ARMAS OU ARMAS NUCLEARES?

08.05.2022
A Ucrânia está transformada num campo de batalha imperialista. A guerra também marca o beco sem saída dos esforços políticos da esquerda do sistema. Um comentário
Tomasz Konicz, Tradução de Boaventura Antunes

A decisão foi tomada provavelmente pouco antes de Ramstein. Na reunião de políticos de 40 países da NATO e Estados aliados, que discutiram medidas de ajuda militar à Ucrânia na base aérea dos EUA, a Ministra da Defesa Christine Lambrecht (SPD) anunciou a entrega de armas pesadas sob a forma do tanque antiaéreo „Gepard“ à zona de guerra. Neste contexto, o „FAZ“ falou de uma „enorme“, mas também „necessária“ correcção da rota antes militarmente limitada de uma „potência central europeia amiga da Rússia“.

Berlim prometeu também um programa de formação para o pessoal militar ucraniano, bem como uma troca multilateral de armamento com os Estados orientais da NATO, que transferirão os seus arsenais soviéticos para a Ucrânia em troca dos sistemas de armamento alemães.
Esta correcção de rota, que é provavelmente de natureza mais gradual, foi precedida pela entrega em massa de armas ligeiras e munições. Durante o debate do Bundestag sobre a Ucrânia na quarta-feira passada, a Ministra dos Negócios Estrangeiros Annalena Baerbock (Verdes) fez um grande esforço para contrariar a impressão de que a Alemanha estava a fornecer muito poucas armas à Ucrânia. Milhares de armas anti-tanque, mísseis anti-aéreos, metralhadoras, granadas de mão e munições no valor de milhões tinham sido entregues. Contudo, por razões de sigilo, isto não tinha sido comunicado ofensivamente, disse Baerbock, que também contrariou a pressão política interna e externa sobre o governo alemão com comentários de que Berlim era contra „uma paz ditatorial“ na Ucrânia.

A actual frente geopolítica na guerra da Ucrânia, em que Berlim parece ser uma força de contenção, enquanto os EUA, em cooperação com os países do leste da NATO (com excepção da Hungria), apostam numa escalada do conflito, a fim de usar a guerra de agressão de Putin para enfraquecer permanentemente a Rússia em termos militares e eliminá-la como grande potência imperialista, é na realidade apenas uma intensificação da constelação já existente. Isto já foi expresso pelo Secretário de Defesa dos EUA Donald Rumsfeld por ocasião da guerra do Iraque em 2003 na fórmula da „Nova Europa (Oriental)“ e da „Velha Europa (Ocidental)“. Os países da Europa Central e Oriental, como a Polónia, os Estados Bálticos, a Bulgária, a Roménia ou a Eslováquia, tendem a formar alianças estreitas com os EUA, pela mesma razão que muitos países da América Central e do Sul, como a Nicarágua ou a Venezuela, tendem a formar alianças estreitas com a Rússia ou a China – por medo das grandes potências imperiais na sua vizinhança imediata.

A Europa Central Oriental, que juntamente com Washington, Londres e Kiev está actualmente a pressionar o governo alemão a desistir da sua „contenção“ na actual espiral de escalada militar, não é apenas impulsionada por um medo do imperialismo russo, que por vezes se transforma em pânico. É também o receio de uma divisão de poder político na Europa Central Oriental entre Moscovo e Berlim, que é fácil de evocar, especialmente na Polónia, uma vez que foi recentemente mantida viva pelo gasoduto Nord Stream 2 no Mar Báltico. A actual escalada militar, em que a Ucrânia está a tornar-se um campo de batalha para as grandes potências, destina-se não só a enfraquecer a Rússia, mas também a impedir uma aproximação entre os vizinhos ocidentais e orientais dominantes.

Para os EUA em declínio, cujos processos de desintegração sócio-económica estão a assumir pouco a pouco dimensões tardo-soviéticas, a estratégia de escalada consiste principalmente em deslocar a frente entre o seu próprio sistema de aliança e o do seu concorrente euro-asiático o mais para leste possível. As manobras – iniciais – de Berlim expressam mais uma vez a atitude ambivalente das elites funcionais alemãs em relação à Rússia, em que o confronto pode andar de mãos dadas com a cooperação. Os „eurasianos“ amigos da Rússia, com o gasoduto do Mar Báltico como projecto central falhado, são contrariados pelos „atlantistas“ que, em cooperação com os EUA, se preocuparam principalmente em impedir a formação de um projecto rival a leste da UE, a União Eurasiática promovida por Putin – entre outras coisas, apoiando o derrube do governo em Kiev em 2014.


Com a continuação da lógica de escalada que ambos os lados perseguem, o perigo de uma troca nuclear de golpes, de uma guerra nuclear que ameaça a civilização, está evidentemente a aumentar. As enfermas forças armadas da Rússia, expondo a megalomania do Kremlin, só podem avançar a passo de caracol em direcção aos seus objectivos reduzidos no leste e sul da Ucrânia após a derrota fora de Kiev. Nada expõe o fracasso da modernização das forças armadas russas de forma mais segura do que as ameaças de guerra nuclear do Kremlin e o correspondente discurso público nos media estatais russos, onde a guerra nuclear já está a deixar de ser tabu.

O podre imperialismo russo, atormentado pela agitação, desindustrialização e divisão social, está encostado à parede no pântano ucraniano, para onde uma intransigente NATO o atraiu – e não há uma saída clara desta guerra sem uma pesada derrota para um dos dois lados. As concessões territoriais ao Kremlin, que este último poderia vender como uma vitória, levariam ao enfraquecimento duradouro da NATO, enquanto um regresso às condições pré-guerra significaria provavelmente o fim de Putin a médio prazo.

Não há uma saída fácil, porque ambas as partes em conflito têm muito em jogo – e porque ambos os lados foram literalmente conduzidos pela crise mundial do capital para esta guerra, que se destina a colmatar as distorções internas com a expansão externa: desde as revoltas no quintal da Rússia (Bielorrússia, Cazaquistão), à crescente dinâmica da inflação nos EUA e ao choque que a eleição do populista de direita Donald Trump, amigo de Putin, deixou nas elites funcionais neoliberais de lá. As montanhas sempre crescentes da dívida global, a crescente instabilidade política que pode ser explorada para intervenções, as crescentes distorções climáticas – estas consequências tangíveis da crise do capital, que na compulsão ilimitada para crescer está a atingir os seus limites internos e externos de desenvolvimento num mundo finito, estão a fazer com que as grandes potências caiam umas sobre as outras.

No entanto, este imperialismo de crise também faz com que a esquerda, que até agora apenas reproduziu o frente a frente e a divisão das elites funcionais alemãs, se depare com os limites de uma política imanente ao sistema, de um „processamento“ reformista das contradições crescentes. É a escolha entre armas pesadas e armas nucleares, entre a colaboração com o imperialismo russo, tal como propagada pelas forças da frente transversal na franja direita da esquerda, ou o belicismo dos „atlantistas“ liberais de esquerda, que encorajam a escalada. Então o Sul da Ucrânia, a Transnístria e a Moldávia deverão ser atribuídas ao Kremlin, ou antes queremos arriscar a Terceira Guerra Mundial?

Em vez de se ficar atolado nesta aporia da política de crise capitalista relacionada com a crise, poderia fazer mais sentido levar finalmente a sério o processo de crise global que está em pleno andamento, o qual não permitirá que a guerra sobre a Ucrânia seja seguida por uma „ordem“ pós-guerra, e também compreender uma possível luta pela paz como um momento parcial de uma luta de transformação. As questões, a consciência e as discussões associadas à práxis de esquerda mudariam então fundamentalmente. Em vez de se resvalar para o papel de generais de castelos de areia e de tagarelas de think tank, seriam procuradas e promovidas as constelações de crise e as forças que possam promover um curso emancipatório da inevitável transformação do sistema num pós-capitalismo não distopicamente localizado num deserto pós-nuclear.

Original “Waffen oder Atomwaffen?” Publicado em Neues Deutschland, 29.04.2022. Tradução de Boaventura Antunes

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