RDA SEM SOCIALISMO

Será que os crescentes estrangulamentos na oferta e falhas no abastecimento estão a tornar-se a nova normalidade na continuada crise capitalista tardia?
Tomasz Konicz – 14.10.2021, Tradução de Boaventura Antunes


De que mais precisa urgentemente o mundo à beira do colapso climático? Mais carvão, é claro! Há alguns dias, a liderança em Pequim ordenou que a produção de minas de carvão na República Popular fosse rapidamente aumentada para contrariar os continuados cortes de electricidade e escassez de energia. (1) Setenta e duas minas de carvão na Mongólia Interior receberam ordens das autoridades locais para aumentar a produção em cerca de 98 milhões de toneladas, o que equivale aproximadamente a 30 por cento da produção mensal de carvão da China. A „oficina do mundo“ capitalista de Estado é de longe o maior produtor e consumidor mundial de carvão, (2) tendo a sua dinâmica de crescimento vertiginoso das últimas duas décadas sido alimentada triplicando o consumo de carvão. (3)

Para além do conflito geopolítico com a exportadora de carvão Austrália, (4) cujas minas exportaram uma grande parte da sua produção para a República Popular até há alguns anos, foram sobretudo as primeiras medidas tímidas de Pequim para travar a crise climática que contribuíram agora para os cortes de produção e de energia na China. Em Abril, o governo chinês anunciou a sua intenção de limitar este ano o consumo de carvão a 56% do consumo total de energia de quase cinco biliões de toneladas de equivalente carvão. (5) Além disso, várias minas de carvão na China tiveram de reduzir a produção devido a padrões de segurança mais elevados. A tentativa de Pequim de desacoplar o consumo de energia da combustão do carvão teve assim de ser abandonada por enquanto.
Em todo o caso, a República Popular continua a construir novas centrais eléctricas alimentadas a carvão – os planos actuais prevêem 43 instalações, cujo funcionamento deverá aumentar as emissões de CO2 da China em 1,5%. (6) Isto não é uma contradição com os planos acima mencionados, uma vez que Pequim continua a assumir que a procura de energia irá aumentar rapidamente. Com o rápido aumento do consumo de energia, a quota do carvão pode diminuir se este crescer mais lentamente do que o consumo global. Além disso, a procura de electricidade na China na primeira metade de 2021 já ultrapassou os níveis pré-pandémicos de 2020, pelo que regulamentações governamentais mais rigorosas em matéria de emissões conduziram a restrições no consumo de electricidade. (7)
É pura loucura expandir a produção de carvão na plenamente implantada crise do clima – mas as crescentes contradições do modo capitalista de economia, com a sua compulsão fetichista à valorização, fazem com que este processo de autodestruição ecológica pareça ser um constrangimento economicamente lógico. Na China – onde o partido estatal não pode, como nas democracias ocidentais, ser simplesmente votado para fora do poder, mantendo o sistema económico – isto é particularmente claro: as falhas de energia em cerca de 20 províncias da „oficina do mundo“ levaram até agora a cortes de produção em muitas empresas ávidas de energia, pelo que as previsões de crescimento para este ano tiveram de ser reduzidas. Segundo as previsões dos bancos americanos, a escassez de electricidade reduziria o crescimento económico deste ano – uma expressão do movimento de valorização de capital – na República Popular de 8,2 para 7,8 por cento. (8 ) O elevado crescimento económico, no entanto, constitui a base económica da legitimidade política do governo do Partido „Comunista“ da China. O PC simplesmente não pode permitir-se uma recessão económica e uma perda de prosperidade, se quiser manter o seu monopólio do poder sem contestação.
A Índia – o segundo maior consumidor mundial de carvão depois da China – enfrenta um dilema semelhante. Embora os habitantes do subcontinente indiano tenham agora de suportar ondas de calor que ameaçam a vida, (9) o país emergente está agora a debater-se com a escassez da oferta do combustível fóssil prejudicial ao clima. (10) Os cortes de energia ameaçam simplesmente a recuperação económica do país, que gera cerca de 70% da sua electricidade a partir do carvão. Se a Índia quiser continuar a „crescer“ e a trazer milhões de assalariados para a valorização do capital, tem de queimar mais carvão – caso contrário, existe uma ameaça de novas ondas de pauperização.
Também no Brasil, a procura no mercado de combustíveis fósseis está a aumentar. Aqui é a crise climática plenamente desenvolvida que leva à necessidade de queimar ainda mais combustíveis fósseis. (11) A seca prolongada no país emergente, outrora caracterizado por um clima de floresta tropical, tem em grande parte prejudicado a produção de energia hidroeléctrica, obrigando o Brasil a importar enormes quantidades de gás natural dos EUA. As importações brasileiras, além disso, farão subir os preços da energia na Europa, informou a Reuters já em Setembro, (12) uma vez que as capacidades de exportação dos EUA estão a ser plenamente utilizadas. O Brasil, onde a energia hídrica é a mais importante fonte de energia, ainda se encontra numa grave crise económica. Milhões de pessoas sofrem de fome no país emergente governado pela extrema-direita de Bolsonaro, pelo que impulsionar a economia é uma prioridade máxima – mesmo que isso signifique soprar mais CO2 para o ar.
O automatismo do dinheiro funcionando como capital, que tem de tornar-se mais dinheiro através da produção de mercadorias, é cego às consequências do seu movimento de valorização. Na crise global de abastecimento que está actualmente surgir, os limites internos e externos do capital parecem assim interagir directamente: A compulsão da valorização do capital, que, com o aumento da produtividade, tem de queimar cada vez mais energia e matérias-primas para completar o movimento de valorização, atinge os limites ecológicos e climáticos do planeta Terra. O autodestrutivo motor de valorização do capital, que de todo o modo só funciona a crédito na sua maior parte, está lentamente a ficar sem „combustível“ – tanto em termos da valorização da força de trabalho como da queima de matérias-primas.
Em parte nenhuma esta irracionalidade da produção de mercadorias inerente ao sistema mundial capitalista é mais flagrantemente expressa hoje do que na China; na „República Popular“, que precisamente devido à sua constituição capitalista de Estado representa um modelo de futura administração da crise autoritária. O boom especulativo da construção no Império do Meio (mais sobre isto na próxima edição da revista Konkret), que criou uma bolha imobiliária de proporções gigantescas agora em vias de rebentar, foi acompanhado por um consumo insano de matérias-primas e de energia. (13)
Em poucos anos, o sector da construção na China consumiu mais betão do que os EUA consumiram durante todo o século XX. As 6,6 gigatoneladas utilizadas entre 2011 e 2013 poderiam cobrir todo o Hawai de betão. O que resta dele? Cidades fantasmas construídas a baixo custo para fins especulativos, com novos edifícios a caírem em ruínas apenas alguns anos após a sua construção. Se estas propriedades construídas em febre especulativa fossem realmente adequadas para viver, poderiam fornecer abrigo a 90 milhões de pessoas (mais do que toda a população da República Federal da Alemanha). (14) A China está a ultrapassar o Ocidente a este respeito: a dinâmica de crise na República Popular está de facto a passar em movimento rápido pelas mesmas fases que as anteriormente vividas pelos EUA, apenas numa escala ainda mais alta. A bolha imobiliária que atingiu agora a maturidade foi precedida pela mania chinesa da bolsa, que culminou num crash (15) cuidadosamente contido pelos políticos em 2015. Uma sequência semelhante de crash bolsista (a bolha dot-com que rebentou em 2000) e especulação imobiliária também ocorreu nos EUA e na Europa Ocidental.
O crescimento pelo crescimento tem de esbarrar em limites num mundo finito. A produção para a lixeira e para a bola de demolição, que é a expressão do movimento de valorização do capital, parece estar a mergulhar todo o sistema mundial capitalista tardio numa crise de recursos – precisamente porque os biliões gastos para estabilizar as torres da dívida global, após o surto da pandemia, inflamaram um fogo de vista económico (16) que ameaça agora sufocar devido a estrangulamentos de abastecimento: na China ou na Índia as luzes estão literalmente a apagar-se, no Brasil as fontes de energia têm de ser importadas. Na Europa, por outro lado, os problemas crescentes no adicionar de novo „combustível“ ao processo de valorização estão a manifestar-se em preços explosivos para os combustíveis fósseis. (17)
Em última análise, a continuação da globalização capitalista está actualmente ameaçada pela intensidade crescente das crise económica e ecológica, uma vez que ela própria é uma expressão do processo de crise histórica e da conexa globalização da compulsão para a dívida sistémica, que levou à formação dos circuitos globais de défice – especialmente o circuito de défice do Pacífico entre os EUA e a China – nas primeiras décadas do século XXI. De um ponto de vista ecológico e logístico, é pura loucura fabricar uma grande parte da produção global de bens de consumo em condições ecologicamente ruinosas e transportá-la para metade do globo.
Isto só fez sentido a nível capitalista devido à crescente concorrência de crise e à conexa deslocalização das etapas de produção com utilização intensiva de energia e mão-de-obra para países emergentes – especialmente porque os custos ecológicos associados não estão incluídos no cálculo do proveito do capital. Tudo isto „valia a pena“ enquanto as bolhas da dívida no Ocidente ou na China estivessem a aumentar, e enquanto os limites ecológicos deste movimento global de combustão do capital não se manifestassem. Nos países emergentes, os seres humanos e a natureza foram e estão a ser espremidos em condições como as que poderiam ter surgido no século XIX, a fim de produzir bens para os centros cada vez mais endividados do sistema mundial. O crescente desenvolvimento da contradição interna do capital produziu assim uma globalização capitalista ecologicamente ruinosa que é extremamente vulnerável a choques externos, tais como eventos climáticos extremos ou pandemias.
A fragilidade desta insanidade ecológica, que é economicamente rentável no quadro dos circuitos de défice capitalistas globais, está a materializar-se mesmo ao largo da costa ocidental dos Estados Unidos, onde actualmente se formam verdadeiros engarrafamentos marítimos. (18) Os bens concebidos para se desgastarem rapidamente, produzidos com energia alimentada a carvão a enormes custos energéticos e transportados através do maior oceano do planeta, não podem actualmente ser descarregados a tempo devido a restrições relacionadas com a pandemia. A época das compras de Natal nos EUA está em perigo, razão pela qual o porto de Los Angeles deve agora permanecer em funcionamento 24 horas por dia. (19)
Os actuais défices de produção numa semiperiferia onde a crise climática está em pleno desenvolvimento são assim susceptíveis de exacerbar a escassez induzida pela pandemia nos centros. As cadeias de produção e de fornecimento globais de uma economia mundial capitalista condenada ao crescimento desenfreado e ameaçada de literalmente se engasgar com ele estão pouco preparadas resistir aos choques que se avizinham, que também têm as suas consequências geopolíticas. Neste momento, é motivo de riso para a Europa particularmente o Reino Unido, que está a enfrentar sérios problemas logísticos após o Brexit motivado por motivos nacionalistas, depois de muitos trabalhadores migrantes europeus terem deixado a ilha.
Mas as coisas não parecem muito melhores no centro da Europa: A economia alemã orientada para a exportação, em particular, já está a sentir de forma muito clara a nova escassez capitalista, que costumava ser prontamente associada ao socialismo realmente existente. Ainda há bananas na República Federal – mas é diferente a situação de placas gráficas, chips de computador e componentes electrónicos para a indústria automóvel, que está a sofrer de uma escassez aguda de componentes.
De qualquer modo, a indústria queixa-se cada vez mais da escassez de todo o tipo de materiais e produtos primários na decrépita má gestão capitalista. (20) Há falta de chapas de aço, madeira, bombas, ventiladores, ou mangueiras hidráulicas. Em inquéritos à indústria realizados em Agosto, 70% das empresas de construção de máquinas disseram estar a sofrer de um fornecimento insuficiente de produtos primários e matérias-primas, em comparação com apenas 40% em Abril. Entretanto, quase todas as empresas são afectadas, como foi noticiado no início de Setembro. O fornecimento de aço e componentes electrónicos é particularmente difícil. A situação de abastecimento é igualmente tensa em todo o sector de fabrico – desde a indústria automóvel até à indústria do mobiliário. Também aqui, 70 por cento de todas as empresas e corporações se queixaram em inquéritos sobre a falta de abastecimento de matérias-primas, recursos e produtos primários. A escassez de materiais já contribuiu para o abrandamento económico na República Federal.
O sujeito automático da valorização do valor conhece apenas uma resposta para todos os problemas resultantes do movimento de acumulação: o crescimento. A ideologia burguesa consiste em legitimar este processo, realmente abstracto e reacoplado a si mesmo, de combustão do mundo concreto de acordo com os requisitos actuais: Por exemplo, sob a forma de „capitalismo verde“ e do Green New Deal, incluindo justamente a mobilidade eléctrica massivamente propagada na Alemanha. Mas a ilusão do capitalismo ecológico, de continuar o processo de valorização ilimitada do capital numa forma amiga do clima – por exemplo sob a forma de mobilidade eléctrica – também se ridiculariza desde logo pelo facto de o crescimento sem fim não ser viável num planeta limitado. Independentemente do facto de a produção de carros eléctricos consumir mais energia do que a de carros a gasolina, (21) a questão dos recursos numa produção em massa em constante crescimento, como é inerente ao movimento de acumulação de capital, não está de modo nenhum resolvida.
Já existem sinais de estrangulamentos de abastecimento (22) de lítio, níquel, cobalto, cobre e terras raras. (23) É uma ilusão típica acreditar que existem matérias-primas suficientes para a mobilidade eléctrica porque podem ser localizadas na Terra. As matérias-primas têm de ser extraídas e processadas a um custo de capital muito elevado e com enormes custos ambientais (lítio), e muitos dos métodos de extracção e armazenamento actualmente em discussão só seriam rentáveis a preços muito elevados. Mas mesmo uma expansão maciça da extracção dificilmente poderá fornecer as quantidades necessárias para o processo de valorização do capital – o lítio, cuja procura na indústria automóvel alemã deverá aumentar dez vezes até 2030, não é petróleo bruto. (24) No caso do cobre, a procura da indústria automóvel alemã deverá aumentar em três milhões de toneladas no decurso da viragem na mobilidade. Uma explosão de preços é, portanto, inevitável. E alguém teria de ser capaz de pagar e comprar estas lixeiras móveis de resíduos perigosos, cuja reciclagem em breve incorrerá em custos enormes, (25) para que o circuito de valorização do capital encontrasse uma conclusão no mercado.
As semelhanças entre a agonia do socialismo de Estado realmente existente do tipo da Europa de Leste e a actual fase de crise são impressionantes – incluindo o papel crescente do Estado como administrador da crise. A RFA está actualmente a transformar-se numa RDA, mas sem as conquistas sociais do socialismo. Como é que o socialismo de Estado geriu a sua economia de escassez? Através do racionamento, através de filas de espera no consumidor e listas de espera de anos e décadas para bens duradouros, até e incluindo a emissão de senhas de racionamento em fases de crise manifesta (Polónia, Roménia nos anos 80).
Mas, com o curso da crise, as analogias terminam, uma vez que o capitalismo tardio, preso na compulsão do crescimento, não pode deixar de ser parte nesta crise de abastecimento, até uma implosão sistémica. A estagflação, a pauperização massiça nos centros, a fome na periferia e um subsequente colapso global da procura são as fases da crise – até que o equilíbrio do mercado seja restaurado na miséria, ou que as crescentes distorções económicas e ecológicas culminem numa grande guerra.
(1) https://edition.cnn.com/…/china-coal-power…/index.html
(2) https://www.worldometers.info/…/coal-production-by…/…
(3) https://www.statista.com/…/chinese-coal-consumption-in…/
(4) https://www.9news.com.au/…/bd61a209-aca6-4db8-8c57…
(5) https://www.spglobal.com/…/042621-china-set-to-cap-coal…
(6) https://time.com/6090732/china-coal-power-plants-emissions/
(7) https://www.handelsblatt.com/…/energie…/27664450.html…
(8 ) https://www.manager-magazin.de/…/china-stromausfaelle…
(9) https://www.aljazeera.com/…/india-severe-heatwave…
(10) https://www.cnbc.com/…/coal-shortage-india-could-soon…
(11) https://www.aljazeera.com/…/brazil-warns-of-energy…
(12) https://finance.yahoo.com/…/brazils-record-lng-imports…
(13) https://www.konicz.info/?p=2977
(14) https://www.ft.com/…/ea1b79bf-cbe3-41d9-91da-0a1ba692309f
(15) https://www.heise.de/…/China-Der-namenlose-Aktiencrash…
(16) https://lowerclassmag.com/…/oekonomie-im-zuckerrausch…/
(17) https://finance.yahoo.com/…/energy-crisis-gripping…
(18) https://www.nau.ch/…/mega-schiffstau-gefahrdet-us…
(19) https://www.spiegel.de/…/wegen-lieferengpaessen-hafen…
(20) https://www.tagesschau.de/…/exporte-materialmangel-101…
(21) https://www.heise.de/…/Mogelpackung-Elektromobilitaet…
(22) https://www.tagesschau.de/…/nickel-e-autos-batterien…
(23) https://www.manager-magazin.de/…/elektroauto-bei…
(24) https://www.stern.de/digital/technik/lithiumkrise–experte-erklaert–wie-der-rohstoffmangel-die-energiewende-in-gefahr-bringt-30536626.html
(25) https://www.theguardian.com/…/electric-car-batteries…
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Original “DDR minus Sozialismus” in https://www.konicz.info/?p=4566, 14.10.2021. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.konicz.info/?p=4566

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