UM MOVIMENTO DE PAZ RADICAL É MAIS NECESSÁRIO DO QUE NUNCA

A Ucrânia enfrenta um cenário de horror semelhante ao da Síria – e o mundo pode estar à beira de uma guerra nuclear
Tomasz Konicz, 15 de Março de 2022, Tradução de Boaventura Antunes

Mesmo que o curso da guerra tenha sido até agora um desastre para o exército russo, o Kremlin escolheu um momento estratégico favorável para invadir a Ucrânia. Pelo menos isso é sugerido pela escalada dos preços de muitas matérias-primas, combustíveis fósseis e alimentos básicos. O Ocidente, com as sanções que impôs à Federação Russa como parte da sua guerra económica, está assim a atingir-se também a si mesmo. Os estrangulamentos de abastecimento que já existiam desde o início da pandemia e a inflação acelerada na sequência da política monetária expansiva dos bancos centrais ocidentais irão aumentar em resultado das sanções. A tendência para endurecer ainda mais as sanções, especialmente na República Federal Alemã, é susceptível de ser rapidamente anulada por cálculos económicos. Enquanto os preços do gás estão a subir em flecha, o Chanceler Olaf Scholz (SPD) já excluiu um boicote às fontes de energia russas. O Kremlin mantém assim uma linha económica vital decisiva, apesar da sua brutal guerra imperialista.

Este cálculo de Putin, que de outro modo se veria a si próprio no monte de cacos da sua política de grande potência, parece assim estar a funcionar. Baseia-se na concepção geopolítica estratégica do Kremlin, que já foi elaborada no começo do século XXI, no início do reinado de Putin. De acordo com esta concepção, a Rússia vai tornar-se um império energético. Uma potência mundial que controla economicamente toda a cadeia de exploração de combustíveis fósseis: desde a extracção na vastidão da Sibéria, ao transporte para os mercados da Europa Ocidental e da China, à distribuição local e venda final. O gasoduto do Mar Báltico foi um projecto desta estratégia, em que o gás natural é transportado directamente para um centro do sistema mundial, excluindo os países de trânsito.
O segundo projecto estratégico de Putin é a modernização da economia russa. Uma vez que isto falhou em grande parte, a invasão da Ucrânia está a ter lugar no último minuto, por assim dizer: Os actuais estrangulamentos de abastecimento nas cadeias de produção globais – em qualquer caso em rápida erosão – estão por um lado a aumentar os custos subsequentes das sanções para o Ocidente. Ao mesmo tempo, a transição energética nos centros ainda não foi suficientemente avançada para se poder desligar as fontes de energia russas sem distorções graves. Toda a concepção imperial da Rússia, que pretendia utilizar fontes de energia fóssil como meio de poder imperial, parece tornar-se obsoleta a médio prazo.
Foi precisamente a criação de um „gabinete de hidrogénio“ em Kiev, anunciada em Janeiro de 2022 na primeira visita estatal da Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã Annalena Baerbock (Verdes), que deve ter feito soar o alarme no Kremlin a este respeito. Quanto mais tempo o Kremlin tivesse esperado, menos as suas alavancas „fósseis“ de poder teriam entrado na luta pela Ucrânia. Foi com base neste cálculo imperialista que foi tomada a decisão nada „louca“ de lançar a invasão da Ucrânia.
Lutar por zonas de influência
O impedimento da integração da Ucrânia na NATO também não é a ideia de um presidente russo irracional, Vladimir Putin, mas sim um consenso básico no seio da oligarquia estatal russa. Esta tinha marcado repetidamente os correspondentes esforços do Ocidente como uma linha vermelha. A Ucrânia deveria originalmente tornar-se parte de uma Comunidade Económica Eurasiática dominada por Moscovo – até ao derrube pró-ocidental do governo em 2014. Putin queria estabelecer uma zona económica de facto entre a China e a UE, o que foi visto pelo Ocidente – pelos EUA e pela UE – como uma clara ameaça à sua própria periferia oriental. Países como a Grécia, que foram colocados numa dieta de fome neoliberal pelo então Ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble (CDU), teriam simplesmente tido aí alternativas.
Foi precisamente esta clássica „zona de influência“, como a reivindicam também os EUA no hemisfério ocidental e a RFA na Europa Central e do Sudeste, que o Ocidente já não quis conceder a Moscovo. Nos meses de negociações que antecederam a guerra, nem Washington nem Berlim quiseram excluir a futura adesão da Ucrânia à NATO. Manifestaram claramente a sua vontade de aceitar Kiev – mas, ao mesmo tempo, o Ocidente excluiu a intervenção directa no conflito. A Moscovo e a Kiev foi assim assinalada a vontade da NATO de se expandir no espaço pós-soviético, sem quaisquer garantias de apoio a Kiev no caso de um conflito resultante.
A este respeito, o Ocidente é claramente cúmplice da guerra. Se se tratou de um erro de cálculo, uma vez que quase ninguém esperava um ataque tão grande da Rússia, ou se o conflito foi deliberadamente provocado para deixar a Rússia a „esvair-se em sangue“ na Ucrânia, como sugere a ajuda militar maciça e rápida como um relâmpago, continua a ser uma questão de especulação. Mas o facto é que a Ucrânia, como „zona de fronteira“, tornou-se o campo de batalha sangrento de uma guerra imperialista entre o Oriente e o Ocidente. Um confronto semelhante entre a Eurásia e a Oceânia, no qual as esferas de influência seriam desenhadas pela força militar se necessário, também ameaça na região do Pacífico, especialmente em Taiwan.
Além disso, Moscovo viu-se privada de outras oportunidades para exercer influência na Ucrânia depois do político pró-russo da oposição Viktor Medvedchuk ter sido preso por „alta traição“ em 2021 e três canais de televisão em língua russa terem sido proibidos. As aspirações autoritárias e nacionalistas na Ucrânia sob o Presidente Volodymyr Zelensky, que eram caracteristicamente pouco notadas no Ocidente, andaram de mãos dadas com uma política revisionista da história. Muitos colaboradores nazis ucranianos ocidentais foram reabilitados e estilizados como verdadeiros heróis nacionais. A divisão política da Ucrânia num Leste pró-russo e num Ocidente nacionalista, que se manifestou desde os anos noventa nas correspondentes mudanças de poder entre os clãs oligarcas do Leste ucraniano (Viktor Yanukovych) e pró-ocidental (Viktor Yushchenko), foi assim unilateralmente dissolvida a favor do nacionalismo ucraniano ocidental. Este foi o capote vermelho para Moscovo, que por sua vez tinha contribuído para esta mudança interna da frente ucraniana com a sua anexação imperial da Crimeia.
Rumo a um Estado falhado
A estrutura de poder oligárquico já demasiado asselvajada na Ucrânia, tal como na Rússia (onde a oligarquia estatal de Putin assumiu o controlo directo do aparelho de Estado e das empresas estatais) realça a diferença central entre o actual imperialismo de crise e o sangrento „Grande Jogo“ na segunda metade do século XIX. O actual consiste na crescente tendência para a desnacionalização, para o asselvajamento induzido pela crise do aparelho de Estado, que na Rússia está nas mãos de oligárquicas e mafiosas e redes e bandos, e que para a sua invasão da Ucrânia também depende de unidades mercenárias, por exemplo da Chechénia.
No caso da Ucrânia, são por sua vez as milícias fascistas que estão a desenvolver uma vida própria. Após terem falhado as tentativas iniciais de Zelensky de desmobilizar estas unidades nazis activas na Ucrânia oriental, devido a ameaças e resistência, ele integrou-as no exército ou subordinou-as ao Ministério do Interior como uma força auxiliar da polícia („Unidades de Milícias Nacionais“). A crescente influência das milícias fascistas no aparelho de Estado da Ucrânia, responsáveis por ataques a minorias como os Roma e assassinatos de activistas pró-russos da oposição, manifestou-se na atribuição por Zelensky da Ordem „Herói da Ucrânia“ ao comandante nazi Dmytro Kotsyubaylo, em Dezembro de 2021.
A guerra na Ucrânia é acompanhada por um afluxo, promovido por todas as partes em conflito, de mercenários, veteranos de guerra, aventureiros, islamistas e nazis, milhares dos quais já estão activos na Ucrânia. A Rússia não só tem a lutar por ela as famigeradas tropas do governante checheno Ramzan Kadyrov (que tem elogiado repetidamente os políticos da AfD), mas Moscovo está agora também a tentar recrutar combatentes da entidade pós-estatal que dantes era a „Síria“.
Sem uma solução diplomática em breve, estas forças irão ganhar peso no conflito. A Ucrânia tornar-se-á assim uma segunda Síria, um „Estado falhado“ em que existe uma guerra permanente, alimentada do exterior. Até agora, são precisamente estas „guerras de desnacionalização“ (Robert Kurz), que tendem a devastar a periferia do sistema mundial, que estão a executar o processo de crise objectivamente em curso, actuando, por assim dizer, como „aceleradores de incêndio“ da crise social e ecológica do sistema mundial capitalista.
Todas as potências imperiais estão afogadas na crise até ao pescoço: Putin quer impedir a descida imperial da Rússia, os EUA vêem-se confrontados com uma inflação crescente apesar do dinheiro mundial, o que põe em perigo a antes vigente formação do défice, a RFA vê ameaçado o seu modelo económico orientado para a exportação, o seu fornecimento de matérias-primas etc. – é por isso que os monstros estatais estão prontos para jogar este monstruoso „póquer“ imperialista sobre a Ucrânia, que pode muito bem levar a uma troca de galhardetes nuclear.
Política de paz anti-capitalista
Os impactos que devastaram a Somália, a Líbia, a Síria ou o Afeganistão nas últimas décadas estão assim a aproximar-se dos centros do sistema mundial, sendo a Ucrânia um país da semiperiferia. No entanto, com a aproximação dos impactos da dinâmica incessante da crise, a impotência está também a aumentar, especialmente à esquerda, que pode ser pulverizada entre as frentes deste confronto. A luta pela autonomia do movimento só pode provavelmente ser conseguida com a crítica radical.
A compulsão para se juntar irreflectidamente a uma das partes imperialistas da guerra teria de ser contrariada por uma política de paz ofensivamente anticapitalista, na qual a exigência de um cessar-fogo imediato andaria de mãos dadas com a tematização da crise sistémica – não por radicalismo de esquerda, mas porque este é um movimento de crise realmente em curso, que torna o capitalismo tardio instável e o leva à autodestruição.
Um movimento de paz consequente e radical, que só poderia surgir demarcando-se dos trolls castanhos-avermelhados de Putin e dos propagandistas da NATO à volta dos Verdes, teria de enfatizar a necessidade claramente emergente de transformação do sistema. É óbvio que o capitalismo está no fim, mas o seu fim está em aberto. Sem a sua ultrapassagem emancipatória consciente, este sistema rebentará devido às suas contradições internas e externas, o que na realidade marcaria a derrota final da esquerda. O capitalismo tardio não tem de perecer com um mísero e longo lamuriar, na decomposição social e na catástrofe climática – também pode, e isto parece provável devido ao potencial acumulado de destruição, sair do palco com um estouro bem grande.
Tomasz Konicz é um autor e jornalista. O seu livro mais recente foi „Klimakiller Kapital“. Wie ein Wirtschaftssystem unsere Lebensgrundlagen zerstört“ („Klimakiller Kapital“. Como um sistema económico destrói o nosso modo de vida), publicado pela Mandelbaum Verlag.
Original “Eine radikale Friedens­bewegung ist nötiger denn je” in: “analyse & kritik. Zeitung für linke Debatte & Praxis”, 15 de Março de 2022. Tradução de Boaventura Antunes

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