Contexto da operação policial mais sangrenta da história do Brasil
Tomasz Konicz, 04.11.2025
É «algo novo. Brutal e violento a um nível até agora desconhecido», foi assim que testemunhas descreveram as consequências do pior massacre policial da história do Brasil.1 Cerca de 2500 polícias cercaram as favelas Complexo Alemão e Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, numa grande operação realizada em 28 de Outubro, com o objectivo de prender membros da organização criminosa Comando Vermelho. A operação, que foi acompanhada por tiroteios que duraram horas, uso de drones, incêndios e bloqueios, resultou em cerca de 130 mortos entre os moradores das favelas e quatro polícias mortos nos combates. Foram detidas 81 pessoas e a polícia apreendeu 74 armas.2
Os moradores dos bairros pobres, habitados principalmente por brasileiros negros e pardos, onde cerca de 280 000 pessoas sobrevivem num espaço muito restrito, tiveram que recolher os corpos dos mortos nas áreas baldias e florestais circundantes no dia seguinte e reuni-los numa praça central para identificação. Grande parte das mortes causadas pela polícia teria ocorrido nessas áreas baldias, onde as forças policiais montaram emboscadas, pois elas serviam anteriormente como rotas de fuga para o Comando Vermelho. Moradores e jornalistas relatam execuções, facadas e marcas de tortura nos mortos – bem como decapitações pelas «forças de segurança», que penduraram uma cabeça decepada numa árvore «como um troféu».3
Assim, a grande operação de 28 de Outubro resultou no maior massacre policial do Brasil, que de facto assume uma dimensão diferente das repressões anteriores, que culminaram em 2021 no chamado «massacre de Jacarezinho»,4 que fez 29 vítimas. A acção da polícia e dos militares teve como objectivo «maximizar o número de mortos», alertaram especialistas à imprensa brasileira.5 De qualquer modo as forças de segurança altamente corruptas e racistas do Brasil são consideradas particularmente brutais. Mais de 6000 pessoas são mortas a tiro pela polícia no Brasil todos os anos (nos EUA foram cerca de 1200 em 2024)6, sendo que três quartos dessas mortes são de afro-brasileiros.7
Início de campanha eleitoral marcado por assassinatos em massa
O responsável político por esta nova forma de violência policial assassina em massa é o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, considerado um seguidor próximo do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro. Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão após um golpe fracassado em 2022, que organizou contra o então vencedor das eleições, Lula. Por sua vez, Castro ofereceu ao filho de Bolsonaro um cargo no seu gabinete ainda em Julho.8 Em declarações públicas, Castro deixou claro que considerava a operação policial um grande sucesso. A sua administração «assume tudo o que fizemos ontem», afirmou o governador, que queria ver as «únicas vítimas» nos quatro polícias mortos.9
A extrema direita, à qual Castro pertence, há muito tempo adoptou uma lógica militar em relação às favelas, com sua criminalidade e violência, alertaram cientistas sociais,10 apresentando o alto número de mortes como um sucesso. Castro acredita que a vida dos moradores das favelas não tem valor, segundo Ignacio Cano, professor e pesquisador de violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e que o número de mortos é celebrado nesses círculos de extrema direita como um «mérito histórico». Com essa mentalidade de guerra civil, a relação de 120 «inimigos» mortos para quatro polícias é considerada «muito favorável». Além disso, a direita estaria a usar o massacre como um grito de guerra político na campanha pré-eleitoral para as eleições presidenciais de 2026, a fim de «apagar as fronteiras entre guerra e política de segurança pública» durante a campanha eleitoral. É de temer que os políticos de direita sejam tentados a ganhar as eleições de 2026 «com base no número de mortes», alertou Cano.
A criminalidade está realmente fora de controlo em muitas regiões do Brasil, o que explica a grande capacidade de mobilização da direita – especialmente entre as classes médias – em torno deste tema eleitoral. As favelas, onde se encontram os trabalhadores precários e os economicamente apenas supérfluos do capitalismo tardio, são na sua maioria dominadas por gangues e milícias. No Rio, cerca de 20% do território municipal está na prática sob o controlo de grupos armados não estatais, organizações criminosas ou milícias.11 A lógica eliminatória, segundo a qual só um gangster morto é um bom gangster, associando as favelas de forma generalizada a crimes violentos, há muito que se espalhou entre as classes médias ameaçadas de declínio.
Consequentemente Castro aproveitou logo a sua «bem-sucedida» operação policial para lançar ataques políticos contra o presidente de esquerda do Brasil, Lula da Silva.12 O governador do Rio acusou o Ministério da Justiça de o ter «abandonado» na sua grande ofensiva contra as favelas. O Ministério da Justiça respondeu imediatamente que não tinha sido informado sobre a acção. Lula, que foi surpreendido pelo massacre policial quando regressava de uma visita ao exterior, ficou «consternado» com o elevado número de vítimas, segundo o ministro da Justiça Lewandowski.13 Por outro lado, o presidente evitou críticas directas à acção das forças policiais no Rio, ao mesmo tempo que anunciou vagamente uma «nova estratégia» na luta contra os actores armados pós-estatais no Brasil.14
A longa sombra de Trump
A direita brasileira parece ter encontrado um tema central para a campanha eleitoral com o qual pode colocar Lula na defensiva. É de temer, portanto, que o dia 28 de Outubro possa ser apenas o primeiro massacre eleitoral na campanha presidencial que se aproxima. Além disso, as declarações dos linha-dura brasileiros remetem conscientemente à retórica de Trump na sua escalada contra a Venezuela, que também ocorre sob o pretexto de uma «guerra contra as drogas» conduzida de forma extralegal.15 A direita brasileira estaria a desenvolver um «discurso eleitoral com empréstimos da terminologia norte-americana», segundo a imprensa brasileira,16 no qual os «alvos da polícia» também seriam chamados de «narcoterroristas». O senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente golpista de extrema direita Jair Bolsonaro, poucos dias antes do massacre policial no Rio mostrou-se «invejoso» perante os ataques ilegais com mísseis dos EUA contra barcos no Caribe e no Pacífico, para literalmente sugerir que os EUA deveriam agir de forma semelhante no Brasil.
Este incentivo indireto à intervenção por parte do filho baseia-se no amplo apoio que Trump já concedeu ao pai de extrema direita. Trump defendeu veementemente o seu homólogo de extrema direita e em Setembro impôs tarifas punitivas de 50% contra o Brasil,17 depois que Bolsonaro pai ter sido condenado a uma longa pena de prisão por golpista. O Senado dos EUA só revogou essas tarifas punitivas políticas, que equivaliam a uma interferência aberta nos assuntos internos do Brasil, no final de Outubro.18 A «guerra contra as drogas» com assassinatos em massa no Rio poderia, portanto, ser interpretada como uma tentativa de sincronização política entre a extrema direita americana e a brasileira, a fim de pressionar Lula e o Brasil internamente e geopoliticamente – justamente num momento em que, sob o pretexto da guerra contra as drogas, parece possível uma intervenção militar dos EUA contra a Venezuela, veementemente rejeitada por Lula.
Aliás, não é contraditório que Trump se queira vender como “pacificador” fora do hemisfério ocidental, enquanto segue uma táctica de escalada no continente americano para restaurar a posição imperial dos EUA entre a Groenlândia e a Terra do Fogo.19 A retirada iniciada por Trump de Washington do papel de polícia global, que caracterizou a era da globalização, acompanha agora a tentativa de garantir a dominação dos EUA na América do Norte e do Sul, se necessário por meios militares e de serviços secretos, através da guerra e da subversão. A tentativa retrógrada de tornar os EUA «grandes» novamente significa, na prática, reanimar a Doutrina Monroe. É por isso que Washington apoia actualmente aliados ideológicos como o presidente de extrema direita da Argentina com milhares de milhões de dólares, apesar de suas reformas radicais de mercado fracassadas, enquanto ao mesmo tempo pressiona o Brasil, a Colômbia ou o regime de Maduro na Venezuela, fracassado em termos político-económicos.
Crise, formação de gangues e desestatização
Por outro lado, o pano de fundo sistémico desses conflitos é o processo de crise capitalista,20 que não apenas alimenta o imperialismo de crise21 e produz as massas de marginalizados e economicamente supérfluos nas favelas, mas também impulsiona a desestatização das estruturas de poder. Os actores armados não estatais em muitas regiões empobrecidas do Brasil não são apenas gangues criminosos que ganham dinheiro com o tráfico de drogas, extorsão etc. Trata-se de um contrapoder anómico e sem estrutura, que às vezes exerce funções pós-estatais.
De acordo com estudos, apenas 11% das receitas do Comando Vermelho provêm do tráfico de drogas clássico,22 enquanto a organização criminosa obtém grande parte dos seus lucros com extorsão de protecção e fornecimento de serviços «essenciais», como «gás, água e transporte», aos territórios que controla. O Comando Vermelho chegou a criar um aplicativo semelhante ao da Uber que oferece serviços de transporte.23 Na prática o gangue assume aqui a função de órgãos estatais em decadência, já que mesmo a extorsão de protecção no território controlado sempre inclui a protecção efectiva contra agressões.
Essa estratégia de diversificação foi acompanhada, a partir de 2022, por uma ofensiva bem-sucedida do Comando Vermelho – que tem as suas raízes nas prisões da ditadura militar brasileira e na fusão da ideologia de esquerda com estruturas criminosas – contra as milícias dos bairros pobres do Rio, que por anos formaram as estruturas de poder não oficiais da região.24 Essas organizações paramilitares são compostas principalmente por ex-polícias ou polícias actuais, têm excelentes ligações com órgãos governamentais e com o aparelho de segurança e também geram lucros por meio de extorsão, tráfico de drogas e controle de serviços públicos: o acesso à Internet, a televisão por cabo ou os transportes públicos são monopolizados à força pelos Paramilitares, cujas raízes de extrema-direita remontam à ditadura militar, e oferecidos a preços exorbitantes. Estas receitas monopolistas ilegais, nas quais a polícia altamente corrupta tem participação, reforçam o controlo e permitem uma maior expansão.
O mesmo se aplica ao Comando Vermelho, que nos últimos anos realizou uma ofensiva bem-sucedida no Rio, durante a qual, entre 2022 e 2024, os Paramilitares foram expulsos de muitas favelas. A partir de 2024, o Comando Vermelho, que criou estruturas paralelas quase estatais e exerceu um controlo territorial rigoroso com a ajuda de muitos soldados, ganhou claramente a vantagem em cerca de uma dúzia de favelas do Rio. No entanto, devido aos seus contactos na polícia, os Paramilitares continuam em vantagem, segundo publicações especializadas já no Outono de 2024.25 As milícias, que mantêm ligações com as forças de segurança, teriam a opção de influenciar as autoridades oficiais para orientar a «direcção das operações policiais» e iniciar investigações contra gangues concorrentes. Por vezes, os polícias vendem os seus «serviços» aos gangues que oferecem mais, como ilustrou um caso no noroeste do Brasil.26
O ataque brutal de 28 de Outubro assume um significado completamente diferente neste contexto: dirigiu-se exclusivamente contra as favelas controladas pelo Comando Vermelho, que ainda há poucos meses eram controladas e exploradas pelos Paramilitares. A «operação policial» com o objectivo de assassinato em massa foi um espectáculo sangrento da campanha eleitoral da extrema direita, bem como uma acção militar para eliminar a concorrência mafiosa, de modo que as milícias ligadas à polícia pudessem reconquistar as suas fontes de rendimento. O assassinato em massa das tropas do Comando Vermelho teve acima de tudo uma lógica de crise económica. O conjunto parece uma guerra de gangues assassina, porque é isso mesmo. Nada seria mais errado, portanto, do que levar a sério o discurso da extrema direita sobre a luta da lei contra o crime. A polícia age nas favelas, muitas vezes, como o maior e mais brutal gangue. A formação de um Estado autoritário fascista e a erosão do Estado, que cada vez mais se transforma numa lógica de gangue, são apenas dois momentos do mesmo processo de crise.
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9 https://www.tagesschau.de/ausland/amerika/rio-drogenbanden-razzia-100.html
10 https://www.brasildefato.com.br/2025/10/30/political-use-of-rio-police-massacre-turns-deadly-operation-into-far-right-electoral-triumph/
11 https://www.akweb.de/politik/brasilien-das-massaker-von-rio-de-janeiro/
12 https://valorinternational.globo.com/politics/news/2025/10/29/analysis-rios-governor-borrows-us-war-rhetoric-to-rally-the-right.ghtml
13 https://www.msn.com/en-us/news/world/brazil-s-lula-horrified-as-rio-police-raid-death-toll-reaches-at-least-130/ar-AA1PuWtq
14 https://www.tagesschau.de/ausland/amerika/brasilien-rio-tote-razzien-100.html
15 https://valorinternational.globo.com/politics/news/2025/10/29/analysis-rios-governor-borrows-us-war-rhetoric-to-rally-the-right.ghtml
16 https://valorinternational.globo.com/politics/news/2025/10/29/analysis-rios-governor-borrows-us-war-rhetoric-to-rally-the-right.ghtml
17 https://www.pbs.org/newshour/world/brazil-braces-for-potential-new-u-s-sanctions-after-bolsonaros-conviction-angers-trump
18 https://www.reuters.com/world/us/us-senate-passes-bill-terminate-trump-tariffs-against-brazil-2025-10-28/
19 https://www.konicz.info/2025/03/15/alles-muss-in-flammen-stehen/. Em português: https://www.konicz.info/2025/03/16/tudo-tem-de-ficar-em-chamas/
20 https://www.konicz.info/2025/05/26/trump-an-der-limite-interno-des-kapitals/. Em português: https://www.konicz.info/2025/05/26/trump-perante-o-limite-interno-do-capital/
21 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/. Em português: https://www.konicz.info/2022/07/06/o-que-e-imperialismo-de-crise/
22 https://time.com/7329606/rio-raid-red-command/
23 https://smallwarsjournal.com/2025/08/21/the-comando-vermelhos-mobile-app-criminal-innovation-illicit-economies-and-armed-governance-in-rio-de-janeiro/
24 https://insightcrime.org/news/inside-battle-rio-de-janeiro-red-command-versus-militias/
25 https://insightcrime.org/news/inside-battle-rio-de-janeiro-red-command-versus-militias/
26 https://insightcrime.org/news/brazil-ceara-large-scale-criminal-networks-police/
Original “Das Wahlkampfmassaker” in konicz.info, 003.11.2025. Tradução de Boaventura Antunes
https://www.konicz.info/2025/11/03/das-wahlkampfmassaker/