Do boom restam as ruínas

Um tribunal de Hong Kong ordenou a liquidação da Evergrande, a segunda maior empresa imobiliária da China, altamente endividado. A crise no sector da construção mostra que os métodos habituais do Estado chinês para lidar com os problemas económicos funcionam cada vez menos

Tomasz Konicz, 23.04.2024

Mais alto! Mais longe! Mais depressa! O inflacionado sector imobiliário da China está constantemente a estabelecer novos recordes – mesmo quando perde o fôlego. O edifício em ruínas mais alto do mundo, o arranha-céus Goldin Finance 117, com 597 metros de altura, ergue-se não muito longe da capital Pequim, na cidade de Tianjin, no norte da China. É apenas um dos muitos arranha-céus vazios da China: a maior dinâmica especulativa da história do sistema capitalista mundial deixou atrás de si enormes cidades fantasmas. Cerca de 65 milhões de apartamentos sem comprador estão vazios. Ao mesmo tempo, milhões de pequenos investidores que pagaram antecipadamente os seus imóveis continuam à espera da sua tão desejada casa própria, porque as empresas a quem confiaram o seu dinheiro entraram em dificuldades económicas antes de conseguirem concluir os imóveis previstos.

O caso mais conhecido é o da Evergrande, a segunda maior empresa imobiliária da China, que tem uma dívida recorde de 300 mil milhões de dólares americanos. A Evergrande declarou falência em 2021. Desde então, o grupo tem continuado a construir apartamentos, mas não tem conseguido pagar os empréstimos em dívida.

Evergrande faz parte de um gigantesco esquema Ponzi

Durante anos, a Evergrande fez efectivamente parte de um gigantesco esquema Ponzi: desde que os investidores adiantassem dinheiro, podiam ser iniciados novos projectos de construção. No final de janeiro, um tribunal de Hong Kong, onde a Evergrande está cotada na bolsa, ordenou a liquidação da empresa insolvente. A acção judicial foi intentada por investidores estrangeiros que pretendiam reaver pelo menos uma parte do dinheiro que tinham emprestado. No entanto, ainda não é claro se a sentença também pode ser executada na China continental, onde está localizada a grande maioria das propriedades da Evergrande.

O Governo chinês está sob pressão. Tem de perseguir dois objectivos contraditórios ao lidar com a crise imobiliária. Por um lado, na sequência do acórdão do tribunal, está sujeito a um maior „escrutínio global“, como refere o Neue Zürcher Zeitung, sobre se e como tem em conta as reivindicações dos investidores estrangeiros. Na actual situação económica e com a fuga de capitais a aumentar, o Governo não se pode dar ao luxo de afastar investidores estrangeiros. Mas a dissolução do grupo comporta também grandes riscos. Só na Evergrande, quase 100.000 empregados podem ficar sem emprego, para além de um número muito superior nos muitos estaleiros de construção. E centenas de milhares de compradores de casas já pagaram por um apartamento Evergrande mas ainda não o receberam – o que acontecerá aos seus créditos?

Por conseguinte, parece pouco provável que a sentença de Hong Kong seja executada na China continental. É provável que o Partido Comunista Chinês dê prioridade ao exército furioso de compradores de casa da classe média chinesa, para quem a propriedade é a forma mais importante de investimento, em detrimento dos investidores estrangeiros, por exemplo, continuando a manter a Evergrande viva através de empréstimos do Estado. De um modo geral o governo chinês parece querer evitar um rápido rebentamento da bolha imobiliária e favorecer uma deflação lenta e gradual. Até agora esta medida tem evitado o colapso do mercado imobiliário, com inúmeras falências de investidores, empresas de construção e pequenos investidores, mas à custa de uma crise que se arrasta há anos sem fim à vista.

Mercado imobiliário absurdamente inflacionado

Mas pode ser demasiado tarde para „desanuviar o ar“ no mercado imobiliário absurdamente inflacionado. Isto deve-se simplesmente à dimensão do sector de construção chinês e ao capital nele investido. O economista norte-americano Kenneth Rogoff estimou a contribuição do sector da construção e do imobiliário chinês para o produto interno bruto da China em cerca de 29% em 2021. No auge do boom da construção em Espanha, em 2006, que foi semelhante ao da China, esse valor era de cerca de 28% e na Irlanda de cerca de 22%.

A bolha imobiliária é o resultado dos gigantescos programas de estímulo económico e do forte crescimento do crédito do capitalismo de Estado chinês, numa reacção ao surto de crise de 2007 a 2009, que ironicamente foi desencadeado pela crise imobiliária nos EUA e na Europa. Para promover o crescimento, os bancos estatais chineses disponibilizaram cada vez mais empréstimos para a construção de infra-estruturas e de imóveis. As autarquias locais, em particular, acumularam dívidas no valor de vários biliões de dólares americanos. Mas as empresas imobiliárias, como a Evergrande, também puderam pedir emprestados montantes quase ilimitados durante anos – até que o governo restringiu os empréstimos no sector imobiliário em 2018 para travar a especulação.

Isto foi o início da ruína da Evergrande e de muitas outras empresas de construção. A Country Garden, por exemplo, a maior empresa de construção imobiliária privada da República Popular, declarou-se incapaz de pagar os seus empréstimos em outubro e tem de ser apoiada por bancos estatais com milhares de milhões. As dívidas do Country Garden ascendem ao equivalente a 200 mil milhões de dólares americanos.

A agência de rating norte-americana Moody’s já está a traçar paralelos com o período de estagnação do Japão, as chamadas „décadas perdidas“ que se seguiram ao fim do boom imobiliário japonês no início da década de 1990. A economia deficitária chinesa está claramente esgotada – as montanhas de dívida estão a crescer, enquanto os resultados económicos são cada vez menores. Mas o Governo chinês não se pode dar ao luxo de deixar rebentar esta gigantesca bolha especulativa.

As tendências de crise estão a tornar-se cada vez mais evidentes

A economia no seu conjunto está a abrandar e as tendências de crise são cada vez mais evidentes. O desemprego entre os assalariados com idades compreendidas entre os 16 e os 24 anos era de 21,3% em junho de 2023. Depois disso o Governo deixou de publicar números oficiais. Está a ocorrer um verdadeiro massacre nas cotações das bolsas de valores chinesas: O índice CSI 1000, de base alargada, perdeu 37% do seu valor no espaço de um ano – até o Governo intervir, no início de fevereiro, e prometer um aumento de compras de acções por parte dos fundos soberanos, para fazer subir os preços das acções, pelo menos temporariamente.

Na verdade, o capitalismo de Estado chinês tem maior margem de intervenção económica do que os seus concorrentes ocidentais: muito mais capital é controlado por bancos estatais ou, de outras formas, pelo Estado, que pode assim controlar em maior medida as áreas para onde os investimentos devem fluir. Mas isso também significa que as bolhas especulativas podem tornar-se ainda maiores enquanto o seu rebentamento vai sendo adiado – o que aumenta os problemas e, ao mesmo tempo, prolonga a sua duração.

Para disfarçar a dimensão da crise, as autoridades chinesas parecem estar agora a voltar a uma tradição do socialismo real, que também caracterizou o Bloco de Leste na sua fase final: o embelezamento do material estatístico. Segundo o Governo chinês, a economia cresceu 5,2% no ano passado, o que teria cumprido o objetivo de crescimento de 5% fixado no início do ano. No entanto, segundo o Financial Times, muitas empresas que operam na China estão agora a pôr em dúvida os números oficiais do crescimento. De acordo com algumas destas estimativas, o crescimento económico é, na realidade, de apenas 1,5%. Quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) previu para este ano uma economia pior do que a do ano anterior e um crescimento mais lento a médio prazo (3,5% em 2028), os representantes do governo chinês reagiram „indignados“ e apelaram a uma „previsão mais adequada“.

No ano passado a Bloomberg já tinha noticiado discrepâncias semelhantes entre os números oficiais e os inquéritos não oficiais no que respeita à evolução dos preços no mercado imobiliário chinês. De acordo com as estatísticas governamentais, o mercado tem-se revelado „notavelmente resistente“, apesar da crise que afecta empresas como a Evergrande: Os preços dos novos apartamentos terão caído apenas 2,4% entre 2021 e agosto de 2023, enquanto os preços dos imóveis existentes caíram 6,4%. No entanto, os dados compilados pela Bloomberg a partir de portais e inquéritos a agentes imobiliários revelam um quadro mais sombrio: segundo estes, mesmo em locais privilegiados de regiões metropolitanas como Xangai e Shenzhen, os preços terão caído „pelo menos 15%“. A situação é semelhante em „mais de metade“ das grandes cidades da República Popular.

As opiniões divergem mesmo quando se trata de quantificar o peso da dívida chinesa. Isto deve-se à falta de fiabilidade dos dados e ao grande sector dos chamados „bancos sombra“, ou seja, empresas financeiras que não estão sujeitas à supervisão bancária. A única coisa que é clara é que a dívida total da República Popular – que acumulou enormes reservas de divisas através de excedentes comerciais desde a década de 1990 até à primeira década do século XXI – aumentou muito mais rapidamente do que a produção económica desde 2008/2009. De acordo com os números oficiais, a dívida da China „duplicou“ para cerca de 280% do PIB entre 2008 e 2023. As estratégias que o capitalismo de Estado chinês utilizou nos últimos anos para ultrapassar as crises económicas estão assim a atingir cada vez mais os seus limites.

Original “Vom Boom bleiben die Ruinen” in konicz.info, 15.02.2024. Também publicado em Jungle World, 15.02.2024. Tradução de Boaventura Antunes

https://jungle.world/artikel/2024/07/china-krise-bausektor-evergrande-vom-boom-bleiben-die-ruinen
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