restos do movimento de insurreição contra Assad, que se tornou cada vez mais dominado pelas forças islamistas no decurso da guerra civil, podem ser encontrados nas áreas ocupadas pelos turcos. A primeira conquista na Síria pela soldadesca de Erdogan contra o cantão de Afrin teve lugar em 2018 com a aprovação de Putin, uma vez que esta região autónoma do norte da Síria estava dentro da esfera de influência da Rússia na Síria.14 Em troca, Moscovo recebeu promessas de acordos sobre oleodutos, construção de reactores nucleares russos e compra de armas. O preço deste negócio imperialista sujo teve assim de ser pago pelos Curdos, que foram expulsos de Afrin, aliás com a aprovação de Merkel15.
A segunda traição dos Curdos da Síria foi cometida pelo populista de direita Donald Trump, Presidente dos EUA, que em Outubro de 2019 também deu luz verde a Erdogan para outra invasão de Rojava.16 A propósito, o abandono dos Curdos da Síria por Washington ocorreu apenas algumas semanas depois de estes terem sofrido pesadas baixas na conquita da cidade síria de Rakka, que era o último bastião e capital do „califado“ do „Estado Islâmico“ na Síria.
Isto levanta a questão de saber se o governo autónomo de Rojava enfrenta agora uma terceira traição – desta vez pela administração Biden, que se está a concentrar sobretudo na guerra na Ucrânia e a canalizar uma grande parte dos seus recursos para lá. Antigos generais dos EUA queixam-se agora abertamente da crescente escassez no fornecimento de sistemas de armas e, sobretudo, de munições.17 Erdogan escolheu assim um momento ideal para a sua agressão imperialista também neste aspecto.
Annalena? Desaparecida!
A propósito: as feministas curdas não devem contar com a Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã Annalena Baerbock, que em todo o caso pretendia liderar uma „política externa feminista“.18 A Alemanha tem – já desde o genocídio dos Arménios na I Guerra Mundial – uma longa e sangrenta tradição de cooperação com o Estado turco. Desde o início da actual campanha de terror turca contra Rovaja, a Ministra dos Negócios Estrangeiros, que gosta de se adornar com os slogans do movimento curdo pela liberdade,20 está simplesmente desaparecida neste conflito.
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1 https://www.bbc.com/news/world-europe-63615076
2 https://twitter.com/YPJ_Info/status/1594707983870660609
3 https://www.thetimes.co.uk/article/syria-un-refuses-to-investigate-claims-of-white-phosphorus-use-in-turkish-offensive-3bv7qdmxz
4 https://www.konicz.info/2022/06/30/toter-winkel/
5 https://www.gerceknews.com/turkey/suspected-bomber-of-istanbul-attack-says-she-is-the-sister-of-a-sna-commander-217624h
6 https://www.gerceknews.com/turkey/hdp-taksim-bombing-a-scheme-for-endorsing-governments-new-offensive-concept-217630h
7 https://www.jpost.com/middle-east/article-722988
8 https://www.jpost.com/middle-east/article-722970
9 https://twitter.com/sotiridi/status/1594461604246355969
10 https://twitter.com/ArioMirzaie/status/1594664787593543682
11 https://twitter.com/FazelHawramy/status/1594695514725154817
12 https://twitter.com/factnameh/status/1594720071523278848
13 https://www.reuters.com/markets/asia/turkeys-inflation-hits-24-year-high-855-after-rate-cuts-2022-11-03/
14 https://www.konicz.info/2018/01/21/afrin-erdogans-werk-und-putins-beitrag/
15 https://www.konicz.info/2020/01/25/tuerkei-merkels-zivilisatorischer-tabubruch/
16 https://de.wikipedia.org/wiki/T%C3%BCrkische_Milit%C3%A4roffensive_in_Nordsyrien_2019
17 https://www.youtube.com/watch?v=0nvyZ88d_V0
18 https://twitter.com/Ezgi_Guyildar/status/1594313715704291331
19 https://www.bpb.de/themen/zeit-kulturgeschichte/genozid-an-den-armeniern/218106/die-deutschen-und-der-voelkermord/
20 https://de.wikipedia.org/wiki/Frau,_Leben,_Freiheit#Deutschland
Original “Erdogans imperialistische Eskalation” em konicz.info, 22.11.2022. Tradução de Boaventura Antunes