„Halt ze German advance“

Com a vitória do campo do Brexit a forma actual da UE dominada pela Alemanha chegou de facto ao fim. A questão é: o que vem a seguir?

Link: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz6.htm

O choque é profundo, os mercados paralisam, horror e impotência prevalecem entre apoiantes da UE e eurocratas. Steinmeier está atordoado, Sigmar Gabriel vê um „mau dia para a Europa“ (1). Na direita europeia, pelo contrário, prevalece o júbilo. A AfD-Berlim mais uma vez está orgulhosa de algo que ela não fez. Desta vez, curiosamente, apenas de „ser europeia“ (2).

Antes que a loucura de extrema direita, claramente sugerida em tais linhas, esteja completamente desenfreada, poderá muito bem valer a pena parar por um momento e pensar num necrológio da UE agora finada. Que foi a UE verdadeiramente? E por que razão caiu a obra da Comunidade Europeia tão de repente na crise que agora, obviamente, traz consigo consequências letais.

Até há poucos anos, a UE parecia ser realmente um verdadeiro modelo de sucesso, com o qual a Europa acreditava ultrapassar finalmente o seu passado marcado por guerras intermináveis ​​e pelo nacionalismo dos assassínios em massa. A união forjada cada vez mais estreitamente deu a todos os países participantes benefícios socioeconómicos tangíveis, de modo que o processo de integração política parecia estar baseado numa recuperação económica de longo prazo. Na Europa do Sul, na Irlanda e na Grã-Bretanha, devido à animada actividade de construção, prevaleceu uma conjuntura económica em alta, com escassez de trabalhadores, enquanto a indústria de exportação da Alemanha pôde obter excedentes de exportação maciços na Zona Euro.

Com a eclosão da crise do euro estouraram as ilusões de uma Europa harmoniosamente unida, tornando-se também claro para o público europeu em geral que o bom desenvolvimento económico na UE entre a introdução do euro e a crise do euro se baseou no endividamento, tratando-se portanto de uma economia de deficit. A „casa europeia“ foi construída, pelo menos desde a introdução do euro, sobre uma montanha de dívidas em constante crescimento que, até ao estouro da bolha da dívida, deu a todos os participantes a ilusão de estarem envolvidos num processo de integração comummente vantajoso: a indústria alemã obteve mercados de exportação graças ao euro, enquanto os Estados endividados da Europa viveram a sua economia de deficit financiada a crédito.

Vista retrospectivamente, a „integração europeia“ foi uma reação – especificamente europeia – à crise sistémica grave (‚A crise explicada resumidamente”) (3), em que se encontra o sistema mundial do capitalismo tardio, que também a nível global apenas pode ser mantido a crédito (4). Logo que as bolhas da dívida europeia começaram a estourar, também se modificou o antes harmonioso ambiente na UE, onde começou então uma contundente concorrência de crise. Nas disputas dos Estados-nações sobre a política „europeia“ de crise trata-se em última análise, para os países do euro, de lançar as consequências da crise sobre os outros concorrentes.

Aqui, como é sabido, Berlim conseguiu impor-se e transformar a Zona Euro numa espécie de pátio de caserna prussiano da política económica, por meio da mania da poupança de Schäuble, na base da qual os países europeus em crise foram forçados a uma política de austeridade sem perspectivas.  Na crise do euro, a imposição implacável ​​por Schäuble e Merkel dos interesses nacionais que fizeram da Alemanha um vencedor da crise à custa da Zona Euro reforçou a precipitação nacionalista que começou em toda a Europa na esteira da crise do euro. A política chauvinista de crise de Berlim, usada por Schäuble e Merkel para estabelecer uma dominância em termos de poder político e socio-económicos na UE, tem vindo assim a promover os levantamentos nacionalistas de afastamento da „UE alemã“.

O nacionalismo europeu há muito que „ganhou“

Isso aplica-se não só a países como a Polónia (5), mas também à Grã-Bretanha. Na Alemanha, o domínio alemão na Zona Euro quase não é tematizado, mas ele teve um papel muito importante na campanha eleitoral britânica do Brexit. „Halt ze German advance“ [‚Parem o avanço alemão”, com o artigo the tornado ze – Nt. Trad.] (6) Numa alusão ao famigerado sotaque alemão, cartazes controversos dos euro-opositores advertiam para o domínio esmagador da Alemanha na UE, com o qual seriam realizados os velhos objectivos imperiais alemães.

O nacionalismo europeu, na verdade, já „ganhou“ há muito tempo. Enquanto isso a UE, como factor de poder independente relevante, já não existe. No interior da Zona Euro em erosão não há nenhuma instância de poder digna de menção que promova uma política de crise „pan-europeia“. Em vez disso actuam aqui actores e alianças cada vez mais nacionais, que procuram fazer valer os seus interesses dentro das estruturas e instituições europeias. A política de crise europeia foi, assim, expressão de uma constelação de poder – a dominância económica da RFA, que Berlim transformou numa pretensão de liderança política – na Zona Euro, e não o resultado de uma política de crise pan-europeia coerente.

O ex-economista chefe alemão do BCE, Otmar Issing, falou candidamente da „renacionalização“ da política de crise europeia durante o debate sobre a política monetária europeia: „O problema é que as considerações nacionais desempenham um papel onde não deveriam desempenhar papel nenhum“, disse ele (7). Uma vez que o BCE decide em que país comprar títulos da dívida pública, a política monetária é „politizada“, continua Issing revoltado. Esta „politização“ nacional da política de crise europeia foi, naturalmente, iniciada pelo ditame de austeridade de Berlim, na Europa em fenecimento rápido a partir de 2011 – mas isso já Issing não disse.

A „Europa alemã“ desintegrou-se

Nestas disputas sobre a política económica europeia, que contribuíram para a erosão da UE na crise do euro, reflectem-se não só os interesses nacionais tacanhos, mas também a crise sistémica letal do capitalismo tardio, que não pode ser suplantada nem pelo sadismo da poupança alemão nem pela emissão monetária (do BCE) sul-europeia. Por meio dos confrontos entre os sujeitos estatais está a ser executado o processo de crise objectivo. Nas cavernas institucionais em chamas da UE realiza-se uma forma específica de concorrência de crise negativa entre os países do euro, em que os perdedores sofrem um declínio socioeconómico permanente. Através da sua política de austeridade europeia Berlim conseguiu deslocar as consequências da crise para a periferia, enquanto a Alemanha pôde ser mantida como um centro económico (que restou).

Objectivamente falando, na esteira da crise do euro ocorreu o encolhimento do centro sócio-económico, enquanto a periferia e as áreas de miséria alastram. Em rigor a Alemanha não „ganhou“ a concorrência de crise, apenas „ficou“. A RFA é o último passageiro que resta no Titanic europeu naufragando, prestes a ser atingido pelo mesmo destino da União Soviética.

Esta luta sobre quem vai descer socio-economicamente no decurso do mais recente surto de crise europeia faz exaltarem-se decisivamente o ressentimento nacionalista e o manifestamente velho chauvinismo europeu que actualmente corroem a UE. Assim, a UE apresenta uma fachada desmantelada, por trás da qual colidem conflitos de interesses nacionais regressivos, há muito anacrónicos. Como referido: „A Europa“ como factor independente de poder já não existe, o continente já regressou ao business as usual nacional-imperialista velho de séculos – os inimigos europeus da Europa, tanto à direita como à esquerda do espectro político, simplesmente ainda não deram por isso.

Os comentadores de direita, não exactamente conhecidos pelas suas capacidades intelectuais, estilizam pelo contrário esta UE desmantelada e devorada pela crise, como uma espécie de quimera superior, que continuaria a escravizar os povos da Europa quase ditatorialmente. Logo que Bruxelas for esmagada, tudo vai dar certo novamente, tal a idiotice a-histórica dos inimigos da UE, que devem ter visto os livros de história apenas à distância.

A política de poder nacional já há muito tempo que determina novamente o destino da crise da Europa – e é a política alemã que em primeiro lugar escolheu precisamente a via mais reacionária na crise ainda em desenvolvimento na zona Euro (‚Bem-vindos à pós-democracia”) (8). A „Europa alemã“, construída sobre o empobrecimento e a loucura da austeridade, em que apenas se deve ‚falar alemão” (Volker Kauder) em termos de política económica, não pode ser estabilizada a longo prazo. Ela é dilacerada por crescentes contradições internas que reforçam as forças centrífugas nacionalistas. As elites funcionais da Alemanha, levadas pela populaça de direita dos PEGIDA e da AfD na Internet, prepararam claramente esta política chauvinista de crise. Têm a responsabilidade histórica por isso. No entanto na decisão subjectiva do governo alemão também se manifesta – como já indicado – um processo de crise objectivo.

Concorrência de crise negativa

Estas tendências contraditórias somente podem ser detectadas se o processo de crise for visto de dois ângulos diferentes. Há aqui, por um lado, o plano „subjectivo“, em que os sujeitos dos estados-nações individuais tentam agir na crise do euro, a fim de aumentarem os seus meios de poder. Por outro lado, há o plano „objectivo“, em que a crise do capital se desenvolve e confronta os actores geopolíticos na forma de crescentes contradições e ‚constrangimentos factuais” internos.

As características do desenvolvimento da crise na Zona Euro resultam assim da interação entre as decisões dos sujeitos nacionais ou geopolíticos (dos países do euro) e o processo de crise objectivo que se desenrola nas costas dos sujeitos e os confronta como constrangimento factual. Mesmo os mais poderosos Estados do euro agem também impulsionados pelas contradições internas galopantes da relação de capital.

Daí surge a forma característica do processo de crise da chamada concorrência de crise „negativa“, em que os países do euro apenas conseguem manter por algum tempo a sua posição no sistema mundial em erosão à custa da descida de outros concorrentes. Um bom exemplo desta concorrência de crise negativa neo-imperialista é a Alemanha, como efémera „potência líder“ da Europa em erosão, que ganhou a sua posição política de poder dominante através duma impiedosa política beggar-thy-neighbour [arruina o teu vizinho] para a Zona Euro (‚O campeão mundial de excedentes de exportação”) (9), com a qual os excedentes comerciais alemães extremos conduziram a periferia europeia em queda a uma espécie de servidão pós-moderna por dívidas a Berlim.

O „modelo de negócio“ da Alemanha, S.A., portanto, baseia-se na exportação de dívidas – enquanto o público alemão se indigna constantemente com as dívidas de outros países europeus. A ilusão de uma sociedade do trabalho capitalista incólume na Alemanha baseia-se assim a desintegração sócio-económica da periferia da Zona Euro.

É por isso que no ‚vencedor da crise” (provisório) que é Alemanha não se encontra um eurocepticismo tão pronunciado como se vê noutros países do euro. A crença de ser heterodeterminado pela „Europa“ não é nem de perto nem de longe tão pronunciada na República Federal como nos países que têm de sofrer como perdedores na crise sob a loucura da austeridade alemã. Este é simplesmente o caso porque Berlim consegue impor amplamente os seus interesses por meio da burocracia da UE.

É justamente esta constelação de crise europeia – economia de exportação para a Alemanha, austeridade e empobrecimento para a periferia – que não e possível manter a longo prazo, uma vez que não oferece à periferia nenhuma perspectiva senão o empobrecimento continuado.

O que vem depois da UE?

Objectivamente falando – para lá dos cálculos tacanhos da política de poder dos aparelhos de Estado nacionais – na actual crise sistémica estão em escalada também as contradições entre os momentos particulares e globais da socialização do capitalismo tardio. Regressão e expansão condicionam-se reciprocamente. A tendência para, na crise, procurar refúgio no fedor nacional contrasta com as tentativas de construir fusões transnacionais ainda maiores – como o TTIP ou a União Eurasiática de Putin. A nação é cada vez mais percebida como unidade de combate na concorrência de crise em escalada, sendo que a mesma nação entra em dissolução e é devorada pelo separatismo crescente – particularmente das regiões ricas (‚Conjuntura para o separatismo”) (10).

Ao mesmo tempo, a construção de novas zonas de livre comércio transnacional é fortemente promovida pelas elites funcionais sob pressão. Especialmente no caso do TTIP, trata-se de uma fuga para a frente verdadeiramente extremista, num capitalismo totalmente desbloqueado dos seus mecanismos de segurança. Em última análise, para os arquitectos do TTIP de ambos os lados do Atlântico, trata-se de remover o mais possível uma série de protecções institucionais, políticas e sociais (11) para voltar a pôr a toda a velocidade a máquina da valorização que está aos soluços. Trata-se de um „regresso ao passado“: os direitos e regulamentos arduamente conquistados, como a protecção contra o despedimento abusivo, a negociação colectiva, salários mínimos, regulamentos relativos ao horário de trabalho, direitos de participação na gestão são considerados como barreiras ao comércio e pretende-se que sejam tendencialmente reduzidos ao mínimo denominador comum.

Desregulamentação, privatização e limitação das possibilidades de intervenção política – o TTIP gostaria de agudizar e levar ao extremo estas tendências do neoliberalismo. O total „desbloquear dos mecanismos de segurança“ do capitalismo tardio ameaça sobretudo na esfera financeira. Em particular, os europeus foram impelidos a abrir os mercados financeiros transatlânticos novamente a todos os loucos „produtos financeiros“ – e como tais foram ‚certificadas” as hipotecas tóxicas – cujo comércio tinha sido proibido após o colapso das bolhas do imobiliário nos EUA, como relatou a Spiegel no início de 2015 (12).

O levantamento pretendido da regulação do mercado financeiro, que aparece como um acto de pura loucura, é consequente dentro da lógica subjacente à criação da planeada zona de comércio livre. Em última análise, o TTIP pretende fundar, numa escala maior, uma economia de deficit semelhante à que pôs em movimento a Zona Euro na primeira escassa década da sua existência. Lembre-se: Após a introdução do euro, os custos do crédito na periferia da Europa baixaram maciçamente.

Países como a Espanha, Itália, Irlanda e Grécia pareciam de repente ter a qualidade do crédito da Alemanha, e apenas isso possibilitou a esses países o „milagre económico“ financiado pela dívida e associado à formação de todos os tipos de bolhas – e garantiu mercados à indústria de exportação alemã até ao colapso destas economias de deficit. Pretende-se que o TTIP inicie uma economia de deficit semelhante a nível transatlântico, para retirar a Zona Euro da sua deflação, apesar do ditame da austeridade alemã. Para este fim devem ser removidos os regulamentos incómodos adoptados após o estouro das últimas bolhas imobiliárias e outras.

Fuga para a frente

Pretende-se que as devastadoras consequências económicas e sociais do recente estouro da bolha financeira na Europa sejam ultrapassadas, pelo menos temporariamente, com uma nova formação de bolhas financeiras transatlânticas. Num plano alargado transatlântico pretende-se iniciar um processo semelhante ao que se desenvolveu no quadro da formação e expansão da União Europeia – e que presenteou a Europa com uma escassa década de crescimento financiado a crédito até à eclosão da crise.

Este apagar do fogo com gasolina, por muito involuntário que seja, é um elemento fundamental da política neoliberal face às distorções e contradições económicas em escalada induzida pela crise. Desde a viragem neoliberal no início dos anos oitenta, as elites funcionais reagem a qualquer surto de crise com uma fuga para a frente que leva o capitalismo literalmente ao extremo e o desestabiliza cada vez mais profundamente a longo prazo.

Confrontada com o manifesto limite interno da valorização do capital, com o derretimento do trabalho assalariado produtor de valor no interior da produção de mercadorias, a política prossegue já há algum tempo aquelas estratégias que no TTIP apenas encontram a sua conclusão extremista: cortes salariais, privatizações, desregulamentação, em particular da esfera financeira. Mas com isso apenas foi levada ao extremo a política neoliberal, que já tinha sido imposta quando do estabelecimento da UE nos países membros.

A UE está morta, viva o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento. O TTIP funcionaria, afinal, como uma super-UE pós-democrática e tecnocrática, em que os EUA e a UE se reencontrariam. O neoliberalismo iria encontrar a sua conclusão na ditadura do constrangimento factual. Sendo que a realização deste projecto não é de modo nenhum certa, porque crescem rapidamente as contradições e conflitos de interesses entre Berlim, onde se teme a perda de influência na UE, e Washington. É incerto se essa fuga para a frente ainda será possível face às crescentes forças centrífugas causadas pela crise global.

O processo de crise está hoje completamente em aberto, o sistema move-se no fio da navalha. Mais uma vez há a ameaça de desintegração da UE em seus componentes nacionais, em neonacionalismo disfuncional e loucura de extrema direita, que abririam o caminho à barbárie. Nisso se assemelha a actual situação na Europa à época do início dos anos 30 do século XX, quando a crise económica mundial de 1929 desencadeou em muitas sociedades europeias processos de fascização perturbadoramente semelhantes aos que agora se podem ver – por exemplo, na figura da AfD.

A génese tal como a crise da UE têm, portanto, de ser entendidas como etapas, como consequências – especificamente europeias – do crescente desenvolvimento das contradições no capitalismo tardio marcado pela crise. Na actual crise manifesta na UE apresentam-se, portanto, duas vias imanentes ao sistema: a „fuga para a frente“, para outras uniões transnacionais e pós-democráticas como o TTIP, ou a regressão ao nacionalismo e chauvinismo – eventualmente através do conceito de Schäubler de um núcleo duro da Europa.

É claro que aqui é absurdo decidir-se por uma das duas opções ou partes na controvérsia, que também marcaram o debate anterior ao referendo – pelos tecnocratas europeus ou pelos neo-nacionalistas de fogo fátuo de diversos matizes. Isso equivaleria a uma escolha entre a regressão nacionalista condicionada pela crise, com a tendência tipicamente europeia historicamente bem conhecida para a barbárie genocida, e o Estado do constrangimento factual autoritário, pós-nacional e pós-democrático, que está emergindo com a imposição do TTIP (e que Schäuble já realizou na periferia da Zona Euro).

Pelo contrário, uma saída da crise permanente só é concebível através a suplantação emancipatória global do sistema mundial do capitalismo tardio, que se está tornando abertamente uma loucura homicida. Concebível, bem entendido – mas, infelizmente, não muito provável, pelo menos na Europa, dado o nacionalismo exuberante.

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De Tomasz Konicz apareceu recentemente sobre este tema o livro Aufstieg und Zerfall des Deutschen Europa [Ascenṣo e queda da Europa aleṃ] [entretanto com tradṳ̣o italiana: http://www.stampalternativa.it/libri/978-88-6222-530-4/tomasz-konicz/ascesa-e-caduta-dell-europa.html РNt. Trad.] (13)

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