A NORMALIZAÇÃO DOS TALIBÃS
Os centros do sistema mundial descobrem o islamofascismo como um instrumento repressivo de administração da crise na periferia
Tomasz Konicz, 10.09.2021, Tradução de Boaventura Antunes
Falar com os Talibãs? A Sra. Merkel não pode perder tempo a este respeito. Enquanto pessoas em pânico mergulham na morte no aeroporto de Cabul agarradas aos aviões que descolam, enquanto islamistas do Estado islâmico fazem explodir dezenas de pessoas em fuga em ataques suicidas, a Chanceler declarou o domínio talibã no Afeganistão uma nova realidade, que era „amarga“ mas com que tínhamos de nos „ocupar“. Isto significa, acima de tudo, manter conversações com os islamistas da Idade da Pedra „a fim de poder preservar algo do que beneficiou o povo do Afeganistão nos últimos 20 anos“ (só se pode esperar que a Chanceler não se refira, por exemplo, aos maciços ataques aéreos alemães, que levaram o percurso profissional de um Coronel Klein até ao posto de general). (1) Segundo Merkel, o governo alemão já está a disponibilizar 500 milhões de euros para fins humanitários. Com isto se espera „continuar a proteger as pessoas“ no Afeganistão após a evacuação que terminará dentro de „alguns dias“. (2)
Em linguagem simples: Berlim quer manter conversações com os talibãs sobre como os afegãos podem continuar a ser mantidos – perdão, „protegidos“ – no Afeganistão, apesar do seu reinado de terror islâmico. Porque essa foi de facto a preocupação alemã central durante o colapso do Estado simulado afegão nas últimas semanas: O medo de novos movimentos de fuga do Afeganistão em colapso, que poderia dar um impulso adicional à nova direita na RFA, manifestou-se precisamente no slogan „2015 não deve ser repetido“. E, de qualquer modo, o New York Times, após uma primeira entrevista, soube que os novos talibãs dificilmente poderiam ser comparados aos antigos islamistas da Idade da Pedra. (3) Pelo menos foi isso que os talibãs disseram. O seu porta-voz, Zabihullah Mujahid, salientou mesmo que, „a longo prazo“, as mulheres poderiam muito bem „retomar as suas rotinas“ sob os Talibãs.
Afinal, parece que as relações públicas dos Talibãs foram de facto modernizadas, pois o Sr. Mujahid parecia saber exactamente o que os seus entrevistados ocidentais queriam ouvir. Apesar da „situação tensa“ no aeroporto, os Talibãs esperavam construir boas relações com a „comunidade internacional“. Como potenciais campos de cooperação, o porta-voz talibã nomeou a luta contra o terror (a Al-Qaeda está agora a ser substituída pelo Estado islâmico), a erradicação da produção de ópio no Afeganistão, que é uma das mais importantes fontes de rendimento dos talibãs, e a „redução dos refugiados“ que queiram ir para o Ocidente. Os Talibãs estão assim, de facto, a oferecer-se ao Ocidente como „factor de ordem“, como guardas prisionais de uma região sócio-económica em colapso que – à semelhança da região pós-estatal da Líbia – na realidade só meio por hábito tem o nome de Afeganistão. O porta-voz dos Talibãs esforçou-se por pintar o quadro de um movimento islamista bastante „tolerante“ que tinha rompido com o passado, de acordo com o Times. Por isso, o Ocidente teria ainda de tolerar as idiossincrasias do extremismo talibã, tais como a proibição da música, que o Sr. Mujahid confirmou explicitamente – ou os relatos de mulheres a serem queimadas vivas pelos talibãs por não gostarem da sua comida. (4)
A ideia de dar ao extremismo islâmico um papel de liderança no controlo dos refugiados, de deixar as correspondentes ditaduras, milícias e bandos desempenharem o papel de guardas dos campos de concentração em terra economicamente queimada, e de os transformar, por assim dizer, em prisões ao ar livre, não é inteiramente nova. Em Berlim, tem sido a máxima da política para a Turquia de Erdogan desde a crise de refugiados de 2015, que deve ser evitada a todo o custo. Berlim continua a pagar milhares de milhões ao regime Erdogan para que a calma prevaleça nas fronteiras da UE. O islamofascismo turco – já sob pressão sócio-económica crescente devido à crise – expandiu-se nas zonas de guerra civil e colapso do norte da Síria, onde as milícias islâmicas financiadas pela Turquia conseguiram alcançar o domínio de bandos caracterizado por confrontos permanentes. Os refugiados sírios da guerra civil, que estão cada vez mais expostos a pogroms na Turquia, devem ser enviados para lá, é essa a perspectiva (a Al-Qaeda, em Idlib controlada pela Turquia, celebrou a vitória dos Talibãs com um desfile de automóveis). (5)
A guerra do islamismo, que é de facto uma ideologia de crise pós-moderna, (6) visa antes de mais os contraprojectos progressistas. As agressões da soldadesca turco-islâmica contra a Rojava, contra a auto-administração no norte da Síria, não serviram só para a limpeza étnica de curdos desta região que faz fronteira com a Turquia; com isso pretende-se também esmagar na região um contra-modelo concorrente e emancipatório ao islamofascismo turco. Berlim apoiou financeira e politicamente estas agressões turcas – a repressão dos movimentos de refugiados com a ajuda do islamismo parece ter-se enraizado como razão de Estado em Berlim, enquanto a alternativa emancipatória está a ser combatida quase apaixonadamente pelo aparelho de Estado alemão.
O islamofascismo parece estar agora a aumentar em toda a região. Coincidindo com a queda em „failed state“ do Estado simulado do Afeganistão financiado pelo Ocidente, a Turquia expandiu os seus ataques ao movimento curdo na Síria e no Iraque. Ao abrigo do desastre no Afeganistão, o despertar emancipatório em Rojava vai ser finalmente liquidado. (7) Pelo menos os islamistas em Ancara estão bem cientes de que o seu crescimento, na sequência do processo de crise que se desenrola globalmente, não é isento de alternativas – como ilustra a guerra civil na Síria.
O colapso da Síria – semelhante à situação ainda mais dramática no Afeganistão – teve causas socioeconómicas e ecológicas. A guerra civil eclodiu devido ao empobrecimento avançado de uma população em grande parte economicamente supérflua, bem como a uma seca prolongada no nordeste agrário do país. No decurso da guerra civil, em que o Estado sírio, que tinha degenerado numa loja de self-service do clã Assad, só pôde ser salvo da implosão através de uma maciça intervenção russa, emergiu não só o Estado islâmico genocida como uma força determinante, mas também a auto-administração no norte da Síria, que foi amplamente apoiada pelo movimento de libertação curdo.
O modelo Rojava, que tenta realizar uma reivindicação emancipatória, constitui – enquanto existir – uma ameaça ao islamismo na região, pois mostra alternativas ao regime terrorista destas ideologias clerical-fascistas da crise. O islamismo do Estado islâmico, dos talibãs e da Al-Qaeda representa, por assim dizer, um extremismo fascista do centro, (8) que utiliza a religião, a identidade religiosa central na esfera cultural islâmica como caixa de ressonância para a conduzir ao extremo ideológico, por vezes genocida, em interacção com os surtos de crise – esta ideologia de crise tem assim pouco a ver com as tradições tolerantes do Islão original a que os ideólogos islamistas se referem.
A crise do sistema mundial capitalista produz terra economicamente queimada na sua periferia, ou seja, regiões em que quase não há valorização do capital e onde, portanto, são criados estratos populacionais economicamente supérfluos, o que leva a uma crescente instabilidade política que pode, em última análise, levar ao colapso do Estado. Esta é a causa profunda do rápido colapso do Estado no Afeganistão, (9) bem como de processos semelhantes na Líbia, ou das guerras civis no Iraque e na Síria.
A Síria, contudo, é uma anomalia, porque aqui, com Rojava, existe de facto uma alternativa progressista e emancipatória à deriva induzida pela crise para a barbárie islamista. Na Síria, pelo menos na luta contra as milícias genocidas do „Estado islâmico“ apoiado pela Turquia, o Ocidente tinha a opção de escolher uma alternativa progressista. É significativo que – após a vitória oficial sobre o Estado islâmico – tanto os EUA como a Rússia tenham procedido a pouco e pouco à venda de Rojava à Turquia de Erdogan, que conseguiu explorar a concorrência imperialista entre as duas grandes potências. Os islamistas em Ancara e Idlib acabaram por ser mais importantes para Washington e Moscovo do que o despertar emancipatório no norte da Síria, devido ao maior peso geopolítico da Turquia.
Os actuais ataques aéreos e ataques de artilharia da Turquia no norte da Síria (10) e do Iraque (11) também não seriam possíveis sem a abertura do espaço aéreo pelos EUA, e sem o consentimento de Moscovo na sua zona de influência do norte da Síria. O Ocidente está actualmente a capitular ao islamofascismo, que – histórica e sócioeconomicamente falando – promoveu de duas formas. Por um lado, foram os muitos milhares de milhões de dólares ocidentais e sauditas que fluíram para os antecessores dos Talibãs, os Mujahidin afegãos que combateram as tropas soviéticas na fase final da Guerra Fria, que deram um enorme impulso ao islamismo militante (Osama Bin Laden lutou no Afeganistão). Os Talibãs formaram-se concretamente em campos de refugiados e madraças que surgiram – financiados pelos sauditas – no Paquistão-Afeganistão durante a guerra contra os soviéticos para doutrinar as crianças na ideologia islamista emergente.
Ao mesmo tempo, a crise mundial do capital a sufocar na sua produtividade – que, precisamente devido à crescente intensidade de capital da produção de mercadorias nos centros, atingiu em primeiro lugar as regiões periféricas do mercado mundial, fracas em capital – cria as bases socioeconómicas para o aumento dos movimentos extremistas na periferia em colapso. O islamismo representa assim – à semelhança do fascismo europeu de base nacional e racial – uma terrorista forma de crise da dominação capitalista, que ganha ímpeto onde quer que o curso da crise tenha progredido o suficiente e vigorem as bases culturais correspondentes.
A luta de vinte anos das tropas norte-americanas e da NATO contra os Talibãs assemelhava-se assim a uma inútil luta de moinhos de vento, em que o Ocidente lutava contra os fantasmas da crise que ele próprio produziu directa e indirectamente. A máquina militar altamente desenvolvida do capitalismo tardio lutou – com métodos bárbaros – sobre terra economicamente queimada contra os bárbaros produtos finais da crise do capital. Os EUA e os seus aliados da NATO queriam financiar a superestrutura de um Estado capitalista com milhares de milhões em subsídios, e fazê-lo surgir literalmente à bomba, sem perceberem de que não havia base económica para tal.
O Afeganistão continuará provavelmente a ser por agora a última tentativa de „nation building“ pelo imperialismo ocidental em crise. O novo aspecto da actual escalada no Afeganistão é que não só Berlim, mas o Ocidente como um todo está a começar a aceitar esta ideologia de crise de base religiosa, este fascismo islâmico, como um factor de ordem na periferia, que é suposto manter as massas supérfluas do Sul global sob controlo, a fim de as impedir de fugirem para os centros – também tendo em conta a crise climática em plena expansão. Os Talibãs também estão plenamente conscientes disto, como a entrevista ao New York Times deixa claro. O modelo repressivo de administração da crise estabelecido por Berlim, no qual regimes ou bandos islamistas são literalmente pagos para impedir movimentos de fuga, ameaça tornar-se uma nova realidade distópica no actual imperialismo de crise.
Parece estar agora a ocorrer a transição do capitalismo neoliberal formalmente democrático, onde a dominação se desenvolve sem sujeito através dos níveis mediadores do mercado e do aparelho judicial, para uma administração da crise abertamente autoritária. Até mesmo a fachada de “Freedom and Democracy” está a ser abandonada, com Biden mais uma vez a continuar apenas as políticas do seu antecessor populista de direita na presidência. Esta viragem autoritária começa primeiro na periferia – mas, como ilustrado pela militarização do aparelho policial dos EUA, por exemplo, em breve também se repercutirá nos centros.
(1) https://www.deutschlandradio.de/oberst-klein-wird-general.331.de.html?dr9am:article_id=217621
(2) https://www.zeit.de/politik/deutschland/2021-08/angela-merkel-afghanistan-regierungserklaerung-evakuierung-bundeswehr-kritik-bundesregierung
(3) https://www.nytimes.com/2021/08/25/world/asia/taliban-spokesman-interview.html
(4) https://www.businessinsider.com/afghanistan-taliban-set-a-woman-on-fire-for-bad-cooking-2021-8?IR=T
(5) https://apnews.com/article/middle-east-africa-afghanistan-taliban-islamic-state-group-8b54562a8676906d497952c9e3f0cfda
(6) https://www.konicz.info/?p=4430
(7) https://thehill.com/opinion/international/569838-as-afghanistan-crumbles-turkeys-airstrikes-set-up-the-next-disaster
(8) https://www.konicz.info/?p=4430
(9) https://www.konicz.info/?p=4343
(10) https://anfdeutsch.com/rojava-syrien/kobane-kriegsversehrte-protestieren-gegen-turkische-angriffe-28065
(11) https://www.france24.com/en/live-news/20210817-3-dead-as-turkey-raids-north-iraq-clinic-security-medics
Original Die Normalisierung der Taliban em www.exit-online.org em 10.09.2021 com a seguinte anotção:“Este texto refere-se a aspectos do livro »Weltordnungskrieg« [A guerra de ordenamento mundial] de 2003. Na primavera de 2021, foi publicada uma nova edição de »Weltordnungskrieg« com um posfácio atualizado de Herbert Böttcher em zu Klampen: https://zuklampen.de/buecher/sachbuch/philosophie/bk/1039-weltordnungskrieg.html“. Tradução de Boaventura Antunes