OS IMPERIALISTAS ALTERNATIVOS

A catástrofe capitalista está a tornar-se cada vez mais clara. A esquerda deve lutar por uma saída emancipatória

04.10.2022, Tomasz Konicz

Independentemente de toda a ideologia, megalomania e oportunismo, muitas contribuições de esquerda para o debate sobre a Ucrânia parecem sofrer de um equívoco lógico fundamental. São frequentemente escritas na convicção de que existe uma saída para esta catástrofe. Dependendo do ponto de vista político ou ideológico, imagina-se uma parte do conflito ou uma constelação geopolítica que, vista objectivamente, desanuviaria o conflito, e possivelmente até promoveria o progresso. Em variações sempre novas, ou se exige o apoio da Ucrânia e da NATO, para ajudar a democracia burguesa à vitória na sua luta contra o despotismo eurasiático, ou se invoca a derrota do imperialismo ocidental, que deveria ser substituído por uma ordem mundial multipolar. A esquerda – de acordo com uma megalomania comum à cena – teria de agarrar o manto da história e unir-se ás forças do objectivamente bom e verdadeiro, caso contrário estas ficariam a perder na luta histórica titânica que irá moldar as próximas décadas. E o espírito do mundo hegeliano ainda assombra em fundo, com a sua „astúcia da história“, que só precisa de ser interpretada correctamente.

Mas, e se não houver uma saída progressista ou mesmo „neutra“ para esta catástrofe, que restabeleça o status quo pré-guerra? E se a suposição básica delineada estiver errada? A contribuição que se segue para o debate descreve, com recurso à construção teórica da crítica do valor, a guerra sobre a Ucrânia como um ponto de viragem e alteração qualitativa do processo de crise irreversível do sistema mundial capitalista, a fim de tomar depois uma posição no debate no seio da esquerda. O conflito irá provavelmente moldar as próximas décadas. A guerra na Ucrânia encorajará a brutalização e a barbarização – independentemente de a Rússia ou o Ocidente sairem vitoriosos deste massacre imperialista. Temos de ter sorte – e neste caso a generalização é realmente necessária – para que a guerra termine sem uma troca de galhardetes nuclear, sem uma ruptura da civilização. Embora o discurso público reificado sobre as crises goste de separar os momentos individuais do processo de crise uns dos outros, a realidade da dinâmica da crise não adere a esses costumes. Assim, mais distorções económicas, geopolíticas ou ecológicas poderiam interagir com a guerra na Ucrânia e conduzi-la a uma escalada global.

Sem o desenvolvimento de um conceito adequado de crise, a guerra simplesmente não pode ser compreendida. É por isso que a busca patética dos „interesses racionais“ dos imperialistas, em que os „anti-imperialistas“ alemães em todos os seus tons de vermelho a castanho se desonraram tão lindamente, estava condenada ao fracasso desde o início. E é por isso que foi possível para a crítica de valor prever a invasão russa. A dinâmica fetichista da crise é o momento irracional que levou as elites funcionais das partes em conflito imperialista a entrar no conflito. Isto é evidente no caso da Rússia, que enfrentou a erosão da sua esfera de influência imperial no espaço pós-soviético.
A ruptura social na região economicamente dependente, onde antigas cliques da nomenklatura estabeleceram oligarquias e cleptocracias autoritárias, está a criar explosivos sociais sempre que as matérias-primas e combustíveis fósseis não possam ser exportados em quantidades suficientes para manter partes da população em silêncio. Esta instabilidade fornece ao Ocidente amplas áreas de ataque. A guerra de agressão russa foi precedida não só pela guerra sobre Nagorno-Karabakh, mas sobretudo pelas revoltas na Bielorrússia e no Cazaquistão, em que o Ocidente nem teve de intervir muito, porque foram alimentadas por factores sociais internos.

Foi este pânico de novas „revoluções“ no seu quintal imperial que levou à guerra o Kremlin incapaz de se modernizar. As tensões sociais no espaço pós-soviético, onde a hegemonia da Rússia estava a diminuir rapidamente até ao início da guerra da Ucrânia, deram origem a uma dinâmica de protesto, insurreição e intervenção externa que ameaçava o equilíbrio do poder. Para que Moscovo continuasse a ser a capital de um império, então o Ocidente tinha de ser empurrado para trás na Ucrânia pela força das armas. A invasão russa da Ucrânia é, assim, um sinal de fraqueza, uma vez que falharam outros meios manter a ligação desta componente central da esfera de influência russa. É um imperialismo de pura crise que actua a partir da defensiva, procurando ultrapassar as tensões internas através da expansão externa – e actuando de forma particularmente brutal precisamente devido à sua inferioridade militar e económica.

Mas o mesmo acontece no caso do Ocidente. Não foi só o Kremlin que se sentiu obrigado a fazer uma enorme aposta ao invadir a Ucrânia. A relutância do Ocidente, tanto dos EUA como da UE, em fazer cedências no período que antecede a invasão é a expressão de uma dinâmica semelhante de crise interna e expansão externa – neste caso, no espaço pós-soviético. A NATO recusou-se categoricamente a dar garantias de neutralidade da Ucrânia, que evidentemente fazia parte da esfera de influência da Rússia, ao mesmo tempo que trabalhava a todo o vapor para modernizar as forças armadas ucranianas, que foram enriquecidas com regimentos nazis, fornecendo ao Kremlin pelo menos um casus belli. Teria a Rússia atacado a Ucrânia mesmo no caso de garantias vinculativas de neutralidade? Nunca saberemos. Resta saber se o Ocidente calculou mal ou se provocou deliberadamente a invasão de modo a fazer a Rússia sangrar no pântano da guerra ucraniana.
A UE já durante a intervenção ocidental em 2014 – quando o governo Yanukovych foi derrubado – se orientava pelo interesse em sabotar a concorrência geopolítica a uma Europa dominada pela Alemanha. Berlim e Bruxelas não toleravam qualquer alternativa à zona euro sobreendividada. A estratégia de expansão da NATO no „quintal“ da Rússia, porém, é motivada sobretudo pelos esforços de Washington para travar a decadência imperial dos EUA, para preservar a sua hegemonia e o dólar como moeda de reserva mundial. Sem o dólar como medida do valor de todas as mercadorias, os Estados Unidos iriam degenerar numa gigantesca Grécia com armas. O aumento da inflação indica que a impressão do dinheiro pela Fed está agora a atingir os seus limites. Enquanto a UE e a RFA queriam impedir a formação da „União Eurasiática“ propagada por Putin, Washington estava adicionalmente preocupada em introduzir uma cunha entre Berlim e Moscovo, a fim de reforçar o sistema de aliança atlântica em erosão. A invasão russa da Ucrânia ancorou a UE mais firmemente na Aliança Atlântica, tornou impossível uma aproximação germano-russa a médio prazo e levou à expansão da NATO na Escandinávia.

Não é apenas o limite interno do sistema mundial capitalista, sufocado pela sua hiperprodutividade, que faz com que a guerra e a expansão externa apareçam aos monstros estatais sobreendividados e socialmente quebrados como a última saída para a crise em vias de se transformar em pura desvalorização monetária ou deflação. O limite externo do capital, que na sua compulsão de valorização está a privar a humanidade dos fundamentos ecológicos da vida, manifesta-se concretamente na crise alimentar que está a escalar com a guerra sobre a Ucrânia, sobretudo em África. O controlo sobre os alimentos está a tornar-se uma alavanca geopolítica de poder na crise climática manifesta, à semelhança dos combustíveis fósseis. A guerra não apenas foi causada pelas contradições que se agravaram devido à crise, mas também intensifica como acelerador da crise os processos dados de desintegração, que levam todo o sistema mundial para uma nova qualidade da crise: Desglobalização, incluindo o isolamento e a formação de campos, lutas por recursos, crises de escassez e estrangulamentos de abastecimento, militarização e o perigo de guerra em grande escala, e a interacção da formação de Estados autoritários e processos de erosão social e estatal. Este ponto de viragem do processo de crise é irreversível, não há como voltar ao tempo de antes da guerra. Assim, a era actual do imperialismo de crise caracteriza-se pela interacção entre a luta pelo domínio estatal e o processo de crise do capital, que tem uma dinâmica fetichista própria mediada pelo mercado e alimentada pelas contradições internas e externas do capital. O capital produziu, assim, uma formação social que não tem sob controlo esta dinâmica de funcionamento cego e que, em última análise, é por ela impulsionada para o colapso social e ecológico.

O processo objectivo de crise do capital ocorre através dos correspondentes confrontos imperialistas de crise dos sujeitos estatais – esta execução da dinâmica de crise através de lutas económicas, geopolíticas, de inteligência ou de poder militar, é o núcleo objectivo da práxis de crise imperialista. O Kremlin está a travar a sua guerra na Ucrânia para manter o estatuto da Rússia como potência imperial. Os EUA provocaram a guerra a fim de poderem continuar como potência hegemónica. A crise está assim a levar ao confronto os últimos monstros estatais do capitalismo tardio, tanto na sua dimensão económica como na ecológica. Uma vez que a crise sócio-ecológica sistémica não pode ser resolvida no quadro do sistema capitalista mundial, o imperialismo de crise tem o seu ponto de fuga numa guerra em grande escala, que teria consequências incalculáveis, devido ao potencial de destruição acumulado no capitalismo tardio. Sem uma transformação sistémica emancipatória, a civilização está ameaçada de colapso, através de uma catástrofe climática e de uma guerra nuclear.

Por falta de um adequado conceito radical de crise, uma grande parte do que se via como esquerda na Alemanha evaporou-se simplesmente desde o início da guerra da Ucrânia tomando partido. A guerra apenas acelerou a desintegração das partes da esquerda alemã cegas à crise e oportunistas, que se alinham ao longo da frente. Por um lado, os apologistas de Putin em torno de Wagenknecht ou dos media transversais como „Telepolis“ ou „Nachdenkseiten“, que fazem descaradamente a apologia de Putin, apesar do anti-imperialismo da boca para fora. Por outro lado, os apoiantes da NATO e dos ocos valores ocidentais, que vendem a ideologia burguesa-liberal envelhecida uma última vez, antes de os Estados ocidentais se afundarem também na barbárie.

Enquanto no ambiente liberal de esquerda dos Verdes se encontram palavras de louvor para Bandera, os anti-imperialistas alemães em todas as suas tonalidades, do vermelho ao castanho, actuam como imperialistas alternativos, que simplesmente propagam os interesses imperiais da Rússia ou da China. Tudo isto culmina então em apelos megalómanos, formulados a partir de uma distância segura, aos ucranianos, ou para que se mantenham corajosamente como carne para canhão a defender a liberdade e a democracia, ou para que se rendam ao imperialismo russo à medida que os preços do gás na Alemanha disparam.

A nova qualidade da crise que se afirma com a guerra para lá da globalização neoliberal marca assim também o limite da práxis de esquerda no interior do capitalismo. Uma „política“ progressista e emancipatória já não pode ser formulada sem um conceito radical de crise, o que deixa sem alternativa uma luta pelo curso da transformação total do sistema. O cego processo de crise em curso, que na sua dinâmica de confrontação destrutiva a nível geopolítico está a conduzir a uma guerra em grande escala, tem de ser a questão central de qualquer esforço prático de esquerda, e não o papaguear oportunista da propaganda imperialista ou o imaginar de uma qualquer constelação de Estados „objectivamente progressista“ no actual imperialismo de crise.

Em última análise, a esquerda alemã também teria de se decidir a enfrentar o facto óbvio e durante décadas obstinadamente ignorado da crise sistémica do capital (que também dificilmente entra no actual debate sobre a Ucrânia), a fim de pelo menos ter a oportunidade teórica de lutar para sair da sua impotência e insignificância.

Para isso, seria necessário dizer às pessoas o que é o quê, em vez de as assediar com ideologia anacrónica. O quão desactualizado está o ícone anti-imperialista Lenine, por exemplo, pode ser visto no seu clube de fãs em regressão, que no contexto do debate sobre a Ucrânia na revista Konkret foi capaz de dizer disparates reaccionários sob a forma de elogios superficialmente ocultos a Wagenknecht e aos socialistas de mentalidade nacional do partido „Die Linke“. Logo a tia da frente transversal do Partido da Esquerda, que faz diligente propaganda à Nova Direita, é que não deve ser oportunista. Ideia que só poderia ocorrer a quem o conceito de rebelião oportunista é alheio.

Os imperialistas alternativos da Alemanha, ainda minimizados como anti-imperialistas, conseguem espalhar o seu lixo anacrónico e reificado, que há muito funciona como apologia da administração autoritária da crise capitalista em países como a Rússia ou a China, em órgãos mais ou menos abertos a tendências de frente transversal como „Telepolis“, „Nachdenkseiten“, „Freitag“, „Berliner Zeitung“ e „Rubikon“. Não é por acaso que estes media são maioritariamente financiados por homens ricos, velhos e brancos particularmente receptivos à ideologia reaccionária da camada alta alemã, da pequena burguesia e da famigerada classe média. A que se junta o „Junge Welt“ como seu órgão.

Esta ideologia anacrónica e de direita simplesmente falha a realidade da crise. Muitas pessoas há muito que sentem que o sistema está numa crise irreversível, que a transformação já começou. A práxis da esquerda só pode agora ser implementada como um momento parcial de luta para ultrapassar a catástrofe capitalista que se está a tornar cada vez mais evidente. O perigo de uma guerra em grande escala só pode ser combatido no âmbito de uma luta pela transformação, que terá de ser propagada ofensivamente. O processo de transformação é inevitável, mas, tendo em conta a guerra na Ucrânia, a práxis emancipatória tem de visar assegurar que a transformação não acabe na barbárie ou na guerra mundial.
Em vez de discutirem frentes imperialistas ou papaguearem lixo propagandístico, os de esquerda teriam de antecipar o curso da crise, indicar as contradições cruciais e facilitar uma transformação do sistema em colapso em algo pós-capitalista, que salve o mais possível de elementos do processo histórico da civilização. A luta contra o perigo da guerra em grande escala, contra a ditadura de crise, o chauvinismo e a agitação teria de ser conduzida com o objectivo de criar condições favoráveis a um curso emancipatório de transformação. Poderia então também interagir com outras lutas, tais como a luta contra as alterações climáticas. A luta pela transformação formaria um denominador comum para reunir movimentos de protesto aparentemente díspares.

À primeira vista, propagandear a transformação do sistema como uma necessidade de sobrevivência parece garantir a marginalização de qualquer movimento. Mas é precisamente a dinâmica da crise que, a cada novo surto de crise, demonstra poderosamente às pessoas como é necessário ultrapassar o capitalismo. Claro que a esquerda não tem actualmente sentido, mas é precisamente a propagação consistente de uma consciência radical e anti-capitalista de crise na prática concreta que poderá mudar isto muito rapidamente em interacção com os próximos surtos de crise. O que teria de ser feito em demarcação dos „anti-imperialistas“, entretanto definhados na vanguarda da barbárie, por causa do seu flanco aberto à extrema-direita e não só. As margens de manobra capitalistamente deformadas da democracia burguesa ocidental, tão odiadas nestes círculos como as ameaçadoras importações dos EUA, têm de ser defendidas, precisamente no quadro da luta pela transformação, a fim de tornar possível o seu curso progressista.

Original “Die Alternativimperialisten” in: konicz.info, 02.10.2022. Antes publicado na revista konkret 09/2022. Tradução de Boaventura Antunes

Nach oben scrollen