konicz.info, 20.06.2022
Breve historial sobre as aporias da política de crise burguesa na transição da economia mundial da crise da pandemia para a crise da guerra
Tomasz Konicz, Tradução de Boaventura Antunes
Da pandemia à guerra – a economia mundial claro que já não tem descanso. No seu website, o Tagesschau vê mesmo a economia mundial ameaçada por „múltiplas crises“.1 Mas quando se trata das consequências económicas do rápido avanço da erosão do sistema mundial capitalista, coloca-se agora a questão de saber se faz algum sentido falar de uma crise económica pandémica ou de uma crise económica relacionada com a guerra, e se não seria mais consistente compreender finalmente os sucessivos choques económicos como fases de um único e mesmo processo de crise sistémica.
Em todo o caso o Banco Mundial teve de rever a sua previsão de crescimento anterior significativamente em baixa na sua última avaliação da economia global.2 De acordo com esta previsão, a economia global deverá crescer apenas 2,9% este ano, enquanto que o Banco Mundial ainda esperava 4,1% em Janeiro. Isto reduziria quase para metade a dinâmica económica global, que atingiu um enorme aumento de 5,7% em 2021 devido às gigantescas medidas de estímulo económico financiadas pela dívida de muitos Estados. Para muitos países em desenvolvimento e emergentes, que só podem alcançar estabilidade social com elevadas taxas de crescimento, esta desaceleração económica já é perigosa – especialmente num cenário com os preços dos alimentos a disparar. Além disso, o Banco Mundial alertou para o risco crescente de um período prolongado de estagflação, semelhante à fase de crise dos anos 70, quando a estagnação económica foi acompanhada de uma inflação de dois dígitos (ver também: „De volta à estagflação?“).3
A OCDE fez correcções semelhantes, segundo as quais a produção económica global deverá crescer apenas 3% este ano.4 No final de 2021, a previsão era ainda de 4,5%. Para 2023, a associação de 38 países industrializados prevê um crescimento económico de 2,8% em vez dos 3,2% anteriormente assumidos – se não houver um novo surto de crise, é claro. De acordo com a OCDE, o abrandamento económico no próximo ano será também acompanhado por um abrandamento da onda de inflação, que se espera que caia de 8,5% este ano para 6,0% em 2023.
As revisões maciças que tiveram de ser feitas pela OCDE e pelo Banco Mundial no prazo de meio ano não só ilustram a futilidade das previsões económicas na crise sistémica manifesta em que o capitalismo tardio está a entrar, como também revelam uma ligação cada vez mais clara entre inflação e crescimento económico. O mais tardar desde o surto da pandemia, ao qual os políticos reagiram com a impressão maciça de dinheiro, especialmente para financiar medidas de estímulo governamental nos EUA e na UE, a crescente dinâmica inflacionista criou raízes. Isto não se deve apenas à guerra – não é pura „inflação Putin“ – e às perturbações nas cadeias de abastecimento globais, mas também à política monetária expansiva dos bancos centrais.5
Inundação de dinheiro e inflação
Esta ligação entre a grande inundação de dinheiro relacionada com a pandemia e a inflação global foi discutida recentemente, por exemplo, perante a Comissão de Finanças do Senado dos EUA, que a Secretária do Tesouro da administração Biden, Janet Yellen, teve de enfrentar no início de Junho.6 As acusações da oposição republicana, segundo as quais a Casa Branca desencadeou a inflação e o „sobreaquecimento“ da economia através do seu programa de estímulo económico de 1,9 biliões de dólares, são desonestas em vários aspectos: por um lado, Donald Trump introduziu medidas de apoio igualmente dispendiosas, que, no entanto, incluíam principalmente reduções fiscais para os ricos e para as empresas, enquanto Biden – apesar de todos os cortes – conseguiu fazer passar algum alívio para a classe média e para os estratos de baixos rendimentos. E é precisamente pela circunstância de os subsídios sociais para crianças, por exemplo, serem identificados como „factores de inflação“ que a Casa Branca agora tem sido censurada.
Um olhar sobre o ano passado ajuda a colocar as coisas em perspectiva: A inflação acelerada, que atingiu agora mais de oito pontos percentuais, foi acompanhada por um crescimento do PIB de 5,4% – o maior desde os anos 80.7 Esta expansão, em que a Reserva Federal utilizou efectivamente dinheiro recém-impresso na compra da dívida contraída pelo governo dos EUA para estimular a economia, ocorreu em resposta ao tremendo colapso económico que se seguiu ao surto da pandemia, que fez com que o PIB dos EUA se contraísse em 3,4% em 2020. Poder-se-ia portanto perguntar, inversamente, como seria agora a economia dos EUA se Washington tivesse dispensado estes programas de estímulo.
A política económica americana evitou de facto uma depressão, quanto mais não fosse ao preço do que os trabalhadores assalariados em particular têm agora de pagar na caixa do supermercado: o preço da inflação. Também houve aquisições de obrigações e instrumentos de dívida por parte dos bancos centrais em fases de crise passadas, por exemplo após o rebentamento da bolha imobiliária em 2007/08, mas por um lado as dimensões desta „flexibilização quantitativa“ são muitas vezes maiores do que então,8 e por outro lado a financeirização do capital parece ter atingido os seus limites, uma vez que as fases anteriores da política monetária expansiva levaram a uma inflação dos preços do mercado financeiro nos inflacionados mercados financeiros – e assim contribuíram para o aumento de novas bolhas especulativas.
A impressão da moeda do banco central representa assim – juntamente com a globalização em colapso e a crise climática em plena expansão – um dos três factores mais importantes que contribuem para a actual onda de inflação (ver também „Três tipos de inflação“).9 Entretanto, a Fed aumentou as taxas de juro directoras para entre 0,75 e um por cento, numa tentativa de controlar esta inflação – apesar da contracção de 1,5 por cento do PIB dos EUA no primeiro trimestre deste ano.10
Nos EUA, a oposição de direita culpa pela inflação a administração Biden e as suas já atrofiadas abordagens à política social;11 na Europa, o é o BCE que está no centro da crítica, sobretudo alemã. As disputas sobre a orientação da política monetária são sobrepostas na UE pelos interesses divergentes da periferia sul e do centro alemão.12 Em Berlim, está a crescer o ressentimento contra a política monetária ultra-suave do BCE, enquanto que o sul da zona euro, que tem sofrido com os excedentes comerciais da Alemanha desde a introdução do euro, depende de taxas de juro zero e da compra de obrigações do BCE para financiar medidas de estímulo e manter sustentável o seu elevado peso da dívida. Em Itália, a dívida pública excede agora 130 por cento do PIB. Consequentemente, existe um bom indicador do potencial de crise na Zona Euro: é o chamado „spread“, a diferença de taxas de juro entre as obrigações da dívida pública alemãs e as italianas,13 que se eleva no caso de qualquer surto de crise iminente na UE, à medida que o capital foge para „portos seguros“ como a RFA ou os EUA num caso desses. Este “spread” acaba de atingir o seu nível mais alto desde o surto da pandemia.
É por isso que o Banco Central Europeu está muito mais hesitante do que a Fed em aumentar as taxas de juro directoras – uma nova crise do euro, em que o aumento das taxas de juro poderia fazer cair as montanhas da dívida no sul da união monetária, deve ser evitada a todo o custo.14 Na „Europa alemã“15 , duas décadas após a sua fundação e uma década após a primeira crise do euro, o beco sem saída monetário que ameaça explodir a zona monetária está de novo a emergir: o BCE deveria de facto aumentar as taxas de juro rápida e significativamente a fim de conter a inflação, que se situa agora em mais de oito por cento.16 Mas, ao mesmo tempo, os „guardiães monetários“ teriam de manter as taxas de juro baixas a fim de evitar uma nova crise da dívida no Sul. A Itália, cujo rácio da dívida pública é de 134 por cento do PIB, é a terceira maior economia da zona euro.
A armadilha da crise da política monetária
Mais uma vez, o Banco Central Europeu poderia, por um lado, combater a inflação através de aumentos rápidos e significativos das taxas de juro, mas ao fazê-lo arriscar-se-ia a uma crise de dívida no Sul da Europa e, com efeito, à desintegração da sua zona monetária. Por outro lado, o BCE poderia continuar a dar prioridade à política económica e a manter as taxas de juro baixas, a fim de evitar uma nova crise do euro. Isto daria, contudo, um novo impulso à inflação, de modo que haveria o perigo de a Zona Euro seguir o exemplo da Turquia,17 onde o „crítico de taxas de juro“ Erdogan tem baixado repetidamente as taxas de juro directoras apesar do rápido aumento dos preços no país – e entretanto conduziu a inflação na Turquia a uns impressionantes 73 por cento.
Na imanência do sistema, a classe política pode escolher a opção de endividamento adicional até à hiperinflação, ou seguir o caminho de duros programas de austeridade que conduzem à recessão com o início de uma espiral deflacionista, como o sadismo de austeridade de Schäuble exemplificou na Grécia durante a crise do euro. Na crise capitalista permanente, a política monetária burguesa teria de facto de baixar e subir as taxas de juro ao mesmo tempo, o que é apenas uma expressão da aporia da política de crise capitalista, um beco sem saída em que a „administração“ capitalista da crise sistémica se encontra no fim da era neoliberal.18
Esta armadilha da crise19 não se aplica apenas à zona euro, está em acção em todos os países capitalistas centrais, que até agora têm sido capazes de adiar o seu fecho através da expansão da esfera financeira, com o aumento permanente das montanhas de dívida e das sempre novas bolhas do mercado financeiro.20 Uma análise da evolução a longo prazo das taxas de juro directoras mostra esta auto-contradição da política monetária, que se desenvolveu cada vez mais com cada impulso do processo de crise histórica.21 Tanto o BCE22 como a Fed23 têm, historicamente, tendido a baixar cada vez mais as suas taxas de juro directoras desde os anos 80, com os grandes surtos de crise financeira do século XXI a actuarem como momentos desencadeantes de cada fase de taxas de juro baixas ou nulas. As taxas de juro directoras na zona euro, por vezes em território negativo, eram mais de três por cento quando o euro foi introduzido. Após o rebentamento da bolha dot-com (2000), a bolha imobiliária (2007) e a eclosão da crise do euro, estas foram sendo cada vez mais reduzidas. Desde 2014, tem prevalecido na zona euro uma política de taxa de juro zero de facto, acompanhada de cada vez mais impressão monetária.
A situação é semelhante com a Fed, que prosseguiu uma política monetária muito expansiva após a eclosão da crise imobiliária em 2007, contribuindo assim significativamente para a formação da gigantesca bolha de liquidez, que teve de ser laboriosamente estabilizada com novas injecções de biliões durante o curso da pandemia.24 As distorções nos mercados financeiros inflacionados, que começaram mesmo antes do início da guerra, indicam precisamente que esta financeirização do capitalismo dificilmente pode ser mantida. O cada vez mais empilhado castelo de cartas financeiro global está a ameaçar entrar em colapso. No seu cerne, foi esta dinâmica da dívida que aumentou o peso da dívida do sistema mundial, que estava a sufocar com a sua produtividade, para 351 por cento da produção económica mundial.25
Se a administração da crise capitalista já não conseguir iniciar uma nova formação de bolhas nos mercados financeiros mundiais em reacção às actuais „múltiplas crises“ – como os principais media alemães chamam agora à crise sistémica capitalista – então é inevitável um gigantesco surto de desvalorização. Que não só desvalorizaria muitos „bens do mercado financeiro“ que circulam na esfera financeira nas mais diversas formas – como acções ou derivados – mas também o lixo do mercado financeiro acumulado nos balanços dos bancos centrais (principalmente títulos de dívida pública e titularizações de hipotecas ou de empréstimos).
O colapso dos mercados financeiros, por exemplo, sob a forma de uma crise da dívida europeia, iria repercutir-se na economia „real“, que está altamente dependente dos empréstimos e da procura financiada a crédito gerada na esfera financeira. Isto conduziria à desvalorização das capacidades de produção sob a forma de falências de empresas, dos recursos que já não podem ser vendidos, e da mercadoria força de trabalho, que de repente se tornaria supérflua. E só aqui existe ainda „espaço de manobra“ para a política de crise burguesa: como descrito acima, pode determinar a forma que este processo de desvalorização vai assumir. Ou a política monetária pode seguir o exemplo de Erdogan e marchar para a hiperinflação, ou pode seguir o exemplo de Schäuble e tomar o caminho da deflação através do sadismo da austeridade.
Para uma esquerda progressista e emancipatória, porém, só há uma perspectiva, se ainda quiser agir na crise de acordo com o seu conceito: a perspectiva da crítica categorial. Em vez de se concentrar oportunistamente em pseudo-alternativas imanentes ou trivialidades burguesas,26 seria preferível denunciar como tal o monstruoso fim-em-si do capital. Este é e continua a ser o pressuposto fundamental para tornar concebível uma alternativa ao capitalismo e, portanto, uma transformação do sistema.
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1 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/weltwirtschaft/iwf-weltbank-fruehjahrstagung-konjunkturprognose-101.html
2 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/konjunktur/weltbank-konjunktur-103.html
3 https://www.konicz.info/?p=4616. Em português: https://www.konicz.info/?p=4632
4 https://www.spiegel.de/wirtschaft/unternehmen/weltwirtschaft-oecd-senkt-wachstumsprognose-deutlich-sieht-begrenztes-stagflationsrisiko-a-1cc0db29-8efa-451b-86ca-82bf9db06355
5 https://www.konicz.info/?p=4389. Em português: https://www.konicz.info/?p=4405
6 https://www.nytimes.com/2022/06/07/us/politics/inflation-yellen.html
7 https://tradingeconomics.com/united-states/full-year-gdp-growth
8 https://lowerclassmag.com/2021/04/13/oekonomie-im-zuckerrausch-weltfinanzsystem-in-einer-gigantischen-liquiditaetsblase/. Em português: https://www.konicz.info/?p=4287
9 https://www.konicz.info/?p=4389. Em português: https://www.konicz.info/?p=4405
10 https://www.handelsblatt.com/finanzen/geldpolitik/beige-book-fed-us-wirtschaft-moderat-gewachsen-inflation-und-zinsen-machen-sich-aber-bemerkbar/28393622.html
11 https://www.konicz.info/?p=4591
12 https://www.heise.de/tp/features/Der-Aufstieg-des-deutschen-Europa-3370752.html
13 https://www.ft.com/content/2869a8f3-bf59-437f-a795-4a3fbdc35cd4
14 https://www.zeit.de/wirtschaft/2022-06/ezb-leitzins-inflation-notenbank-wende
15 https://www.heise.de/tp/features/Der-Zerfall-des-deutschen-Europa-3370918.html
16 https://www.spiegel.de/wirtschaft/statistisches-bundesamt-inflation-im-mai-erreicht-7-9-prozent-a-1ee957d1-5a15-463e-a58c-a6f423225cc5
17 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/weltwirtschaft/tuerkei-leitzins-erdogan-101.html
18 https://www.konicz.info/?p=4892. Em português: https://www.konicz.info/?p=4901
19 https://www.heise.de/tp/features/Politik-in-der-Krisenfalle-3390890.html
20 https://www.untergrund-blättle.ch/wirtschaft/theorie/stagflation-inflationsrate-6794.html. Em português: https://www.konicz.info/?p=4632
21 https://lowerclassmag.com/2020/04/27/corona-krisengespenster-kehren-zurueck/
22 https://www.ft.com/content/2869a8f3-bf59-437f-a795-4a3fbdc35cd4
23 https://tradingeconomics.com/united-states/interest-rate
24 https://lowerclassmag.com/2021/04/13/oekonomie-im-zuckerrausch-weltfinanzsystem-in-einer-gigantischen-liquiditaetsblase/. Em português: https://www.konicz.info/?p=4287
25 https://www.reuters.com/markets/europe/emerging-markets-drive-global-debt-record-303-trillion-iif-2022-02-23/
26 https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=46&posnr=613&backtext1=text1.php. Em português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz13.htm
Original “Fed und EZB in geldpolitischer Sackgasse”. Publicado originalmente em www.konicz.info, 11.06.2022. Publicado em untergrund-blattle.ch a 13.06.2022 e em www.exit-online.org a 18.06.2022. Tradução de Boaventura Antunes