Nos Estados Unidos, a mobilização para a guerra civil molecular está a ganhar força
Original ‚Aufmarsch der Milizen†in Telepolis, 30.07.2020. Tradução de Boaventura Antunes
A estratégia de escalada da administração Trump [1] na cidade norte-americana de Portland levou a um renovado surto de protestos nos Estados Unidos. No fim-de-semana passado houve novamente manifestações e comÃcios em muitas cidades dos EUA, resultando frequentemente em confrontos com as forças policiais.
Em Portland, Oregon, foram utilizados gases lacrimogéneos e granadas atordoantes em frente ao tribunal federal feito barricada, onde as tropas Trump se entrincheiraram, utilizando métodos violentos e semelhantes a sequestros para intimidar o movimento de protesto. Várias dezenas de pessoas também foram presas em Seattle, após a polÃcia e os manifestantes terem trocado pancada frente ao edifÃcio de um tribunal em obras.
Também foram relatados confrontos em Oakland na Califórnia, em Aurora no Colorado, e em Austin no Texas, onde um manifestante foi alvejado a partir de um carro.
Em Louisville, Kentucky, não houve tumultos no fim-de-semana passado, apesar de a cidade ter sido abalada por tumultos após a morte de uma mulher afro-americana de 26 anos, Breonna Taylor, pela polÃcia branca em Março passado. Em Louisville, milÃcias inimigas [2], armadas até aos dentes, marcharam através da cidade em formação militar exibindo as suas armas de guerra [3]. Três milicianos sofreram ferimentos de bala devido ao manuseamento incorrecto das armas.
A milÃcia negra NFAC, que opera na grande cidade de Atlanta, protestou com várias centenas de homens exigindo a punição dos polÃcias que alvejaram Breonna Taylor. Por outro lado, uma milÃcia de extrema-direita, a chamada „Three Percenter“, declarando que queria apoiar as forças policiais locais, marchou nas imediações da rota de manifestação da NFCA.
UM ACONTECIMENTO EXCEPCIONAL NUMA LONGA TRADIÇÃO AMERICANA
A formação de uma milÃcia negra é – até agora – um fenómeno excepcional nos Estados Unidos, uma vez que uma esmagadora maioria das formações civis armadas pode ser atribuÃda à direita polÃtica branca. No entanto, ambos os grupos em Louisville operavam no âmbito das leis sobre armas do Kentucky, que permitem o porte público de armas de fogo.
Num comentário, o Chicago Sun-Times [4] observou que, em última análise, ambos os grupos se baseavam numa „longa tradição americana“ que via a posse de armas como uma importante „salvaguarda contra a tirania“.
O movimento de milÃcias de direita nos Estados Unidos, que se baseia nesta tradição estabelecida pela famosa Segunda Emenda [5], é considerado um dos principais grupos de apoio do Presidente Donald Trump. Este movimento conheceu o seu grande boom nos anos 90 [6] sob o Presidente Democrático Bill Clinton e durante a presidência de Barack Obama.
Existem centenas de grupos armados deste tipo [7] nos Estados Unidos, que podem mobilizar dezenas de milhares de milicianos. Embora estes grupos armados variem muito na sua orientação ideológica – desde o puro racismo, passando pelo isolacionismo, até ao ódio extremo ao governo – eles partilham na sua maioria a rejeição de quaisquer restrições legais à posse de armas e uma oposição com diferentes fundamentos à esquerda polÃtica.
Mais recentemente, algumas destas milÃcias têm estado activas como tropa de infantaria [8] de campanhas de direita contra medidas de combate à pandemia nos EUA – por exemplo, quando as milÃcias armadas de metralhadoras invadiram o Capitólio no Michigan e foram elogiadas por Trump como „muito boas pessoas“ [9].
Vários milicianos também tentaram a sua sorte como guardas de fronteira auto-nomeados, tentando interceptar migrantes na fronteira entre a América e o México [10] por sua própria iniciativa.
SURTO DE ACTIVIDADE DAS MILÃCIAS: EFEITO ASSUSTADOR
E muitos milicianos estão também activos no actual movimento contra o racismo e a violência policial – como contramanifestantes ou forças de protecção. Só nas primeiras duas semanas da onda de protestos, 136 incidentes com milÃcias de extrema-direita [11] foram relatados em todo o paÃs durante manifestações e protestos.
Há um rápido aumento na actividade das milÃcias, e os seus membros estão agora a reorientar-se, de acordo com relatórios de fundo [12]. Em vez de protestarem contra o „lockdown“, estão agora a oferecer „segurança armada para as comunidades locais“, disse o porta-voz de uma organização não governamental aos media norte-americanos.
Isto teria um „efeito assustador na prática democrática“. Os potenciais manifestantes seriam intimidados e manter-se-iam afastados dos protestos. Em muitas cidades mais pequenas dos Estados Unidos ocidentais, estas formações armadas estão presentes para, literalmente, „fornecer serviços que normalmente esperamos do governo“.
Nalguns casos, já se desenvolveram ligações directas entre uma força policial asselvajada pela crise e as milÃcias. Este parece ser o caso do Estado do Novo México [13], onde as forças policiais são acusadas de pertencerem a formações de extrema direita. Existe uma clara „sobreposição“ no Novo México entre as pessoas que trabalham nas „milÃcias e nos serviços policiais“, explicou o cientista social David Correia, que estudou este meio em pormenor.
„EXÉRCITO DE CIDADÃOS“
No Novo México, disse ele, é difÃcil distinguir entre „as milÃcias fascistas de direita e a polÃcia“, à medida que as linhas se tornam cada vez mais confusas. De acordo com Correia, os extremistas de direita, com a aquiescência tácita ou mesmo com o apoio da polÃcia, controlariam e intimidariam o movimento de protesto no Novo México [14].
A velocidade a que esta militarização da sociedade americana está a ter lugar em várias regiões pode ser vista no exemplo do estado americano de Utah, onde uma milÃcia branca conseguiu recrutar cerca de 15.000 membros [15] no espaço de um mês.
Sob o pretexto de prevenir a violência, este exército civil, liderado por antigos veteranos, marcha armado contra os protestos do movimento „Black Lives Matter“, que já foram cancelados várias vezes por medo dos milicianos brancos. Na capital de Utah, a cidade mórmon de Salt Lake City, 88 por cento da população é branca, enquanto a proporção de negros é inferior a um por cento.
Numa manifestação contra a brutalidade policial e o racismo em Salt Lake City, os manifestantes foram acompanhados por uma fila de brancos armados, enquanto a polÃcia colocou franco-atiradores em telhados. No movimento, que realiza regularmente exercÃcios militares e mantém bons contactos com a polÃcia local, circulam boatos absurdos sobre conspirações como a de o „Estado islâmico“ supostamente financiar os actuais protestos.
De acordo com relatórios de fundo [16], os milicianos estão a preparar-se com o seu treino de guerra civil para uma „guerra civil“ que em breve rebentará, que será forçada pelas forças das trevas a enraizar no subsolo.
O ASSELVAJAMENTO DO APARELHO DE ESTADO
Quanto tem progredido o asselvajamento do aparelho de Estado americano, cada vez mais em resultado deste aumento da formação de milÃcias relacionado com a crise, é particularmente evidente na força policial [17] à qual Donald Trump confiou a supressão dos protestos em Portland, Oregon.
O CBP (US Customs and Border Protection) de Portland é considerado um dos pilares mais importantes da administração Trump dentro do aparelho de Estado. Um infiltrado disse ao jornal The Guardian [18] que era „a sua gente“ que trabalhava na polÃcia militarizada de fronteira, que tinha crescido para 20.000 homens.
A defesa contra os refugiados na fronteira sul dos EUA, que é agora a principal tarefa do CBP, está a ser implementada com consistência assassina. Desde 2010, diz-se que pelo menos 111 refugiados não conseguiram sobreviver ao encontro com os guardas de fronteira altamente treinados [19]. Antigos oficiais disseram ao Guardian que existe puro racismo entre as tropas, que cultivam uma „cultura de violência“ contra os migrantes.
A extensão do racismo dentro da Guarda de Fronteiras tornou-se pública no inÃcio de 2019: cerca de 9.000 membros da PolÃcia de Fronteiras visitaram um grupo do Facebook que divulgou conteúdos racistas e desumanos [20] – quase metade de todos os membros do CBP. Este escândalo não teve consequências graves.
Dentro do CBP existe uma „formação de elite“, a Border Patrol Tactical Unit (Bortac). Este grupo, comparável aos Navy Seals da Marinha, que também está destacado fora dos EUA, está a receber treino militar – e é considerado a unidade mais „violenta e racista“ dentro do aparelho policial dos Estados Unidos, segundo o Guardian, citando informações internas.
E é precisamente este grupo, que já não se considera parte da força policial e pensa e age em categorias militares quando é destacado, que é utilizado por Trump em Portland contra o movimento de protesto: Os homens da Bortac, nas suas operações, „considerariam militarmente as pessoas com quem são confrontados como combatentes, o que significa que praticamente não têm direitos“, disse um ex-polÃcia de fronteira ao jornal britânico.
Os métodos de „sequestro“ de manifestantes pela polÃcia de fronteira de Portland, que provocaram indignação a nÃvel nacional [21], estão assim em conformidade com os procedimentos habituais para migrantes na fronteira.
PROCESSO DE ASSELVAJAMENTO E COLAPSO DO ESTADO
Estas tendências de asselvajamento e fascização do aparelho de Estado não se limitam, evidentemente, aos Estados Unidos, tendo em conta a crise em curso do sistema capitalista mundial. Coisas semelhantes estão também a surgir no aparelho de Estado da República Federal da Alemanha, onde as correspondentes cliques fascistas [22] estão a formar-se e os esforços terroristas de direita estão a aumentar rapidamente [23] – enquanto as elites funcionais polÃticas desviam o olhar por cálculo táctico, oportunismo ou simpatia [24].
Este processo de o aparelho de Estado se tornar selvagem nos centros é apenas a pré-forma de um fenómeno de crise que já se está a desenvolver plenamente na periferia ou semiperiferia – e que é normalmente traduzido pelo conceito de „Estado falhado“.
A desintegração do Estado não é promovida a partir do exterior, por qualquer tipo de conspiração, mas sim a partir do interior, pelas partes do aparelho de Estado que acreditam, em reacção à s tendências de crise, que podem ou devem tomar as coisas nas suas próprias mãos – quer na esperança de assegurar a sua continuidade através de golpe e ditadura, quer simplesmente por interesse financeiro.
[1] https://www.heise.de/…/USA-unter-Trump-Zurueck-zu-Pinochet-…
[2] https://eu.courier-journal.com/…/louisville-pro…/3288198001/
[3] https://forwardky.com/the-multiple-militias-protest-in-lou…/
[4] https://chicago.suntimes.com/…/second-amendment-gun-rights-…
[5] https://www.law.cornell.edu/wex/second_amendment
[6] https://www.vox.com/…/militias-protests-coronavirus-michiga…
[7] https://www.bbc.com/news/world-us-canada-48029360
[8] https://www.vox.com/…/militias-protests-coronavirus-michiga…
[9] https://www.businessinsider.com/trump-protestors-with-guns-…
[10] https://www.splcenter.org/…/splc-answers-questions-about-an…
[11] https://www.hcn.org/…/north-patriot-militia-groups-mobilize…
[12] https://www.hcn.org/…/north-patriot-militia-groups-mobilize…
[13] https://www.hcn.org/…/south-corruption-new-mexicos-thin-blu…
[14] https://twitter.com/abq161/status/1269385969729404930
[15] https://www.theguardian.com/…/utah-militia-armed-group-poli…
[16] https://www.theguardian.com/…/utah-militia-armed-group-poli…
[17] https://www.theguardian.com/…/trump-border-patrol-troops-po…
[18] https://www.theguardian.com/…/trump-border-patrol-troops-po…
[19] https://www.southernborder.org/deaths_by_border_patrol
[20] https://www.propublica.org/…/secret-border-patrol-facebook-…
[21] https://www.heise.de/…/USA-unter-Trump-Zurueck-zu-Pinochet-…
[22] https://www.zeit.de/…/bundeswehr-rechtsextremismus-chat-het…
[23] https://www.sueddeutsche.de/…/bundeswehr-goetterdaemmerung-…
[24] https://daserste.ndr.de/…/Bundeswehr-Rechtsextreme-bleiben-…