TRÊS TIPOS DE INFLAÇÃO

konicz, 08.08.2021. Tradução de Boaventura Antunes
Os debates acalorados sobre o aumento da inflação apontam para as contradições cada vez mais agudizadas da política de crise capitalista.
Tomasz Konicz
Rédea solta ou rédea curta – como deve a rotina continuar sem parar? O aumento dos preços na UE e nos EUA está mais uma vez a alimentar o eterno debate sobre o rumo certo da política monetária dos dois lados do Atlântico. Na Europa, são sobretudo os decisores da política monetária alemã, como o Presidente do Bundesbank, Jens Weidmann (1), que criticam publicamente as novas metas flexíveis de inflação do BCE, com as quais a inflação pode estar acima da meta de dois por cento, desde que não seja por um período de tempo muito longo. E também nos EUA está a aumentar a pressão política (2) sobre a Fed e a administração Biden, para tomarem medidas eficazes contra o aumento dos preços.
Na zona euro, a inflação subiu efectivamente para 2,2% em Julho (desencadeando as críticas de Weidmann à política monetária laxista do BCE), enquanto em Junho ainda estava em 1,9%, abaixo da meta de inflação da UE (3). No RFA, os preços subiram mesmo 3,8%, mas isso deve-se em grande parte ao fim da taxa de IVA de 16%, que foi temporariamente reduzida em três pontos percentuais, como parte de um pacote de estímulo no início da pandemia. Os EUA registaram mesmo – dependendo do método de pesquisa – um pico de inflação de 3,9 a 5,4 por cento em Junho de 2021.

Uma parte „surpreendentemente grande“ desta dinâmica inflacionista deve-se também ao aumento do consumo por parte dos assalariados, queixou-se o New York Times, uma vez que a procura em massa tinha sido estimulada na sequência dos pacotes de estímulo keynesianos dos EUA. (5) Entretanto, senadores democratas apelam à Fed para reduzir o seu programa de compra de obrigações, que adquire 120 mil milhões em obrigações todos os meses, pois de outra forma a inflação ameaça ficar fora de controlo. (As compras de obrigações pelos bancos centrais proporcionam „liquidez“ à esfera financeira, o que equivale a um programa de impressão de dinheiro). (6) A Casa Branca e a liderança da Reserva Federal, por outro lado, argumentam que a recuperação económica é demasiado frágil, e que os estrangulamentos de abastecimento (para alguns produtos electrónicos, por exemplo) serão em breve eliminados, assim que os efeitos da pandemia forem ultrapassados e a economia voltar ao „normal“.
Na UE, às discussões sobre política monetária acrescem ainda os conflitos de interesses entre o centro alemão e a periferia sul da zona euro. (7) Para o sul da zona euro, as taxas de juro zero e os programas de compra do BCE são um suporte económico essencial para financiar programas de estímulo e gerar crescimento, apesar do enorme peso da dívida. As elites funcionais de Berlim, pelo contrário, estão a pressionar para uma postura monetária restritiva, a fim de limitar não só a inflação neste país, mas também a ascensão no Sul, uma vez que o fosso económico entre Berlim e a periferia da zona euro constitui a base económica da hegemonia alemã na UE. ( 8 )
Mas estes debates entre os defensores keynesianos da política monetária expansionista e os monetaristas neoliberais apontam para as crescentes contradições e tensões internas da política de crise capitalista que dificilmente podem ser ultrapassadas. Ambos os lados na disputa sobre a política monetária, que é alimentada por interesses nacionais ou de classe, têm toda a razão nos seus diagnósticos no leito doente do capitalismo, enquanto que as suas „propostas terapêuticas“ estão erradas. A política monetária expansiva faz de facto aumentar a inflação, devendo a esfera financeira ser o foco principal, onde as „injecções de liquidez“ dos bancos centrais no século XXI levaram às correspondentes bolhas especulativas, ou seja, à inflação dos preços dos títulos ou dos bens imobiliários. Ao mesmo tempo, o monetarismo e o regime de austeridade neoliberal – com Schäuble brutalmente executado na Grécia – conduzem aos colapsos económicos que são bem conhecidos do sul da Europa.
Por cada artigo de opinião lamentando a perda do sólido euro „alemão“, (9) pode-se facilmente encontrar um artigo apontando com igual justificação que é preciso também preocupar-se com a recuperação da frágil economia. (10) Esta disputa entre monetaristas e neokeynesianos – onde ambos os lados estão ao mesmo tempo certos e errados, porque não conseguem ultrapassar a sua tacanha perspectiva no interior do capitalismo – reflecte assim simplesmente a contradição interna do processo de valorização capitalista, que é cada vez mais despojado da sua substância do trabalho constituinte do valor na produção de mercadorias por aumentos de produtividade mediados pela concorrência, e está assim cada vez mais dependente da impressão monetária e da emissão de dívida em toda a economia e globalmente, a fim de simular processos de valorização na esfera financeira através da produção de capital fictício, embora seja precisamente esta „financeirização“ do capitalismo, começada com o neoliberalismo, que torna o sistema cada vez mais instável e propenso a crises.
A política de crise do capitalismo tardio encontra-se numa aporia definitivamente insolúvel, numa armadilha de crise, (11) cuja paragem rápida só pôde ser atrasada pela impressão de dinheiro e pelo crescimento financiado a crédito. No decurso do século XXI, não só as montanhas da dívida global cresceram mais rapidamente do que a produção económica mundial, como as taxas de juro também diminuíram constantemente desde o avanço do neoliberalismo e a financeirização do capitalismo, (12) uma vez que, após o rebentamento de cada uma das crescentes bolhas especulativas, (13) o sistema financeiro mundial teve de ser salvo do colapso com taxas de juro baixas e impressão de dinheiro. (14)
Ironicamente, está actualmente a surgir uma constelação económica semelhante à que prevalecia nas vésperas do neoliberalismo, durante o período da chamada estagflação, (15) quando, após o boom do pós-guerra, uma economia paralisada interagia por vezes com uma inflação de dois dígitos, que o então dominante keynesianismo alimentava com taxas de juro baixas e programas de estímulo. Foi precisamente o fracasso do keynesianismo no final dos anos 70 que abriu caminho ao neoliberalismo, o qual dominou a inflação com uma fase de taxas de juro extremamente elevadas (choque Volcker) e lançou as bases para a descolagem dos mercados financeiros e da economia da bolha impulsionada pelo mercado financeiro que continua até aos dias de hoje (as elevadas taxas de juro na altura funcionavam como um íman, atraindo capital em busca de aplicação para a esfera financeira dos EUA).
O combustível para o crescimento vertiginoso dos mercados financeiros no período neoliberal – que, como disse, equivale a uma inflação dos preços dos títulos – foi cada vez mais proporcionado pela política monetária neoliberal, que em cada período de crise foi baixando a taxa de juro directora dos EUA, de mais de 17% no início dos anos 80 até atingir a actual fase de taxa de juro zero, com taxas de juro de facto negativas. Entretanto, os bancos centrais degeneraram em perigosas lixeiras do sistema financeiro mundial, uma vez que no século XXI compram títulos da dívida pública e títulos-lixo para estabilizar este castelo de cartas cada vez mais frágil, a fim de injectar nova liquidez na esfera financeira (e iniciar as correspondentes bolhas de liquidez) através desta já mencionada impressão monetária. Como resultado, o balanço do BCE totaliza agora mais de sete biliões de euros, enquanto que o da Fed é de 7,7 biliões de dólares.
A inflação manifesta-se assim de duas formas no actual processo de crise: como inflação dos preços dos títulos na esfera financeira, que atingiu alturas vertiginosas com a marcha do neoliberalismo, e como inflação dos bens na „economia real“, que até agora tem sido mantida sob controlo. O núcleo central da apologia neoliberal invocava precisamente a aparente estabilidade de preços desde o fim do keynesianismo como uma importante proeza social que proporcionava preços estáveis aos trabalhadores assalariados.
Os defensores da política monetária expansiva pareciam assim estar à direita durante os últimos surtos de crise (crise financeira após o rebentamento da bolha imobiliária transatlântica, actual combate à pandemia), desde que a dinâmica da inflação apenas afectasse a esfera financeira e as „injecções de liquidez“ dos bancos centrais apenas conduzissem à subida dos índices bolsistas. Mas, entretanto, esta estratégia de décadas de adiamento da crise por força dos mercados financeiros parece ter-se esgotado, uma vez que as taxas de juro estão efectivamente a zero e os balanços dos bancos centrais estão a transbordar de títulos-lixo. (16) Os esforços cada vez mais desesperados das elites funcionais para manter o processo de valorização apoiando a economia parecem estar agora a acelerar a efectiva subida de preços na economia real. Não só os títulos financeiros e os preços imobiliários (17) estão em alta, o que actua como lubrificante económico na fase ascendente de uma bolha especulativa, mas também os preços das matérias-primas, artigos de consumo e bens de uso diário, o que aponta claramente para um sobreaquecimento cíclico e pode levar a que a dinâmica da inflação ganhe vida própria – mas isto constitui uma enorme matéria explosiva socioeconómica, tendo em conta o potencial de crise acumulado.
Os mercados financeiros mundiais, que têm inchado a dimensões absurdas, abrigam eles próprios um enorme potencial de inflação que só pode ser evitado pela formação de bolhas sempre novas. Se a dinâmica especulativa nos mercados financeiros já não puder ser travada pela formação de novas bolhas na próxima explosão, existe a ameaça de uma fuga maciça de capital da esfera financeira, que poderia levar a uma hiperinflação – o que representa na realidade um possível curso da desvalorização objectivamente iminente do valor, que a política de crise capitalista tem sido capaz de atrasar durante tanto tempo.
A dinâmica inflacionista moderada que agora se instala só poderia assim ser a manifestação de um grande processo de desvalorização, especialmente porque estas tendências de desvalorização, impulsionadas pelas contradições internas do capital, ameaçam interagir com os impulsos inflacionistas que são alimentados pela ultrapassagem da barreira ecológica do capital. (18) Os preços dos alimentos subiram cerca de 30% no último ano. (19) Para além do relançamento da procura, que vem principalmente da China, as secas no Brasil e no oeste dos EUA são um factor central na subida dos preços. (20) Os preços estão tão elevados como há onze anos, quando a Primavera Árabe, impulsionada pelo custo de vida insustentavelmente elevado para as massas árabes empobrecidas, irrompeu no Norte de África, bem como na Síria, e varreu muitos dos regimes autocráticos da região. (21)
A crise climática irá, com toda a probabilidade, alimentar aumentos de preços a longo prazo, especialmente neste mercado de importância vital. É provável que o aumento dos preços dos alimentos atinja rapidamente níveis de risco de vida para muitas pessoas na periferia do sistema mundial capitalista, devido ao aumento das catástrofes ambientais, como aconteceu ultimamente durante a pandemia de coronavírus, quando a destruição maciça de alimentos foi acompanhada pela fome generalizada entre as massas de assalariados que subitamente se viram sem possibilidade de ganhar a vida devido à pandemia. (22)
No entanto, parece estar a surgir aqui uma reviravolta fundamental: até agora, as crises no capitalismo foram sempre crises de excesso de produção, tendo a fome sido um produto da incapacidade de o sistema satisfazer as necessidades das pessoas famintas na forma de mercadorias, e assim utilizar os recursos sensatamente. Em breve, porém, o movimento de valorização global poderá ter minado os fundamentos ecológicos da humanidade a tal ponto que parece possível um regresso das crises de escassez – como as que caracterizaram a Idade Média. A crise climática ameaça simplesmente a oferta alimentar da humanidade, ao que os mercados capitalistas continuarão a responder com aumentos de preços – até que a oferta satisfaça a procura. A agitação racista contra uma „superpopulação“ supostamente supérflua não demorará muito a chegar.
(1) https://www.spiegel.de/…/ezb-bundesbank-chef-jens…
(2) https://edition.cnn.com/…/inflation-fed-manchin/index.html
(3) https://www.zeit.de/…/inflation-eurozone-hoechststand…
(4) https://www.tagesschau.de/…/inflation-rate-deutschland…
(5) https://www.nytimes.com/…/economy/inflation-rise.html
(6) https://edition.cnn.com/…/inflation-fed-manchin/index.html
(7) https://www.konicz.info/?p=4372
( 8 ) https://www.heise.de/…/Der-Aufstieg-des-deutschen…
(9) https://www.welt.de/…/Inflation-und-Niedrigzins-Der…
(10) https://www.tagesspiegel.de/…/bitte-mehr…/27469918.html
(11) https://www.heise.de/…/Politik-in-der-Krisenfalle…
(12) https://fred.stlouisfed.org/series/FEDFUNDS
(13) https://www.heise.de/…/Vergleich-der-Krisen-2020-vs…
(14) https://www.heise.de/…/Kapitalismus-kaputt-4684452.html
(15) https://lowerclassmag.com/…/corona-krisengespenster…/
(16) https://lowerclassmag.com/…/oekonomie-im-zuckerrausch…/
(17) https://www.nytimes.com/…/home-prices-interest-rates…
(18) https://www.nd-aktuell.de/…/1147322.klimaschutz-die…
(19) https://www.spiegel.de/…/welternaehrungsorganisation…
(20) https://www.klimareporter.de/…/teure-nahrungsmittel…
(21) https://www.heise.de/…/Der-erste-grosse-Klima-Aufstand…
(22) https://www.exit-online.org/textanz1.php… [em Português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz14.htm]
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Original “Dreierlei Inflation” in https://www.konicz.info/?p=4389,

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