ILUSÃO E CRISE. O MUNDO COMO A VONTADE DOS CONSPIRADORES

Tomasz Konicz, 20.01.202. Tradução de Boaventura Antunes

Medida pelo seu conteúdo, a ilusão em massa em tempos de crise pode parecer risível. Como fenómeno social, no entanto, deve ser levada a sério. Pois as ideologias da conspiração não são um corpo estranho na sociedade, diz o nosso autor. Pelo contrário, são uma forma desesperada do centro neoliberal em erosão.

À superfície, a cena dos „pensadores transversais“ e dos negadores do coronavírus parece ser algo como uma anomalia: Com um discurso de ódio abstruso e teorias de conspiração bizarras, as suas posições contrastam fortemente com o discurso público. No movimento que vê um grupo de todo-poderosos a puxar os cordelinhos por trás da pandemia, as ideias mais loucas estão a espalhar-se: desde o alegado inoculador por microchip Bill Gates (1) ao complexo Q-Anon (2), passando pelos sussurros de um reino reptiliano ou satanista – a cena está aberta a qualquer disparate que imagine o mundo capitalista tardio e em crise como uma eterna conspiração.

Que a ilusão em massa – por mais ridícula que possa parecer (3) – é altamente perigosa ficou claro e não só pelo assalto ao Capitólio em Washington por militantes de extrema-direita. Fantasias semelhantes de violência e subversão também podem ser encontradas no seio do movimento alemão (4).

Em Baden-Württemberg, por exemplo, Heinrich Fiechtner, membro do parlamento desse Estado federado e antigo membro da AfD, está activo como uma figura permanentemente presente no movimento „Querdenken“ [Pensar transversal], no qual, entre outras coisas, circulam fantasias de assassinato contra jornalistas críticos (5). O médico praticante, que é notório pelos seus escândalos, teve de ser levado várias vezes pela polícia da plenário do parlamento, depois de ter sido barrado das sessões por provocações e discursos inflamatórios. No Telegram Gruppe de Fiechtner, eram ansiosamente esperados „perpetradores solitários“ para „meter uma bala em cada político do governo“, enquanto o próprio deputado minimizou a tempestade parlamentar de direita em Washington como um „evento de espectáculo“: „Quando são passadas as marcas, os cidadãos têm de expulsar os violadores da lei, os violadores da constituição“. E é aí que ele acredita que é apropriado „talvez tomar a coisa a sério“. Além disso, o ideólogo da conspiração de direita gosta de chamar nazis aos seus opositores políticos, tais como chamar „discípulos de Josef Mengele“ aos adeptos da vacinação.

Tais afirmações arrepiantes, que vão a par de uma banalização do reinado de terror nazi, não devem ser levadas a sério como base para uma discussão – em contraste com o fenómeno social da insanidade maciça, que se espalha sem dúvida em tempos de crise e deve ser relacionado com as suas causas sociais.

Há muito que é comum que bodes expiatórios seleccionados, por mais absurdas que as acusações contra eles possam parecer em pormenor, sejam considerados responsáveis por desenvolvimentos de crise: O judeu George Soros financia e planeia os fluxos globais de refugiados, o multimilionário Bill Gates controla a pandemia de coronavírus, uma poderosa conspiração climática inventa por ganância de lucro o aquecimento global provocado pelo ser humano – é tão fácil descarregar as tendências de crise, que se baseiam em problemas reais do capitalismo tardio, em vilões gerais imaginários por meio de uma narrativa de conspiração. A questão habitual do “cui bono” („a quem beneficia isto?“) está também presente em partes da esquerda política (6), onde representa um ponto de contacto com a ilusão de massas da nova direita.

Conspirações reais como modelos para projecções

Mas o que é que faz tantas pessoas acreditar, não só durante a pandemia de coronavírus, mas especialmente durante episódios de crise, num grupo todo-poderoso que nos bastidores puxa os cordelinhos da política, da economia ou dos meios de comunicação, a fim de dirigir o destino do mundo?

Uma característica que as várias formas de mania da conspiração têm em comum é a projecção: o pensamento conspiratório transfere concretamente experiências de dominação para o conjunto mais vasto da sociedade. Pois, desde o surgimento da dominação do homem sobre o homem, houve verdadeiras conspirações (7). Elas formam uma das mais antigas técnicas para conquistar e manter o poder. Seja na luta por esquemas de carreira na política, ou em práticas empresariais duvidosas na busca do maior retorno possível, ou mesmo a nível estatal, como mostram as maquinações geopolíticas no escândalo Watergate (a propósito, é por isso que as ideologias da conspiração são tão populares no espectro político populista: projecta-se a própria experiência na negociação de posições para a sociedade como um todo). Todas estas são experiências quotidianas sobre as quais podem ser construídas ideologias da conspiração.

Ao transferir estas práticas conspiratórias para o sistema mundial do capitalismo, parece agora erroneamente como se ele estivesse estruturado como uma empresa, um Estado ou um partido – onde há interesses e actores concretos em todo o lado, bem como culpados concretos que são responsáveis quando algo corre mal. Nesta forma de pensar, uma crise, uma pandemia e, em última análise, qualquer outro delito em acontecimentos mundiais de qualquer tipo deve, portanto, ter sido causado por bandidos de algum tipo, desde que a irracionalidade subjacente do sistema seja ignorada.

No entanto, a devastadora destruição ambiental (8), o desemprego estrutural em massa nas regiões periféricas, a fome (9), o empobrecimento e os crescentes movimentos de refugiados não são fenómenos que possam ser explicados apenas pela incompetência ou malícia dos indivíduos. São problemas estruturais (10). De facto, a realidade social sob o capital é ainda mais assustadora do que as ideologias da conspiração mais absurdas. Não há ninguém atrás da cortina a puxar os cordelinhos em última instância para controlar conscientemente o curso dos acontecimentos. Não há ninguém sentado na cabine do maquinista da locomotiva económica a atirar-se cegamente para o abismo, para pedir emprestada uma imagem ao filósofo Walter Benjamin, que exigiu que o travão de emergência fosse puxado pelo „género humano que viaja neste comboio“.

Fantasias de omnipotência e perda real de controlo

Ironicamente, as ideologias da conspiração imaginam geralmente como sendo todo-poderosos puxadores de cordelinhos que meticulosamente orquestram eventos mundiais e os moldam de acordo com as suas ideias – enquanto a humanidade está exposta a uma perda gritante de controlo sob o capitalismo. Ao mesmo tempo, é precisamente a impotência experimentada todos os dias, o sentimento de heteronomia, da „determinação externa“ efectivamente sofrida (embora através de constrangimentos económicos) que contribui significativamente para a formação de ideologias conspiratórias. Em certo sentido, o homem capitalista tardio não é o mestre da sua própria casa social; vê-se exposto a dinâmicas sociais aparentemente naturais que permanecem incompreensíveis à consciência quotidiana.

O pouco controlo que o ser humano tem sobre o capital torna-se evidente em tempos de crise, quando mais uma vez „terramotos da bolsa ou do mercado“ devastam economias inteiras, empurram massas da população para a pobreza ou provocam a explosão de montanhas de dívidas. Actualmente, a pandemia de coronavírus ilustra de forma extrema quão pouco o circuito de valorização da economia mundial capitalista, que depende da expansão permanente, pode tolerar uma paragem ou mesmo uma desaceleração. Neste contexto, não é necessário nenhum grupo conspiratório para criar o sentimento de impotência total: em última instância, a dominação no capitalismo é sem sujeito (11). Da compulsão de crescimento da ordem económica resulta o automatismo sem limites de ter de fazer do dinheiro mais dinheiro, o que assume uma dinâmica própria autonomizada a nível da sociedade como um todo, mesmo a nível global – e do qual dependem os meios de subsistência dos trabalhadores dependentes do pagamento de salários.

A incapacidade das sociedades capitalistas tardias de moldarem conscientemente a sua própria reprodução torna-se evidente precisamente nos surtos de crise em que as contradições internas da relação de capital se manifestam. É por isso que a procura dos „culpados“ pelas distorções sociais concretas aumenta em tempos de crise, o que normalmente leva a ideologias da conspiração – muitas vezes com conotações anti-semitas.

Confusão entre aparência e essência

Os interesses concretos, as lutas pelo poder no capitalismo, no entanto, só têm lugar no quadro desta dinâmica irracional: Tanto a nível político como a nível económico giram em torno da optimização deste processo de valorização do capital que é ecológica e socialmente destrutivo. Os interesses de exploração subjectivos, „da economia empresarial“ dos capitalistas formam assim apenas a aparência exterior, que esconde a essência da dominação irracional e sem sujeito da relação de capital a nível „da economia global“.

Todas as conspirações no capitalismo tardio operam esta confusão da aparência externa com a essência interna. De acordo com a ilusão, portanto, deve haver sempre actores concretos, conspiradores, que são eles próprios considerados responsáveis por pandemias.

O exemplo actual do fornecedor da indústria automóvel Eberspächer (12), de Esslingen, pode bem esclarecer o funcionamento de uma personificação das causas de crise: São empresários concretos que deslocalizam a produção para Leste e conduzem muitos assalariados ao desemprego. A partir desta experiência de crise, onde os culpados podem ser claramente identificados, crescem quase naturalmente as ideias segundo as quais a questão é a mesma em todo o lado. A crise estrutural da indústria automóvel, que está geralmente em declínio e que, face à crescente concorrência da crise, obriga os capitalistas individuais a reduzir os custos com os meios mais brutais (custos que são precisamente pessoas no âmbito do cálculo da rentabilidade: factores de custo) é frequentemente ignorada.

Em última análise, a emergência massiça da mania da conspiração em tempos de crise é inevitável, desde que o modo económico existente não seja fundamentalmente posto em causa. Se forem escamoteadas as crescentes contradições internas que estão a conduzir o sistema mundial capitalista tardio para crises cada vez maiores, se o capitalismo for imaginado como uma formação social que funciona em princípio e está livre de contradições, então a única conclusão que resta é que deve haver alguns culpados, alguns vilões, que são responsáveis pelas crescentes distorções globais. Sem a vontade de reconhecer as causas estruturais da crise, tudo o que resta em última análise é a descida à mania da conspiração, como forma desesperada do centro neoliberal em erosão, do qual constitui de facto o produto da decomposição.

(1) https://www.heise.de/…/Die-Verbrechen-des-Bill-Gates…

(2) https://www.heise.de/…/Verschwoerungstheoretiker…

(3) https://www.youtube.com/watch?v=bCaTX7gd32E

(4) https://www.heute.at/…/attila-hildmanns-wirre-umsturz…

(5) https://www.zvw.de/…/corona-protest-mit-mordfantasien…

(6) https://www.heise.de/…/Querfront-als-Symptom-3952540.html

(7) https://www.konicz.info/?p=971

(8) https://www.kontextwochenzeitung.de/…/pfeifen-im…

(9) https://www.heise.de/…/Ideologie-in-der-Hungerkrise…

(10) https://www.heise.de/…/Kapitalismus-kaputt-4684452.html…

(11) https://www.heise.de/…/Die-subjektlose-Herrschaft-des…

(12) https://www.kontextwochenzeitung.de/…/und-dann-hartz-iv…

Original “Wahn und Krise. Die Welt als Wille der Verschwörer”. Publicado em “Kontext: Wochenzeitung” 20.01.2021. Tradução de Boaventura Antunes

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