26.08.2021
Não é possível evitar as piores consequências da catástrofe climática sem ultrapassar o capital com a sua compulsão de valorização
Tomasz Konicz, Tradução de Boaventura Antunes.
O debate sobre o clima é sem dúvida o campo de batalha mais deprimente da campanha eleitoral para o Parlamento Federal, já que aqui o abismo entre a ideologia e a realidade atingiu agora dimensões alucinantes. As medidas em discussão pública estão tão distantes do que seria necessário para evitar o colapso sócio-ecológico que involuntariamente vem à memória a fase final do socialismo realmente existente, quando os esclerosados aparelhos do Estado e do partido se revelaram absolutamente incapazes de mudar de rumo para combater a enfermidade das suas sociedades.
Na verdade o caso é muito pior, porque agora trata-se simplesmente da pura sobrevivência da humanidade: no capitalismo tardio da República Federal da Alemanha, os Verdes estão a ser pressionados como „partido da proibição“ por se estar discutir os limites de velocidade nas auto-estradas, o aumento dos preços dos combustíveis ou a abolição dos voos de curta distância – ao mesmo tempo que a crise climática já está a assumir dimensões catastróficas e a ficar simplesmente fora de controlo. O que se tornou evidente não só durante as inundações sem precedentes no sudoeste da Alemanha, mas também durante a onda de calor extremo no noroeste dos EUA e Canadá, que causou danos irreparáveis aos ecossistemas locais. (1) Seja a Amazónia, que já não funciona como sumidouro de CO2, a camada de gelo do Árctico, ou uma grande parte do permafrost no extremo norte – em todo o lado se corre o risco de ultrapassar pontos de viragem que vão fazer descarrilar completamente o sistema climático, enquanto a Alemanha discute automóveis eléctricos de alta potência e voos baratos para Malle. O mundo está literalmente a sair dos eixos: devido ao degelo crescente, o eixo terrestre do nosso planeta está a deslocar-se. (2)
Ao mesmo tempo, a relação de capital é incapaz de contrariar eficazmente esta crise existencial devido à sua compulsão de valorização. Os factos falam aqui uma linguagem clara, uma vez que as emissões de CO2 têm aumentado todos os anos no século XXI – com excepção dos anos de crise de 2009 e 2020. E isto não irá mudar dentro do sistema mundial capitalista: A Agência Internacional de Energia (AIE) publicou em Abril uma previsão das emissões (3), segundo a qual as emissões globais de CO2 aumentariam provavelmente 5% este ano, quase compensando a quebra histórica de 2020, quando as emissões de gases com efeito de estufa diminuíram 7% devido à quebra económica que acompanhou a pandemia. De acordo com a AIE, espera-se que este ano as emissões sejam apenas „ligeiramente“ inferiores aos níveis de 2019.
Além disso, espera-se também que as emissões de gases com efeito de estufa continuem a aumentar em 2022, uma vez que o tráfego aéreo global, actualmente ainda em grande parte adormecido devido à pandemia, deverá retomar plenamente no próximo ano. Isto poderia aumentar as emissões de CO2 em mais dois pontos percentuais. Conclusão: Apesar de toda a apologética da journaille, (4) o capitalismo demonstrou empírica e impressionantemente que só pode „reduzir“ as emissões globais ao preço de uma crise económica mundial (como referi, foi o que aconteceu também em 2009).
O abismo entre o discurso da política climática na RFA e a realidade do clima é assim simplesmente absurdo. E não é apenas a merda da identidade em crescendo induzida pela crise que serve novas narrativas de direita – propagadas pela AfD, CDU e Wagenknecht – e bloqueia a visão da catástrofe climática agora claramente evidente. A monstruosidade da ideologia capitalista tardia, que revela o carácter da relação de capital como um verdadeiro culto da morte, é já evidente num olhar de relance à capa da Spiegel, um dos principais media da RFA, que na edição 22/2021 (5) mostrou os candidatos de topo dos Verdes chegados a uma „realidade“ tempestuosa contra a qual os seus ideais se desfizeram. A perversa torção deste princípio da realidade ideologicamente distorcido consiste em que aqui não é a crise climática objectiva que se torna a realidade determinante, mas sim os constrangimentos absurdos da desordem económica capitalista tardia, com a sua ideologia veiculada pelos mass media. Um olhar sobre as paisagens de escombros na Renânia do Norte-Vestefália revela este disparate, que constitui um perigo público e actua como base do discurso a maioria das vezes não expressa, especialmente no „centro“ da sociedade e da opinião publicada.
Mas é precisamente esta naturalização da dominação capitalista, comum no mainstream, que carrega um grão de verdade distorcida, uma vez que a dominação no capitalismo é, de facto, sem sujeito e, portanto, parece natural. A relação de capital como abstracção real constitui uma dinâmica própria ao nível global do conjunto da sociedade, caracterizada por contradições crescentes, em que, por um lado, a valorização do capital enquanto produção de mercadorias aparece como um constrangimento factual do qual depende a reprodução de toda a „sociedade do trabalho“ – sob a forma de salários e impostos. Por outro lado, é precisamente neste processo de valorização em constante expansão que o mundo inteiro – sob a forma de recursos e energia – é literalmente queimado, em nome do „crescimento“ permanentemente invocado de valores monetários abstractos.
Acima de tudo, quanto maior for a produtividade da máquina capitalista de mais-valia, maior será a sua fome de recursos, uma vez que o trabalho assalariado é a substância do capital. Assim, na crise climática, dois tipos de constrangimentos factuais colidem um com o outro: o constrangimento factual objectivamente dado da redução mais rápida possível das emissões de CO2 e o „constrangimento de crescimento“ do capital, para o qual todo o mundo concreto é apenas o material da valorização abstracta. Esta incompatibilidade entre capital e defesa do clima pode ser observada, por exemplo, na indústria da energia solar da Califórnia, que é agora demasiado barata (6) para ser rentável. Devido à deflação do preço da electricidade nos descontrolados mercados capitalistas, os subsídios estão agora a ser novamente discutidos na Califórnia. (7) A percentagem de trabalho assalariado que entra na produção de células solares é simplesmente demasiado baixa para iniciar um novo regime de acumulação segundo o modelo do fordismo – o que também leva ao facto de a necessária reconstrução de infra-estruturas, por exemplo do sector energético, quase não progredir.
O fetichismo do capital, tal como formulado por Robert Kurz, (8) revela-se precisamente na crise climática, uma vez que mesmo os capitalistas mais poderosos são incapazes de a evitar – e assim também de preservar a sua base de negócios. Em vez disso, os egomaníacos multimilionários produzidos pela crise de sobreacumulação do capital voam em órbita em pilas metálicas (9) perseguindo seus febris sonhos de fuga para colónias lunares e marcianas. Em última análise, isto significa que esta dinâmica fetichista de valorização do capital continuará com o seu processo de queima mundial, até conduzir a sociedade, que constitui a sua necessária fase de passagem, ao colapso sócio-ecológico, e assim expirar – ou até ser passada à história por um movimento emancipatório. A emancipação neste contexto significa ultrapassar o fetichismo social, no qual as pessoas são sujeitas aos assassinos constrangimentos factuais do capital, a fim de passar à configuração consciente da reprodução social no decurso de uma transformação do sistema.
A ultrapassagem do capital é assim uma necessidade de sobrevivência. Consequentemente, a questão climática também não é uma questão de distribuição de encargos, nem uma questão de segurança social. É o processo de valorização global do capital, no qual os recursos e a energia são queimados para fazer do dinheiro mais dinheiro, que tem de ser ultrapassado. A questão é o todo. Se isto não for bem sucedido, é inevitável a deriva para a barbárie, que degradaria Auschwitz a um mero prelúdio histórico, pois partes da Terra tornar-se-iam simplesmente inabitáveis num futuro previsível. Tendo em conta a crise climática avançada, o objectivo estratégico das forças progressistas só pode ser o de tentar sobreviver aos futuros efeitos catastróficos da crise climática que aí vem, no quadro de uma transformação do sistema sem quebra da civilização.
Na actual campanha eleitoral, os cidadãos alemães – como tantas vezes no establishment político burguês – têm assim apenas uma escolha fictícia, também no campo literalmente existencial da política do clima, entre a pulsão de morte derivando para o fascitóide de um fóssil autoritário da CDU como Laschet e a mentira do capitalismo ecológico propagada pelos Verdes. O modelo de negócio dos Verdes baseia-se em equipar a valorização compulsiva do capital – o movimento tautológico de multiplicação sem fim do dinheiro através da produção de mercadorias – com uma derivação ecológica, de modo que mesmo na crise climática manifesta possam agarrar-se justamente ao sistema que diariamente continua a alimentá-la cada vez mais.
Através de elevados investimentos estatais, este Green New Deal pretende criar as bases infra-estruturais de um novo regime de acumulação „ecológico“, que, no entanto, permanece ilusório, devido aos elevados níveis de produtividade global, como ilustrado, por exemplo, pela onda de falências na indústria solar alemã após o fim do regime „Verde-Rubro“. A irracionalidade dos planos actuais, por outro lado, salta à vista: No caso da indústria automóvel, por exemplo, isto equivale aos sonhos febris de influencers verdes, que constituem um perigo público, segundo os quais 50 milhões de automóveis eléctricos (10) devem ser construídos no meio da catástrofe climática em curso – mesmo que no caso os estudos sobre as emissões de CO2 durante a sua produção tenham de ser mascarados. (11)
A propaganda de influencers bem relacionados como Jan Hegenberg, que consegue vender a produção em massa de automóveis eléctricos como um feito de política climática no órgão da frente transversal Telepolis, é assim, por um lado, como que um moderno comércio de indulgências, em que a defesa do clima assume a forma de mercadoria. (12) O snob da classe média alemã quer ter a consciência tranquila quando capta subsídios e compra um monstro eléctrico de muitos cavalos, cuja produção emite muitas toneladas de CO2. Por outro lado, o processo de queima do mundo da abstracção real valor – a acumulação irracional e sem fim de trabalho morto, em que as mercadorias acabam por ser produzidos para o aterro – é feito passar como um acto de defesa do clima.
A ideologia de um capitalismo „verde“ desempenhará de futuro um papel central na legitimação do modo de produção capitalista, tendo em conta os fenómenos de crise ecológica que se acumulam globalmente. A crença errada num capitalismo ecologicamente „sustentável“, tal como propagada pelos „Verdes“, pode assim contribuir para transformar o sentimento generalizado de que „isto não pode continuar assim“ num compromisso para a continuação precisamente deste moinho de degraus capitalista. Os apologistas „verdes“ do capitalismo podem facilmente transformar a suspeita de que o modo de produção capitalista está a atingir os seus limites ecológicos a nível mundial num apelo a um „capitalismo verde“. Esta abordagem ideológica é característica de um meio político que vendeu a extensa privação de direitos dos supérfluos no mercado de trabalho ao abrigo das „leis Hartz IV“ sob o cínico slogan „promover e exigir“, e legitimou a primeira guerra de agressão na história alemã do pós-guerra contra a República Federal da Jugoslávia como uma „intervenção humanitária“.
O íntimo abraço daí resultante entre a economia e os Verdes foi objecto de um relatório no Handelsblatt no início do ano. (13) O caminho do antigo partido ecologista para o poder passa através dos lobbies do capital, onde os funcionários do partido há muito ocupam „interfaces importantes entre negócios e política“. Há apenas alguns anos, a filiação partidária nos Verdes era um „critério de exclusão“ na máquina de pressão política, mas agora é um „critério claro de qualificação“, especialmente nas associações industriais, porque é difícil „acusar um Verde de não levar a sério a protecção do clima“. Quem teria pensado que na democracia capitalista o caminho para o poder passa pelos lobbies económicos?
As forças de esquerda e progressistas, em vez de se oferecerem como „correctivo social“ do ilusório Green New Deal de um oportunista Partido Verde que legitimou a guerra de agressão contra a Jugoslávia com Auschwitz, (14) deveriam abordar ofensivamente a percepção das próximas convulsões que há muito se faz sentir entre a população, e procurar formas de conduzir a transformação objectivamente pendente do sistema numa direcção emancipatória, em confronto com a barbárie iminente. Os Verdes têm de ser finalmente postos sob pressão pela esquerda com argumentos claramente anti-capitalistas – precisamente porque os acima mencionados constrangimentos materiais da crise climática assim o exigem.
A dinâmica da alteração climática é tão indiferente às tácticas oportunistas da campanha eleitoral como aos cálculos de coligação, assim como às sensibilidades dos snobs da classe média nas suas casas unifamiliares, ou aos objectivos de vendas da VW e da Daimler. Ela avança sem ser afectada pelo estado de consciência das massas nem pelo estado do discurso sobre a questão climática transmitido pelos media. A esquerda, se não quiser cair na armadilha da frente transversal de Wagenknecht (15) e quiser continuar a agir progressivamente, deve assim, antes de mais nada, dizer o que se passa: que o progresso só é possível para além do capital, que são inevitáveis profundas convulsões, cujo curso tem de ser literalmente objecto de luta. Esta linguagem simples é necessária não porque traga vantagens nas campanhas eleitorais ou votos nas urnas, mas porque é uma questão de sobrevivência colectiva da espécie humana fazer passar à história o capital como abstracção real fetichista que é.
Será decisivo deixar de permitir que a própria existência seja objecto de cálculo prévio, mas exigir a satisfação das necessidades sociais, materiais e ecológicas contra a sua viabilidade financeira. O facto de toda e qualquer coisa ter de passar pelo buraco da agulha da valorização tem de ser radicalmente questionado. A loucura das formas sociais dominantes tem de ser tornada consciente e lembrada contra aqueles que acham que os problemas globais podem ser resolvidos justamente através destas formas. Isto significa que na produção, por exemplo, o foco tem de estar em todos os fluxos de material e energia e não nos retornos esperados. A „sustentabilidade“ de uma produção só pode assim ser atestada quando as condições e consequências da produção, desde a extracção de matérias-primas até à sua eliminação, são planeadas e correspondentemente mediadas em termos ecológicos com o „processo de metabolismo com a natureza“ (Marx). (16) É óbvio que um ponto de vista de economia empresarial é fundamentalmente incapaz disso (como se pode ver facilmente no automóvel eléctrico).
Assim, não se trata mais da habitual actuação social-democrata, como médico à cabeceira do leito de enfermo do capital, mas trata-se de sondar formas concretas de conduzir a inevitável transformação numa direcção progressiva, na qual as pessoas aprendam finalmente a configurar conscientemente o processo de reprodução social.
(1) https://www.commondreams.org/news/2021/07/06/scientist-says-bc-heat-wave-caused-over-1-billion-tidal-creatures-cook-death
(2) https://www.scinexx.de/news/geowissen/klimawandel-verschiebt-die-erdachse
(3) https://www.theguardian.com/environment/2021/apr/20/carbon-emissions-to-soar-in-2021-by-second-highest-rate-in-history
(4) https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=aktuelles&index=0&posnr=733. Em Português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz11.htm
(5) https://www.spiegel.de/spiegel/print/index-2021-22.html
(6) https://www.technologyreview.com/2021/07/14/1028461/solar-value-deflation-california-climate-change/
(7) https://thebreakthrough.org/articles/quantifying-solar-value-deflation
(8) https://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=16&posnr=135&backtext1=text1. Em Português: http://www.obeco-online.org/rkurz86.htm
(9) https://slate.com/technology/2021/07/bezos-blue-origin-resembles-penis-rocket-scientist-explains-why.html
(10) https://www.heise.de/tp/features/Wie-wir-in-Deutschland-50-Millionen-Elektroautos-aufladen-koennen-6030221.html
(11) https://www.heise.de/tp/features/Mogelpackung-Mogelpackung-6004821.html
(12) https://graslutscher.de/meine-unerfreuliche-kurzstreckenfahrt-im-erdoelauto
(13) https://www.handelsblatt.com/politik/deutschland/40-jahre-nach-parteigruendung-die-gruenen-und-die-wirtschaft-der-weg-zur-macht-fuehrt-ueber-die-lobbys/25421114.html
(14) https://www.swr.de/swr2/wissen/archivradio/aexavarticle-swr-45590.html
(15) https://www.kontextwochenzeitung.de/debatte/525/im-wirtschaftswunderland-7450.html
(16) https://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=34&posnr=74&backtext1=text1.php. Em português: http://www.obeco-online.org/rkurz108.htm
Original Systemtransformation oder Barbarei. Ohne Überwindung des Kapitals mit seinem Verwertungszwang ist ein Abwenden der schlimmsten Folgen der Klimakatastrophe unmöglich in www.exit-online.org, 20.08.2021. Tradução de Boaventura Antunes.