Por um pedaço de terra

A decisão de Trump levará provavelmente ao fim da guerra, mas quanto é que a Ucrânia terá de pagar?

Tomasz Konicz. 21.02.2025

Estarão os imperialistas do Kremlin na recta final da sua guerra de agressão à Ucrânia? Com a tomada de posse do populista de direita Donald Trump, a situação militar já sem esperança na Ucrânia parece ter-se deteriorado subitamente a nível geopolítico. Imediatamente após a tomada de posse, a administração Trump congelou toda a ajuda externa – incluindo os programas de ajuda à Ucrânia. Trump entrou agora em conversações directas com Vladimir Putin.


Agora ele também especificou o que poderia ser um “acordo” geopolítico para acabar com a guerra: A Rússia recebe grande parte ou mesmo a totalidade dos territórios reivindicados na Ucrânia (Trump disse que não está particularmente interessado nos territórios que Putin recebe), os EUA têm acesso aos recursos minerais do país atacado, os europeus devem encarregar-se das garantias de segurança e uma perspetiva da NATO para a Ucrânia está fora de questão. Os Estados da UE reagiram com alarme e exigiram ser incluídos nas negociações. No entanto, a administração Trump não parece estar disposta a conceder-lhe um papel nas negociações, nem à Ucrânia.
O cálculo estratégico de Putin – que se baseou numa prolongada guerra de desgaste e na vitória eleitoral de Trump – parece portanto estar a funcionar. O chefe de Estado russo foi desafiado pela última vez em Novembro passado pela instalação de sistemas de mísseis ocidentais de longo alcance contra a Rússia. No Outono de 2024 Putin declarara que esta era uma “linha vermelha”, que levaria efectivamente o Kremlin a um estado de guerra com a NATO.
No entanto, Putin não fez uma escalada no final de 2024, porque acreditava estar a caminho da vitória na sua guerra de agressão contra a Ucrânia. E em dois aspectos. Por um lado, a prolongada guerra de desgaste significa que o maior potencial de recursos da Rússia está a ser cada vez mais utilizado. Este facto já se tornou evidente nos últimos meses: Os ganhos territoriais da Rússia no Leste estão a acelerar, enquanto o exército ucraniano mal consegue mobilizar efectivos suficientes para a frente de batalha. O drone e a tecnologia da informação funcionam como o grande nivelador no campo de batalha do século XXI, tornando a guerra ofensiva mais difícil – à semelhança da metralhadora durante a Primeira Guerra Mundial.
O que resta é o disparo de material e pessoas na frente, em grande parte estática, até que uma das partes beligerantes entre em colapso. É por isso que os sucessos graduais da Rússia no Leste são tão decisivos, pois ultrapassaram as linhas de defesa mais desenvolvidas da Ucrânia. Todas as outras linhas da frente ucraniana são mais fracas. Como é muito provável que o Ocidente não intervenha directamente na Ucrânia, a lei sangrenta da matemática da guerra dita que Kiev tem de perder a guerra de desgaste se esta for travada até às últimas consequências.

Lógica de escalada e guerra de desgaste

A única hipótese realista de uma vitória militar de Kiev era um abalo na vertical do poder russo, ou seja, a perda de decisores importantes abaixo de Putin. Esta possibilidade surgiu brevemente durante a revolta da trupe Wagner, liderada pelo líder mercenário Prigozhin. Mas este foi entretanto eliminado pelo Kremlin, o que significa que a oposição no seio da elite russa carece de um núcleo militar-organizativo que possa desencadear uma revolta dos oligarcas contra a guerra desastrosa de Putin – que é também um desastre socioeconómico e demográfico para a Rússia.
O Kremlin está a especular no mesmo sentido. A campanha de terror de inverno da Rússia contra as infra-estruturas ucranianas, em especial o sector da energia, visa corroer o moral e a resistência da “frente interna” ucraniana, a fim de minimizar e, em última análise, destruir a capacidade de mobilização do exército e da sociedade ucranianos. A deserção crescente no exército ucraniano mostra que esta táctica de desgaste é bem sucedida no contexto da guerra de desgaste.
O objectivo de ambos os lados – realistamente falando – é a erosão do Estado da parte beligerante contrária. Outra forma de vitória, especialmente contra a Rússia, é dificilmente concebível. O Estado inimigo deve tornar-se um Estado falhado – este objetivo de guerra é, de facto, realista, porque se insere no curso dos acontecimentos na crise. A crise do capital provoca a brutalização e a desintegração dos aparelhos de Estado – a guerra apenas acelera esta tendência. O conflito militar, como forma final de concorrência de crise geopolítica, constitui o meio em que este processo de crise se irá consumar.
No entanto, o Kremlin está de olhos postos na vitória, principalmente devido ao novo mandato de Donald Trump. Durante a campanha eleitoral, Trump declarou repetidamente que seria capaz de pôr rapidamente fim à guerra na Ucrânia através de negociações. Para o Kremlin, a perspectiva de uma paz vitoriosa na mesa de negociações parecia portanto realista – especialmente porque os EUA estão agora a entrar numa fascização aberta, incluindo uma reaccionária política climática e uma estrutura de poder oligárquica, que também é caraterística da Rússia sob Putin. É óbvio que a crise do capital nos centros ocidentais progrediu de tal modo que se aproxima das estruturas de poder destroçadas da semiperiferia pós-soviética. Um acordo geopolítico sujo sobre o cadáver da Ucrânia, engendrado por líderes autoritários e estadistas altamente corruptos, fascistóides e oligárquicos, é o que o Kremlin espera para este ano, e parece agora mais próximo do que nunca desse objectivo.
O que nos leva de volta às já mencionadas linhas vermelhas do Kremlin, que foram ultrapassadas pelo Ocidente no final de 2024 sob a forma de ataques com mísseis de longo alcance no interior da Rússia. Do ponto de vista de Moscovo, parecia que estes ataques só tinham de ser aceites até 20 de Janeiro, data da tomada de posse de Trump. Porquê arriscar uma guerra nuclear quando a vitória parece tão próxima? No Ocidente – tanto em Washington como em muitas capitais da UE – o pânico do fechar da porta estava a espalhar-se. Grande parte da política externa iniciada por Washington ou pela UE após a eleição de Trump serviu para tornar irreversíveis os processos e desenvolvimentos geopolíticos. Os novos rostos, que agora podem dar vida ao seu nacionalismo e imperialismo em Washington, deveriam ser privados do maior número possível de opções. A Ucrânia foi abastecida com armas pela última vez e a sua posição negocial deveria ser melhorada através de opções militares de longo alcance.

Nova crise de Cuba

Na realidade, porém, isto não passa de uma minimização dos danos, uma vez que a derrota do Ocidente na batalha pela Ucrânia há muito que é discutida abertamente, mesmo no Ocidente. Quanto da Ucrânia terá de ser atirado ao imperialismo russo para acabar com a guerra – esta é agora a lógica que também encontrou o seu caminho nos grupos de reflexão ocidentais. A única questão que ainda está a ser discutida é se será possível dar ao “resto da Ucrânia” algum tipo de soberania.
O cruzamento da última linha vermelha de Putin, o desbloqueamento de mísseis capazes atingir o território russo, foi uma escalada clara no final de 2024, que foi procurada pelos EUA no interregno entre Biden e Trump. Na prática só serviu para fazer subir o preço que a Rússia tem de pagar pela sua vitória na Ucrânia. Foi uma espécie de roleta russa nuclear que ambos os lados jogaram no final de Novembro de 2024. Em grande parte despercebido pelo público ocidental, o mundo esteve à beira de uma escalada nuclear durante dias. No entanto, a diferença em relação à crise dos mísseis de Cuba é que em 1962 o mundo susteve a respiração em choque, enquanto em 2024 as ameaças de Putin foram apenas incómodas e mal notadas. Putin ameaçou com nada menos do que a utilização de armas nucleares.
A nova volatilidade na esfera geopolítica, a tendência crescente para a guerra como meio da política, mesmo nos centros, e a vontade de correr riscos militares cada vez maiores são uma expressão da nova fase de crise em que o sistema mundial capitalista está a entrar, após o esgotamento das economias de défice neoliberais. A era de crise do neoliberalismo, com a construção da torre da dívida global, as bolhas especulativas correspondentes e as guerras mundiais na periferia, está finalmente a chegar ao fim com a reeleição de Trump. Segue-se agora uma fase de administração abertamente autoritária das crises, de erosão do Estado e de conflitos militares a todos os níveis – incluindo entre os centros políticos e económicos mundiais. A Rússia oligárquica de Estado de Putin, a Bielorrússia autoritariamente governada – manifestam no seu autoritarismo instável o futuro da administração das crises.

Tomasz Konicz é autor e jornalista. Publicou recentemente o livro “Klimakiller Kapital. Wie ein Wirtschaftssystem unsere Lebensgrundlagen zerstört [Capital assassino do clima. Como um sistema económico está a destruir os nossos meios de subsistência]”. Mais textos e opções de donativos (Patreon) em konicz.info

Original “Für ein Stück Land” in konicz.info e akweb.de, 18.02.2025. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.akweb.de/ausgaben/712/trump-will-den-krieg-in-der-ukraine-beenden-wie-hoch-muss-das-land-bezahlen/

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