PORQUÊ ANTIFASCISMO?

A luta contra a „revolta autoritária“ da nova direita tem um papel central a desempenhar na crise sistémica em plena expansão

03.01.2024, Tomasz Konicz

De onde vêm todos os populistas e extremistas de direita que dominam cada vez mais a paisagem política europeia?1 Contrariamente à crença popular, não vêm do espaço exterior,2 não são um corpo estranho que se infiltra nas sociedades liberais democráticas, mas o seu inevitável produto de crise. Também não são „franjas“ políticas que de algum modo assumiriam o controlo da corrente política dominante. O fascismo é o suor do medo que se transforma em ódio e é segregado pelo centro burguês na crise. A este respeito, a situação é certamente comparável à crise sistémica dos anos de 1930, embora o actual processo de crise – que, além de uma dimensão económica, tem uma dimensão ecológica – seja muito mais profundo do que a quebra económica nas vésperas da transferência de poder para os nazis.

A ascensão destes movimentos pré-fascistas parece ser muito mais suave do que na década de 1930, o que aponta para um maior grau de interiorização dos contraditórios imperativos do sistema capitalista. O fascismo emergente não se está a rebelar contra as exigências e os constrangimentos que se intensificam em resultado da crise; pelo contrário, está a levar a lógica do sistema a extremos ideológicos e práticos. É esse o segredo do seu sucesso. Este extremismo do centro leva a identidade nacional a extremos nacionalistas e chauvinistas, produz formas extremas racistas e anti-semitas do pensamento liberal da concorrência e tende a transferir as consequências da crise para as vítimas da crise.3

Dificilmente algo seria mais desastroso do que cair na reificação habitual quando se avalia o pré-fascismo, ou seja, definir o estado actual do movimento em termos absolutos e sem contexto, ignorando a sua dinâmica social e as contradições que o impulsionam (para afirmar, por exemplo, que a AfD não é um partido fascista, dadas as diferenças em relação ao fascismo histórico). Este movimento reacionário de levar ao extremo a ideologia liberal existente, que, em interacção com os surtos de crise, torna manifesto o núcleo bárbaro da socialização capitalista, tem de ser entendido precisamente como movimento.4 E isso torna-se claro não só na sua retórica, mas também nos quadros da AfD, que foi fundada como um „partido de professores“ por economistas como Bernd Lucke e gestores como Hans Olaf Henkel, para quem o sadismo da austeridade de Schäuble na crise do euro não foi suficientemente longe. Actualmente – após a fase populista de direita sob Petry – as forças de extrema-direita são dominantes em muitas partes deste partido.5

A revolta autoritária no século XXI

À primeira vista, também parece difícil entender estes movimentos pré-fascistas como uma revolta autoritária. Desde o debate de Sarrazin, os actores da nova direita têm-se apresentado na pose do rebelde que só diz „verdades corajosas“ enquanto deita abaixo os padrões mínimos de civilização cuidadosamente estabelecidos no pós-guerra.6 No entanto, apesar de toda a retórica, é precisamente o núcleo autoritário dos movimentos fascistas que é decisivo para o seu sucesso. Com os „constrangimentos materiais“ da valorização do capital em crise a apertarem o pescoço da maioria dos assalariados, só lhes restam duas opções: a rebelião contra a loucura da crise ou o aumento da identificação e da subjugação irracionais.

Aqui é um mecanismo psicológico fundamental que promove a identificação com as autoridades existentes em tempos de crise. O desenvolvimento da consciência, o superego freudiano, ocorre na primeira infância precisamente através da identificação com a autoridade externa (geralmente parental), que é interiorizada pela criança: As proibições parentais, que impõem limites ao princípio do prazer da criança, despertam a agressão, mas esta é sublimada e contribui para o estabelecimento do superego. „A agressão da consciência preserva a agressão da autoridade“, como disse Freud.7 No desenvolvimento da consciência na primeira infância, a atitude agressiva face a uma autoridade externa é interiorizada através de um processo de identificação com essa mesma autoridade.

Um processo semelhante está também subjacente à reacção irracional e autoritária à crise que possibilita o extremismo de direita do centro. Tal como a criança, o portador da ideologia de extrema-direita, caracterizada por uma estrutura de carácter autoritário, interioriza as exigências e requisitos crescentes da valorização do capital. A irracionalidade do fascismo reflecte assim a irracionalidade da socialização capitalista que se está a revelar na crise. Na intensificação dos constrangimentos sistémicos, as fixações autoritárias do ambiente familiar – que nunca foram ultrapassadas – continuam a fazer efeito. À medida que a intensidade da crise aumenta, a identificação do carácter autoritário com o sistema existente também se intensifica, como Erich Fromm afirmou na famosa antologia „Autoridade e Família“ já em 1936:8 „Quanto mais … as contradições dentro da sociedade crescem e quanto mais insolúveis se tornam, quanto mais catástrofes como a guerra e o desemprego ensombram a vida do indivíduo como forças inevitáveis do destino, mais forte e generalizada se torna a estrutura da pulsão sadomasoquista e, portanto, a estrutura do carácter autoritário, mais a devoção ao destino se torna a virtude e o desejo supremos.“

Este sadomasoquismo resulta das enormes exigências de renúncia que a dinâmica da crise impõe às personagens cumpridoras e autoritárias. Também aqui se acumula uma agressividade cada vez maior, à procura de uma saída. Quanto maior for a negação da pulsão, maior será a necessidade de descarga pulsional; o masoquismo exige uma satisfação sádica. Esta fixação sadomasoquista pode ser vista com uma clareza nauseabunda na política de crise de Schäubler durante a crise do euro, que justificou explicitamente as crueldades infligidas por Berlim à periferia do sul da Europa,9 alegando que coisas semelhantes tinham sido suportadas pelas pessoas que lhes sobreviveram aqui na Alemanha durante a Agenda 2010. A resistência submissa aos fracassos e à dor dá às pessoas o direito de por sua vez infligir dor – este é, de facto, o núcleo sadomasoquista e patológico de todos os slogans social-darwinistas da direita sobre „força“, „assertividade“ e „dureza“.

Este mecanismo fascistóide de agressividade autoritária, alimentado pelos surtos de crise, também veio à tona em 2023,10 subjacente à campanha da direita contra o aumento do rendimento mínimo.11 Enquanto a economia da República Federal da Alemanha permaneceu em estagflação (inflação elevada e estagnação) em 2023, o que levou a exigências de renúncia e de medidas de austeridade, os desempregados puderam ser novamente estilizados de vítimas da crise para bodes expiatórios. Como que em movimento rápido, esta campanha assistiu à habitual passagem da subjugação à agressão autoritária, que também acompanhou a génese da nova direita na Alemanha sob a forma do Hartz IV e do debate Sarrazin.12 No período da fascização, o fascismo – ainda no quadro dos discursos neoliberais tardios – lança a sua sombra. Não só no que diz respeito aos economicamente „não valorizáveis“ nos centros, onde o trabalho forçado volta a ser discutido,13 mas sobretudo na defesa contra os movimentos de refugiados da periferia, que há muito transformaram o Mediterrâneo numa vala comum.

O antifascismo na crise sistémica

Não há fundo, não há fim lógico para esta sequência de surtos de crise, de exigências de renúncia („poupem!“, „apertem o cinto!“) e de agressão autoritária („tirem os cigarros aos desempregados!“),14 pois trata-se de um processo alimentado pela crise do capital. Quanto mais a crise do capital afecta a vida quotidiana da população, mais intensa se torna esta sobre-identificação agressiva com o sistema, que está em processo de colapso – e mais difícil se torna formular críticas radicais e discutir alternativas sociais face a este endurecimento ideológico no „centro“. Quanto mais abertamente a crise sistémica vem à luz do dia, menos alternativas parece haver para o sistema cuja fascização se percebe. A incapacidade das elites funcionais capitalistas para enfrentarem a crise ecológica e social do capital está a vir ao de cima numa altura em que apenas são propagadas alternativas fascistas para a Alemanha.

O discurso público está a inclinar-se para a direita, por assim dizer. Nas democracias capitalistas, o debate gira sobretudo em torno das „questões económicas“, ou seja, da optimização do processo de valorização do capital. Este discurso orwelliano, em que os objectos da dinâmica fetichista do capital aperfeiçoam a sua própria exploração, é particularmente eficaz, muito mais eficaz do que o ucasse dos sistemas autoritários. É por isso que – pelo menos nos centros do sistema mundial – a democracia burguesa é a forma óptima de dominação capitalista sem sujeito.15 No entanto, este discurso baseado na ampla interiorização dos imperativos do sistema capitalista só pode ser mantido enquanto existir uma classe média ampla e razoavelmente estável, ou seja, um grau suficiente de „normalidade capitalista“. Se o equilíbrio entre constrangimentos e gratificações for perturbado pela crise, então a corrente dominante ameaça inclinar-se para o autoritarismo e o fascismo. O medo simplesmente bem justificado do processo de crise capitalista sufoca então qualquer debate sobre a transformação do sistema e as alternativas, procurando refúgio em campanhas de ódio contra os refugiados16 ou os desempregados.17

Como o capitalismo é incapaz18 de ultrapassar o seu processo de crise sócio-ecológica,19 é inevitável que se chegue a um ponto de viragem, em que a fascização das sociedades capitalistas ameaça transformar-se em fascismo como forma de crise da dominação capitalista (em última análise, sob a forma de guerra civil e colapso do Estado). É por isso que a luta antifascista é de importância central na crise sistémica (já o era na crise sistémica dos anos de 1930, que levou ao maior massacre da história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, que foi enfrentado ao longo das linhas da frente antifascista por uma coligação muito ampla que ia dos EUA à União Soviética).

Trata-se, em primeiro lugar, de impedir que as sociedades capitalistas tardias se transformem na sua forma de crise fascista, através de uma ampla política de alianças antifascistas. A cooperação com todas as forças não fascistas em alianças alargadas, uma abordagem ofensiva contra a agitação e a hegemonia da direita na esfera pública, já foi por vezes bem sucedida nos anos noventa. No entanto, a fascização da Alemanha já está tão avançada que esta luta ofensiva contra as alianças antifascistas só poderia ser bem sucedida com a proibição da AfD. De certo modo já é demasiado tarde para afastar o perigo da direita através de meras mobilizações e campanhas.20 A ambivalente medida de emergência da repressão estatal, que também exerceria pressão sobre as redes de direita no „Estado profundo“ da República Federal, é eficaz contra movimentos pré-fascistas, pelo menos a curto prazo.

Para as forças progressistas, no entanto, a verdadeira tarefa no seio das alianças antifascistas é incutir-lhes uma consciência radical da crise. Só assim a nova direita poderá ser efectivamente derrotada. É importante afirmar simplesmente os factos: o capitalismo não está em condições de resolver a crise social e ecológica que está a provocar. É inevitável uma transformação do sistema cujo resultado está em aberto, e será travada uma luta de transformação pelo seu resultado – especialmente contra a ameaça fascista. A reflexão consciente sobre a crise sistémica num movimento antifascista combativo, que já está a lançar as bases para uma transformação progressiva do sistema, é o melhor antídoto para os rumores conspiratórios de crise da nova direita.

A ideologia do pré-fascismo, que nasce do extremismo do centro e é de facto uma forma selvagem do neoliberalismo,21 só pode assim ser ultrapassada num confronto ofensivo com a realidade da crise. Uma das grandes mentiras do fascismo, que há muito fabrica narrativas de crise estruturalmente anti-semitas,22 é que ele – exagerando o habitual comportamento concorrencial liberal de mercado – quer simplesmente eliminar a crise. Esta falsa lógica vai desde o slogan „Fronteiras fechadas!“ das campanhas de direita que pretendem isolar a Europa dos movimentos de refugiados, passando pela criação de aldeias fortificadas de direita nas províncias da Alemanha de Leste, até ao encapsulamento individual dos “preparadores”. Estas generalizadas reacções à crise da direita indicam também que os bandos estão à espreita por detrás do apelo da direita a uma ordem autoritária.

A formação autoritária e a desintegração social estão a fundir-se, pois desta vez – ao contrário do fascismo dos anos de 1930 – não há um novo regime de acumulação no horizonte, como o fordismo dos anos 1950. Há apenas a ameaça de colapso socio-ecológico e o pânico crescente,23 que alimentam as fantasias febris das aldeias fortificadas da extrema-direita e dos bunkers dos “preparadores”.24 A nova direita não vai „criar ordem“, é de facto a executora da decadência social já promovida pelo neoliberalismo, ou seja, é a „continuação da concorrência por outros meios“ (Robert Kurz).

A crise como dinâmica fetichista,25 em que as contradições internas e externas da relação de capital devastam o mundo, não pode ser afastada pelo encapsulamento ou pela exclusão das vítimas da crise – nem na sua dimensão económica, nem na sua dimensão ecológica.26 O ridículo deste reflexo reaccionário é, de facto, evidente. A crise sistémica capitalista só pode ser combatida através da difusão de uma consciência radical da crise, através de uma transformação do sistema por que se lute conscientemente, para uma sociedade pós-capitalista. É a única possibilidade de evitar a queda na barbárie. Esta é a verdade simples de que todos se apercebem.

E este é o ponto crucial no que diz respeito a uma prática de alianças antifascistas que reflicta o processo de crise e propague uma consciência de crise radical e transformadora: mesmo que as forças progressistas em amplas alianças antifascistas caíssem em saco roto com a sua retórica transformadora, isso seria de importância secundária desde que as transferências fascistas de poder pudessem ser evitadas. A dinâmica fetichista da crise continuará a desenvolver-se – independentemente do nível de consciência da população.

O processo de crise forçará as sociedades capitalistas tardias a transformarem-se numa formação diferente, pós-capitalista, de modo a que a consciência radical da crise possa prevalecer, desde que a opção fascista possa ser evitada. As consequências sociais da crise do capital são ambivalentes: por um lado, materializam-se na agressividade autoritária e no pânico, que dão um impulso ao pré-fascismo, mas, ao mesmo tempo, a crise pode contribuir para a formação e difusão de uma consciência emancipatória no contexto das lutas antifascistas.

É por isso que o antifascismo tem prioridade máxima na actual crise sistémica, que conduzirá inevitavelmente a uma transformação sistémica. Para já, basta evitar a opção fascista da crise para manter abertas vias de transformação não-fascistas e, portanto, emancipatórias.

Uma nova edição actualizada e aumentada do meu ebook „Faschismus im 21. Jahrhundert. Skizzen der drohenden Barbarei [O fascismo no século XXI. Esboços da barbárie que se aproxima]“.

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1 https://www.spiegel.de/ausland/wilders-wahlsieg-in-den-niederlanden-warum-europas-rechtspopulisten-so-erfolgreich-sind-a-cb83a6c3-4ad0-4a03-a923-b008dd020c24

2 https://www.theguardian.com/film/2022/nov/12/nazis-in-space-how-paul-verheovens-starship-troopers-brilliantly-skewered-fascism

3 https://www.konicz.info/2023/12/26/konjunktur-fuer-faschismus/. Em português: O crescimento do fascismo, online: https://www.konicz.info/2023/12/28/o-crescimento-do-fascismo/

4 https://www.konicz.info/2016/08/01/die-bewegung-als-bewegung/

5 https://www.tagesschau.de/inland/innenpolitik/verfassungsschutz-afd-sachsen-rechtsextremistisch-100.html

6 https://www.konicz.info/2010/09/21/sarrazins-sieg-11/

7 https://www.signaturen-magazin.de/sigmund-freud-das-unbehagen-in-der-kultur,-7.html

8 https://archive.org/stream/HorkheimerEtAlAutoritatUndFamilie/Horkheimer%20et%20al-%20Autorita%CC%88t%20und%20Familie_djvu.txt

9 https://www.konicz.info/2018/08/20/griechenland-zu-tode-gespart/

10 https://afdkompakt.de/2023/10/17/buergergeld-erhoeht-die-arbeitslosigkeit/

11 https://www.focus.de/politik/deutschland/umfrage-droht-massen-faulheit-mehrheit-lehnt-buergergeld-erhoehung-ab_id_249817498.html

12 https://www.konicz.info/2013/03/15/happy-birthday-schweinesystem/

13 https://www.tagesschau.de/inland/gesellschaft/heil-buergergeld-100.html

14 https://www.reddit.com/r/asozialesnetzwerk/comments/18p7ir0/ja_hey_klar_lass_nochmal_n_bisschen_hetzen_ein/

15 https://www.konicz.info/2022/10/02/die-subjektlose-herrschaft-des-kapitals-2/

16 https://www.spiegel.de/politik/deutschland/friedrich-merz-will-leistungen-fuer-abgelehnte-asylbewerber-kuerzen-a-7db0fa50-8ab1-4cfc-8379-882daf63cfdb

17 https://www.nzz.ch/wirtschaft/deutsches-buergergeld-steigt-kraeftig-ist-bescheuert-wer-noch-arbeitet-ld.1771747

18 https://www.konicz.info/2022/10/02/die-subjektlose-herrschaft-des-kapitals-2/

19 https://www.konicz.info/2022/01/14/die-klimakrise-und-die-aeusseren-grenzen-des-kapitals/

20 https://www.konicz.info/2023/12/26/konjunktur-fuer-faschismus/ Em português: O crescimento do fascismo, online: https://www.konicz.info/2023/12/28/o-crescimento-do-fascismo/

21 https://www.kontextwochenzeitung.de/politik/376/neo-aus-liberal-wird-national-5145.html

22 https://zuklampen.de/buecher/sachbuch/philosophie/bk/1176-exit.html

23 https://www.konicz.info/2012/12/02/kultur-der-panik-uncut/

24 https://www.dw.com/de/willkommen-im-nazi-dorf/a-18682416

25 https://www.konicz.info/2022/10/02/die-subjektlose-herrschaft-des-kapitals-2/

26 https://www.konicz.info/2022/01/14/die-klimakrise-und-die-aeusseren-grenzen-des-kapitals/

Original “Wieso Antifaschismus?” in konicz.info, 01.01.2024. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.konicz.info/2024/01/01/wieso-antifaschismus/

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