The walking debt

05.09.2022
Tomasz Konicz, Tradução de Boaventura Antunes

Sobreendividamento, inflação, recessão iminente e políticas impotentes: é provável que o actual surto de crise se instale em pleno mesmo nos centros ocidentais do sistema capitalista mundial

Nova década, nova crise? Em meados de Junho, a zona monetária europeia, já à beira do colapso durante a crise do euro, pareceu mudar mais uma vez para o modo de pânico. O Banco Central Europeu (BCE) sentiu-se obrigado a realizar uma reunião especial no dia 15 de Junho após os mercados financeiros europeus terem sido atingidos pelo aumento dos diferenciais das taxas de juro, os chamados spreads, entre as obrigações da dívida pública alemã e do sul da Europa. Em particular, o spread entre os títulos da dívida pública alemã e italiana é considerado um indicador de crise fiável, porque a Itália, como terceira maior economia, tem um elevado nível de dívida pública de cerca de 150 por cento do produto interno bruto (em 2019, antes do surto da pandemia, a dívida do país era de 135 por cento), o que faz com que o peso dos juros das obrigações italianas cresça particularmente depressa no caso de qualquer turbulência. Além disso, a Itália tem taxas de crescimento abaixo da média, pelo que há poucas perspectivas de reduzir o peso da dívida num futuro previsível. As previsões económicas da OCDE, que são revistas regularmente em baixa de qualquer forma, pressupõem um crescimento de 2,5% para o país este ano e apenas 1,2% no próximo ano.

O mercado obrigacionista italiano funciona como uma espécie de sistema de alerta precoce, que tocou fortemente em meados de Junho: O rendimento das obrigações da dívida italiana aumentou para mais de quatro por cento, e o spread para a dívida alemã atingiu quase 250 pontos de base (2,5 por cento). O que tinha acontecido? O BCE tinha anteriormente mantido a perspectiva de seguir a liderança da Fed e de combater a inflação galopante de 8,1% na zona euro com uma viragem monetária no sentido de uma política monetária restritiva. Os „guardiões da moeda“ europeus anunciaram assim que abandonariam a política de taxa de juro zero que vinham seguindo há onze anos, ou seja, desde a última crise do euro, e aumentariam as taxas de juro directoras. Além disso, deveria ser iniciada uma saída gradual dos programas de compra de obrigações do Estado, com a qual o peso dos juros no Sul é reduzido e a oferta de dinheiro é aumentada. O simples anúncio de um afastamento da política monetária expansionista levou a um aumento do peso dos juros na periferia sul da Zona Euro.

Na sua reunião especial, o BCE decidiu então continuar a comprar as obrigações dos „países mais fracos do euro“, se necessário, a fim de manter a diferença para obrigações alemãs dentro de limites toleráveis, o que levou imediatamente a uma redução do prémio de risco entre os títulos da dívida italiana e alemã. Um dos objectivos do BCE é não aumentar ainda mais o seu balanço, que cresceu para oito biliões de euros durante a pandemia e ascendia a menos de cinco biliões de euros antes do início da pandemia, através da compra de títulos. As receitas geradas pelos títulos de dívida soberana com vencimento devem agora ser utilizadas para comprar novas obrigações até ao final de 2024. Com um volume deste programa de crise de 1,7 biliões de euros, o BCE ainda tem assim muita margem de manobra para substituir as obrigações alemãs por obrigações italianas, por exemplo. Mas com isto, o banco central já assumiu parcialmente o seu adeus à política monetária expansiva que tinha sido anunciado com o objectivo de combater a inflação.

Com a Itália está agora ameaçado com uma crise de dívida um membro da Zona Euro cujo produto interno bruto (PIB) é cerca de dez vezes mais elevado do que o da Grécia. Só no próximo ano, deverão ser refinanciadas responsabilidades públicas a sul dos Alpes no valor de quase 290 mil milhões de euros, enquanto a Grécia tem um PIB de 180 mil milhões de euros. Por esta razão, é de facto impossível para a República Federal, enquanto potência dominante dentro da zona Euro, submeter a Itália a um ditame de austeridade como o antigo Ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble (CDU) impôs à Grécia, sem pôr em perigo a existência de toda a zona monetária europeia. A Itália é de facto too big to fail. Assim, se Berlim tentasse conduzir o país a uma espiral deflacionista semelhante à da Grécia, seria o mesmo que fazer explodir a zona euro, como já foi preconizado durante a crise do euro pelas secções abertamente reaccionárias das elites funcionais alemãs no FDP e na margem direita da CDU („União de Valores“).

Actualmente é sobretudo o Presidente do Bundesbank, Joachim Nagel, quem está a disparar contra a política de crise do BCE, repetindo a velha exigência alemã de associar a condicionalidade política – na sua maioria programas de austeridade – à ajuda financeira aos Estados em crise. Tendo em conta a elevada inflação, Nagel falou de „águas perigosas“ em que o BCE está a entrar quando compra obrigações dos Estados do sul da Europa, assim que o seu diferencial de taxas de juro em relação às obrigações do governo alemão atinge um nível especulativo. Não é de todo claro como se pode distinguir uma reacção normal do mercado ao elevado peso da dívida no sul da Zona Euro de uma reacção especulativa.

O abandono da política monetária do BCE, que consiste em aumentar cautelosamente as taxas de juro directoras, por um lado, e continuar a imprimir dinheiro através da compra de obrigações dos Estados, por outro, é uma expressão da constelação política de poder no seio da UE. Berlim, onde os monetaristas mandam, recebe o seu aumento da taxa de juro, enquanto o sul da zona euro, que favorece uma política monetária expansiva, pode contar com mais compras de obrigações. É por isso que o banco central europeu está muito mais hesitante em aumentar as taxas de juro de referência do que a Fed, que já aumentou a taxa de juro de referência para 1,75 por cento.

Dez anos após a crise do euro, a Europa alemã encontra-se de novo num impasse: o BCE deveria efectivamente aumentar as taxas de juro rápida e significativamente, a fim de conter a inflação. E, ao mesmo tempo, os „guardiões da moeda“ teriam de manter as taxas de juro baixas, para evitar uma nova crise da dívida no Sul e a ameaça de recessão. A luta em torno da política monetária não é um fenómeno puramente europeu; disputas semelhantes entre keynesianos e monetaristas estão também a ter lugar nos EUA. A ligação entre a grande inundação de dinheiro relacionada com a pandemia e a inflação global foi discutida mais recentemente, por exemplo, perante a Comissão de Finanças do Senado dos EUA, que a Secretária do Tesouro da administração Biden, Janet Yellen, teve de enfrentar no início de Junho. O papel de Berlim foi desempenhado pela oposição republicana, que afirma que a inflação e o „sobreaquecimento“ da economia foram alimentados pelo pacote de estímulo de 1,9 biliões de dólares.

No entanto, estes debates entre os defensores keynesianos da política monetária expansionista e os monetaristas neoliberais apontam para as crescentes contradições e tensões internas da política de crise capitalista, que dificilmente podem ser ultrapassadas no actual surto de crise. E um modelo de acumulação que possa conduzir à saída da crise do capitalismo tardio – as previsões económicas para os EUA, bem como para a zona euro, são sombrias – não pode ser simplesmente tirado da cartola. Basicamente, ambos os lados no conflito monetário alimentado por interesses nacionais ou de classe estão bastante certos nos seus diagnósticos à beira do leito de doente do capitalismo, enquanto que as suas „propostas terapêuticas“ estão erradas. A política monetária expansionista provoca, de facto, um aumento da inflação, pelo que o foco aqui deve ser a esfera financeira, onde as „injecções de liquidez“ dos bancos centrais no século XXI levaram às correspondentes bolhas especulativas, ou seja, à inflação dos títulos ou dos preços do imobiliário. Ao mesmo tempo, o monetarismo e o regime de austeridade neoliberal – como brutalmente executado por Schäuble na Grécia – conduzem aos colapsos económicos bem conhecidos no Sul da Europa.

A política de crise capitalista tardia encontra-se assim num dilema. Deflação ou inflação: existem apenas diferentes caminhos da crise ao longo dos quais a desvalorização irreversível do valor pode prosseguir. Ou o dinheiro é desvalorizado na sua qualidade de equivalente geral (inflação), ou o processo de desvalorização toma posse do capital na sua forma de capital constante e variável – como fábricas, máquinas e pessoas dependentes dos salários que se tornam economicamente supérfluas.

No decurso do século XXI, não só as montanhas globais de dívida cresceram mais rapidamente do que a produção económica mundial, como as taxas de juro também diminuíram constantemente desde o avanço do neoliberalismo e a financeirização do capitalismo, porque, após o rebentamento de cada bolha especulativa, o sistema financeiro mundial teve de ser salvo do colapso com taxas de juro baixas e impressão de dinheiro. As actuais distorções nos mercados financeiros indicam que a transição para um novo ciclo especulativo dificilmente será possível. A política de crise capitalista cavalgou a sua pileca até à morte. E a inflação, que costumava ocorrer principalmente na esfera financeira, está a chegar à chamada economia real.

Foi precisamente o fracasso do keynesianismo no final dos anos 70 que abriu o caminho ao neoliberalismo, que susteve a inflação com uma fase de taxas de juro extremamente elevadas (choque Volcker) e lançou as bases para a descolagem dos mercados financeiros e da economia de bolhas do neoliberalismo actualmente em colapso. As elevadas taxas de juro na altura funcionavam como um íman, atraindo capital em busca de investimento para a esfera financeira dos EUA. Agora a estagflação há muito esquecida está a regressar numa escala mais elevada. A diferença mais importante entre a actual onda de inflação e a fase histórica de estagflação é o endividamento extremo do sistema mundial. Uma fase de taxas de juro elevadas, tal como iniciada pelo então Presidente da Fed Paul Volcker a partir de 1979, já não oferece uma saída hoje em dia.

Actualmente, os neokeynesianos em particular estão a promover a criação de mitos que deslocam as causas sistémicas da crise para fenómenos externos. Segundo isto, apenas as consequências da pandemia e especialmente da guerra de agressão russa podem ser consideradas como causas do aumento da inflação. Isto faz lembrar a interpretação do período histórico de estagflação, que ainda hoje é popular, que teria sido unicamente devida ao choque dos preços do petróleo de 1973. O fim do boom fordista e com ele a crise estrutural do capitalismo são ignorados.

Mas a actual onda de inflação não é meramente „inflação Putin“ relacionada com a guerra. Mesmo um olhar rápido sobre o desenvolvimento da dinâmica da inflação mostra claramente que esta começou ainda antes da invasão russa da Ucrânia, em reacção à inundação de dinheiro dos bancos centrais relacionada com a pandemia. A fim de absorver o primeiro choque deflacionista após o surto pandémico, as medidas de estímulo global atingiram um múltiplo do que foi gasto para estabilizar o sistema financeiro mundial após o rebentamento das bolhas imobiliárias em 2007/08. Neste sentido, os choques „externos“ funcionam, na melhor das hipóteses, como aceleradores da crise. A inundação de dinheiro, em interacção com o rebentamento da bolha de liquidez global – a „bolha de tudo“ – deve ser entendida como a causa primária da desvalorização do valor que agora se instala.

A limitação ou ruptura do comércio global e das cadeias de produção durante a pandemia e a guerra da Ucrânia explica principalmente a recente aceleração da inflação dos preços. No entanto, no caso da guerra da Ucrânia, a interacção com o processo de crise é também óbvia, uma vez que Moscovo, de forma imperialista clássica, lançou o ataque à Ucrânia em resposta às crescentes rejeição e agitação no espaço pós-soviético, instrumentalizadas pelo Ocidente. Além disso, a crise climática em plena expansão está a impulsionar a inflação, causando défices de produção – tais como falhas nas colheitas – e aumento da procura de energia – o Brasil, por exemplo, teve de importar mais gás natural com uma seca prolongada e produção limitada de energia hidroeléctrica.

Muito provavelmente, as consequências socioeconómicas do último surto de crise já não poderão ser transmitidas dos centros para a periferia. Especialmente na República Federal da Alemanha, que até agora tem sido largamente poupada pela crise, e onde só o medo da crise deu aos partidos nazis resultados eleitorais de dois dígitos, as próximas convulsões políticas podem ser dramáticas.

Original “The walking debt” publicado originalmente em konkret 08/2022. Publicado em konicz.info em 03.09.2022. Tradução de Boaventura Antunes

1 Kommentar zu „The walking debt“

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