A CATASTRÓFICA LÓGICA DE ESCALADA NA UCRÂNIA

A ofensiva no Donbass, a ameaça de declaração de guerra e o afundamento do „Moscovo“: Apanhados numa espiral de escalada, a Rússia e o Ocidente estão a cambalear perante a catástrofe.

Tomasz Konicz, 16.04.2022, Tradução de Boaventura Antunes

„Moscovo“ era o navio almirante e o orgulho da frota russa do Mar Negro. O cruzador de mísseis soviético, que entrou ao serviço em 1979 e teve uma modernização completa em 2021, encontra-se agora no fundo do Mar Negro. Moscovo falou de um incêndio descontrolado a bordo do navio, que diz ter sido apanhado numa tempestade enquanto era rebocado e afundado; Kiev relatou horas antes que o „Moscovo“ tinha sido atingido por um míssil anti-navio ucraniano lançado de terra.

Uma vez que o navio almirante russo tinha um sistema de defesa anti-aérea que pode realmente atacar vários desses alvos ao mesmo tempo, um ataque ucraniano bem sucedido tem de ser atribuído a um fracasso aparentemente inacreditável por parte da marinha russa ou a um forte apoio por parte da NATO (por exemplo, através de posicionamento por satélite em tempo real). Entretanto, além disso, há cada vez mais indicações de que o navio transportava armas nucleares quando afundou: o „Moscovo“ pode ter levado várias ogivas nucleares com ele para o fundo do Mar Negro. (1)
A perda do „Moscovo“ representa mais um desastre militar para o Kremlin – após a retirada da região de Kiev e do norte da Ucrânia – levando a um enfraquecimento substancial da frota do Mar Negro e a uma tremenda perda de prestígio para a Rússia como grande potência militar (a última vez que a marinha russa perdeu um navio almirante foi durante a Guerra Russo-Japonesa, ou seja, na fase final da decadente Rússia czarista – pelo menos neste aspecto Putin já está muito próximo do seu ideal imperial). O navio almirante russo servia principalmente como bateria antiaérea flutuante, de modo que agora os possíveis desembarques de fuzileiros russos na costa ucraniana, por exemplo em Odessa, se tornaram menos prováveis. A isto acresce o poderoso impacto desta perda na opinião pública russa e na já abalada moral das tropas russas na Ucrânia.
As reacções do exército russo também dão a entender um ataque bem sucedido da Ucrânia-Ocidente ao „Moscovo“: os restantes navios russos foram retirados da costa ucraniana, (2) teve início um bombardeamento intensificado da Ucrânia, (3) Moscovo anunciou a intensificação dos ataques com mísseis a Kiev, enquanto o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, avisou Kiev de que a Rússia poderia sentir-se obrigada a declarar guerra à Ucrânia no caso de novas „provocações“ (as tropas ucranianas conseguiram recentemente atacar vários alvos perto da fronteira na Rússia). (4) Além disso, o Kremlin avisou os EUA e a UE de „consequências imprevisíveis“ se as entregas de armas ocidentais à Ucrânia não fossem interrompidas em breve.
Putin encontra-se assim na mesma posição que após o fracasso da sua „guerra-relâmpago“ na primeira semana da invasão russa, que até agora se traduziu numa série de catástrofes e desastres militares russos. Nessa altura, os avanços das unidades russas em cidades ucranianas como Kiev e Kharkiv falharam, levando Moscovo a passar à utilização de armas pesadas, num passo de escalada. Ou Moscovo responde ao desastre actual com uma escalada, ou o Kremlin submete-se à derrota e procura uma saída para a guerra. Mas a última opção dificilmente parece viável para Putin sem arriscar a perda do poder. Quanto mais tiver progredido a guerra, que na realidade se assemelha a uma sequência de passos de escalada, maiores serão as apostas políticas. O exército russo sofreu enormes perdas de homens e de material, de modo que um simples „congelamento“ do conflito, ou mesmo uma nova retirada parcial da Ucrânia, seria equivalente a uma derrota esmagadora que poria em causa a sobrevivência da vertical de poder de Putin e mesmo da Federação Russa.
Moscovo já não pode voltar atrás na lógica da escalada militar sem antes ter pelo menos atingido os objectivos que já antes tinha como mínimos (controlo sobre o Donbass e partes do sul da Ucrânia). Ao mesmo tempo, até agora o exército russo parece incapaz de entregar ao Kremlin qualquer coisa que possa ser vendida ao público russo como uma vitória. Este abismo entre a pretensão imperial, que invoca cada vez mais a Rússia czarista, e a realidade podre de um exército ineficiente atormentado pela corrupção e pela má gestão (o qual, segundo a avaliação inicial dos peritos ocidentais, deveria ganhar o conflito em poucos dias) (5), não só põe a nu os delírios de grandeza do Kremlin, como é também o maior factor de risco nesta guerra.
Para Putin não há até agora nenhuma opção de retirada que lhe mostrasse uma saída para a guerra (6) – e o Ocidente parece não ser capaz ou não estar disposto a fornecer-lhe uma, uma vez que ele próprio está envolvido nesta espiral de escalada ucraniana. Para os EUA e a UE, não só está em jogo o poder integrador da NATO, que foi reanimado durante a guerra, como também podem agora especular sobre infligir uma derrota estratégica a Moscovo, que acabaria com o reinado de Putin ou mesmo com a existência da Federação Russa na sua forma actual. De certo modo ambos os lados especulam sobre a desintegração do adversário, o que apenas aponta para o carácter frágil dos Estados capitalistas tardios: a Rússia quer que a Ucrânia se desintegre nas „repúblicas populares“ para depois as absorver, enquanto no Ocidente há muito tempo que se especula abertamente sobre o colapso da Rússia. (7)
Além disso, o Ocidente também tem de pagar um preço elevado pela guerra: é um preço económico, uma vez que a guerra actua como acelerador da crise e se manifesta na recessão iminente e na aceleração da inflação. (😎 Em resumo: como as apostas nesta guerra têm sido constantemente aumentadas, ambos os lados enfrentam uma queda catastrófica em caso de derrota, enquanto a vitória traria um grande aumento do poder. Se, por exemplo, a Rússia viesse a obter ganhos substanciais no terreno, a NATO seria maciçamente enfraquecida.
A espiral de escalada é assim susceptível de continuar. E aqui Moscovo acaba por ter vantagem – desde que o conflito não se transforme numa troca de ataques nucleares. Por um lado, a Rússia poderia de facto mudar no sentido de deixar os seus militares agir segundo a lógica militar sem qualquer outra consideração. Até agora, o Kremlin não usou todo o potencial convencional da sua máquina militar na Ucrânia, o que também expõe o discurso alemão de esquerda-liberal de uma „guerra de extermínio“ russa na Ucrânia como belicismo oportunista e revisionismo histórico, que faz parecer mais suave a verdadeira guerra de extermínio dos nazis no Leste. (9)
A máquina militar russa está actualmente a funcionar com o travão de mão puxado, por assim dizer, como explicaram os oficiais militares dos EUA à revista semanal Newsweek no final de Março. (10) Segundo eles, Putin ainda não permitiu ao seu exército libertar todo o potencial destrutivo – apesar de todos os „danos maciços“ visíveis. Kiev, por exemplo, „quase não foi atingida“ até agora; além disso, a maioria dos alvos bombardeados são militares. Toda a frota de bombardeiros estratégicos, que poderia „devastar“ a Ucrânia, pouco está a ser utilizada. Consequentemente, os militares russos têm demonstrado até agora „contenção“ na sua campanha de bombardeamentos, pois apesar de toda a „destruição sem precedentes“ no Leste e no Sul, as baixas civis poderiam ser muito mais elevadas. Moscovo tem-se abstido sobretudo de destruir as infra-estruturas da Ucrânia de acordo com a lógica militar nua e crua.
Assim, antes que o conflito seja ainda mais atiçado pela propaganda, através da construção de uma „guerra de aniquilação russa“ na Ucrânia com a mobilização de frases académicas, o simples facto de milhões de refugiados ucranianos terem podido fugir através de uma rede ferroviária em funcionamento e de as luzes ainda estarem acesas em grande parte da Ucrânia talvez devesse ser objecto de reflexão. Segundo peritos norte-americanos, não houve até agora nenhum „ataque metódico“ da Rússia a pontes e vias de transporte, o que não só permite movimentos de fuga como também facilita o fornecimento e a redistribuição de tropas pelo exército ucraniano.
Do mesmo modo, apesar das muitas baixas civis, o bombardeamento de cidades da linha da frente ou disputadas na Ucrânia, como Kharkiv e Mariupol, onde os mísseis e a artilharia russa atacam, de acordo com avaliações militares dos EUA, pelo menos tentaram atingir as „unidades militares ucranianas“ que operam „necessariamente em áreas urbanas“. A ênfase aqui deve provavelmente ser colocada na „tentativa“. Em linguagem simples, a captura de cidades vai de mãos dadas com elevadas baixas de civis se estes não forem evacuados antecipadamente, como foi o caso em Mariupol, por exemplo. A conversa sobre ataques direccionados pela artilharia russa a civis é, portanto, insustentável na avaliação dos militares dos EUA.
Isto não absolve o Kremlin da responsabilidade histórica por esta assassina guerra de agressão, mas revela claramente o seu carácter de dinâmica de escalada militar, que até agora não é de modo nenhum uma guerra de extermínio ou mesmo de genocídio. De certo modo, a Rússia está a actuar na Ucrânia de forma semelhante à dos EUA no Vietname, que também aumentaram gradualmente o seu envolvimento militar. No Iraque, por outro lado, Washington confiou na utilização imediata e chocante de todos os meios de força (choque e pavor), (11) a fim de paralisar uma resistência militar coordenada pelo regime de Hussein. Mas estas observações de oficiais militares americanos sugerem que as coisas podem piorar muito, uma vez que Moscovo pode virar a espiral de escalada ainda mais em resposta ao afundamento do „Moscovo“. O recente anúncio da Rússia de bombardear Kiev mais fortemente de futuro (12) e a utilização de bombardeiros estratégicos em Mariupol (13) – estes desenvolvimentos actuais apontam precisamente nessa direcção devastadora.
A próxima ofensiva no Donbass, que o exército russo está actualmente a preparar apesar de todos os contratempos, representa também um passo de escalada em que ambos os lados estão a levantar a parada – e que é provável que traga de facto uma decisão preliminar da guerra. O Ocidente está a fornecer armas pesadas à Ucrânia, enquanto Moscovo está a mobilizar todas as suas reservas militares remanescentes no Leste para compensar as perdas sofridas até agora. E é precisamente contra o pano de fundo desta possível „batalha decisiva“ que são alarmantes os avisos do Kremlin mencionados no início sobre uma declaração formal de guerra da Rússia à Ucrânia, que são ridicularizados justamente pelo milieu burguês de esquerda liberal na sua ignorância, que também gosta de alucinar sobre uma guerra de aniquilação russa na Ucrânia. (14)
Uma declaração formal de guerra, que poria fim à conversa orwelliana do Kremlin sobre uma „operação especial“, poderia compensar a desvantagem mais importante da máquina militar russa: a falta de material humano. Um estado de guerra implicaria a mesma mobilização forçada da população russa apta para o serviço militar que foi levada a cabo na Ucrânia após o início da guerra. O exército profissional russo tinha grandes vantagens em material e tecnologia no início da sua guerra de agressão, mas a mobilização forçada permitiu a Kiev colocar em campo um exército numericamente maior que, graças a uma melhor motivação, estratégia e táctica superior (Defesa em Profundidade) (15), bem como a uma ajuda militar ocidental extensiva e ao reconhecimento por satélite em tempo real, conseguiu infligir a maior derrota aos militares russos desde a primeira guerra da Chechénia.
Uma mobilização em massa numa Rússia determinada pela guerra, (16) da qual Putin se afastou até agora por razões de política interna (o actual entusiasmo pela guerra poderia então esbater-se muito rapidamente), seria uma admissão implícita da inferioridade do exército russo até agora, mas mobilizaria um exército russo numericamente superior à Ucrânia a médio prazo, que só poderia ser impedido de atingir os seus objectivos de guerra (17) ao preço de uma intervenção directa da NATO. No contexto destes passos de escalada emergentes, os avisos da CIA contra a utilização de armas nucleares devem também ser levados bastante a sério. (18) O belicista liberalismo de esquerda alemão na área dos Verdes e do Partido da Esquerda, que na sua inimitável mistura de ignorância e arrogância continua a alimentar o conflito em vez de lutar por uma imediata desescalada, poderia assim aprender muito em breve como funciona uma guerra de aniquilação no século XXI – possivelmente mesmo na própria pele.
1 https://twitter.com/ChuckPfarrer/status/1515110096623206403
2 https://twitter.com/JackDetsch/status/1514624362644652037
3 https://twitter.com/maria_avdv/status/1514717820508069888
4 https://twitter.com/visegrad24/status/1514902489535066114
5 https://www.nytimes.com/…/russia-military-putin-ukraine…
6 https://www.nytimes.com/…/putin-ukraine-russia-war.html
7 https://nationalinterest.org/…/breakup-will-russia…
8 https://jungle.world/…/10/krieg-als-krisenbeschleuniger
9 https://twitter.com/BinGanzBrav/status/1514703736014352386
10 https://www.newsweek.com/putins-bombers-could-devastate…
11 https://en.wikipedia.org/wiki/Shock_and_awe
12 https://www.spiegel.de/…/russland-kuendigt-weitere…
13 https://www.forbes.com/…/russian-bombers-just-carpet…/
14 https://twitter.com/Volksverpe…/status/1514878329991618561
15 https://en.wikipedia.org/wiki/Defence_in_depth
16 https://www.atlanticcouncil.org/…/not-just-putin-most…/
17 https://www.nd-aktuell.de/…/1161749.putins-absichten-im…
18 https://www.reuters.com/…/us-cannot-take-lightly…/
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Original “Katastrophale Eskalationslogik in der Ukraine” in www.konicz.info/, 16.04.2022. Tradução de Boaventura Antunes

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